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Opinião
Quarta - 18 de Abril de 2012 às 15:00
Por: Lourembergue Alves

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Através dos livros é possível viajar pelo mundo afora. Ainda que tal viagem se dê por caminhos do pretérito, em busca de estampas fotográficas jamais vistas pelo retrovisor do presente, e só reveladas pela lente da literatura. A mesma com que Cristina Morton – uma argentina radicada em terras lusitanas - se vale para revelar a vida de um bibliotecário que atravessou o Atlântico rumo ao Brasil, acompanhado por 76 caixotes repletos de documentos e textos da Real Biblioteca do Palácio da Ajuda, antes esquecidos no cais de Belém durante a apressada saída de D. João VI, em 1808. História contada em “o guardião de livros”, um romance cheio de lances que prendem a atenção do leitor, por mais exigente que este seja.    
 
Luís Joaquim dos Santos Marrocos, o bibliotecário, não encontra no Rio de Janeiro o paraíso que pensava existir ou que os viajantes diziam ser. Custa-se a adaptar na cidade. Nesta nada o atrai, nem a gastronomia, muito menos a alta temperatura, a qual o deixa mal, bem como os cheiros que exalam dos bueiros e lhe agridem as narinas. Isso tudo, porém, muda completamente. Inclusive o cenário arquitetônico citadino quando ele conhece Ana de Souza Murça – jovem carioca de vinte e dois anos – e com quem se casa. Tornou-se, então, “um bom marido e um pai afetuoso, ainda que um pouco ausente. Não tanto por não estar presente, pois voltava diretamente para casa depois de acabar o trabalho, mas muitas vezes sua mente viajava pelos percursos das letras ou fechava-se no escritório”.

Ao entrar naquele espaço só dele, Luís sentia-se perto do paraíso, e, quando não se estava por perto, Manuel se recolhia naquele lugar sagrado, onde – como magia - esquecia sua condição de escravo.
 Nem tudo, entretanto, transcorria em paz. A falta de notícias do pai, que se encontrava em Portugal, atormentava Luís. Tanto quanto fazia a ausência da filha – nascida fora do casamento – que foi obrigado a abandonar no convento, a um destino incerto, em razão dos costumes da época. Naquela roda só se podiam deixar enjeitados de gente fina, fruto de mulher desonrada ou adúltera, enquanto os outros ficavam no Hospital dos Expostos. Aqueles, contudo, eram os “fantasmas”, somados ao do filho morto com apenas sete dias de nascido, “que o perseguiam até nos sonhos e nos piores momentos do dia, quando o cansaço o deixava abatido e os pensamentos sombrios chegavam sem serem chamados para lhe escurecer as horas”.  
 
Assim, as páginas de “o guardião dos livros” desvendam os fatos da vida de Luís Marrocos. Fatos antes descritos pelo próprio, em 186 cartas que encaminhara para o pai. Ele escrevia bem e, quando estava de bom humor, era brejeiro e sarcástico – revela Cristina Norton que, sabiamente, introduz os comentários do bibliotecário no seu livro, sob o título de “crônicas da corte”. 
 
Essas crônicas se entrelaçam com o texto romanceado. Não formam trechos separados, deslocados, sem quaisquer ligações. Ao contrário. Elas noticiam e traziam à luz as transformações da época, bem como as intrigas na Corte, a mesquinhez da burocracia e a dura realidade da escravidão, a exemplo de uma estampa fotográfica sem retoque. 
 
Isso, por outro lado, proporciona ao leitor um belo passeio, cujo roteiro é delimitado pela conversa do bibliotecário consigo mesmo, e que chegou ao seu final quando ele adormeceu ao entardecer do dia 17 de dezembro. “O barulho do tabuleiro de prata”, carregado pelo escravo Manuel, caído ao chão “foi para Ana o prenúncio de sua viuvez”.   

Lourembergue Alves é professor universitário e articulista de A Gazeta, escrevendo neste espaço às terças-feiras, sextas-feiras e aos domingos. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.


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