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Opinião
Sexta - 17 de Maio de 2019 às 09:26
Por: Thomas Ubijara Caldas de Arruda

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Circula na internet a imagem de uma placa, provavelmente instalada em um salão de festas, com os seguintes dizeres: “É proibido dançar agarrado, mas se quiser pode”. À parte da aparente anedota que integra a frase e a circunstância na qual foi utilizada, me permiti imaginar situações, de modo a contextualizar o leitor com o tema adiante abordado.

Será que a proibição de dançar agarrado seria afastada pela simples vontade das partes envolvidas? Ou esta vontade deveria estar atrelada a uma justificativa plausível, como, por exemplo, “só pode dançar agarrado se estiver apaixonado”, ou, ainda, “só é possível dançar agarrado se o salão estiver lotado”?

Afinal, como interpretar uma norma jurídica? O que pode e o que não pode ser mitigado ou relativizado?

Sobre o tema impenhorabilidade salarial, embora seja possível encontrar decisões em sentido contrário (AgRg no AREsp 792.337/MS - DJe 6/3/2017; AgRg no AREsp 143.850/RJ - DJe 25/4/2016; REsp 1.608.738/MS - DJe 7/3/2017; REsp 1.721.084 – DJe 17/04/2018), o entendimento mais recente da Quarta Turma do STJ, firmado no julgamento do Agravo em Recurso Especial nº 1.336.881/DF (julg. em 23/04/2019), assentou que a natureza da dívida e a alta renda do executado são elementos que autorizam a penhora do salário para quitação de alugueis residenciais. Na ocasião, foi reconhecida a possibilidade da penhora de 15% da remuneração bruta do devedor de dívida locatícia, em virtude dos altos rendimentos por ele percebidos.

Na visão do relator, ministro Raul Araújo, o Código de Processo Civil de 2015 deu um tratamento diferente à regra da impenhorabilidade, por ter suprimido a expressão “absolutamente” (onde constava, no texto do CPC/1973, o termo “são absolutamente impenhoráveis”, passou a constar apenas “são impenhoráveis”).

A alteração, para o ministro, abriu margem para a mitigação da regra de impenhorabilidade do salário e que “então, é para além disso, das próprias relativizações que expressamente já contempla, que o novo código agora permite, sem descaracterização essencial da regra protetiva, mitigações, pois se estivessem estas restritas às próprias previsões já expressas não seria necessária a mudança comentada”.

Em caso semelhante, julgado sob a égide do CPC/73, a Corte Especial (STJ) já havia se manifestado no sentido de que “a regra geral da impenhorabilidade de salários, vencimentos, proventos etc. (art. 649, IV, do CPC/73; art. 833, IV, do CPC/2015), pode ser excepcionada quando for preservado percentual de tais verbas capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família” (EREsp 1.582.475/MG, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 19/03/2019).

Para o tribunal, não seria razoável que o credor seja impossibilitado de obter a satisfação de seu crédito, especialmente em situações em que não haja comprometimento da manutenção digna do executado, motivo pelo qual deve ser prestigiado o princípio da efetividade e da dignidade humana.

A tese firmada pela Corte Superior, no entanto, destoa completamente da nova codificação processual, mais precisamente do texto disposto no artigo 833, inciso IV e §2º do CPC/2015. Vejamos:

Ouso afirmar que o temperamento, para não dizer sepultamento, da regra da impenhorabilidade (parcial) do salário, abre margem para o tão criticado voluntarismo judicial

“São impenhoráveis:

(…)

IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o §2º;

(…)

§2º O disposto nos incisos IV e IX do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, §8º, e no art. 529, §3º.”

Ao contrário do afirmado no julgado referenciado acima, de que a supressão do termo “absolutamente” abriu livre caminho para a relativização da impenhorabilidade, na realidade apenas sistematizou as normas atinentes ao tema, especificando o que o legislador desejou que fosse, de fato, “relativizado”.

Como se vê, conquanto o novo diploma tenha mantido a regra da impenhorabilidade do salário, previu uma maior flexibilização, permitindo a penhora, também, para pagamento de prestação alimentícia de qualquer origem (art. 833, §2º, primeira parte), bem como em relação às dívidas de qualquer natureza que excedam 50 (cinquenta) salários-mínimos (art. 833, §2º, segunda parte).

As hipóteses previstas no art. 833 do CPC/2015 podem, ainda, ser consideradas hipóteses de impenhorabilidade absoluta, sendo que as restrições estão expressamente descritas no próprio texto legal, seja de impenhorabilidade relativa (dívidas decorrentes de prestação alimentícia ou relativas ao próprio bem e dívidas da pequena propriedade rural utilizada pelo trabalho da família, por exemplo), seja de impenhorabilidade parcial (dívidas que superem cinquenta salários-mínimos) (Hermes Zanetti Jr, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. XIV. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018).

Especificamente em relação à possibilidade de penhora do salário, houve uma sensível evolução no ordenamento jurídico brasileiro, à guisa da legislação de outros países que também permitem a penhora de parte da remuneração do devedor, como, por exemplo, na Europa: Portugal, Espanha, Alemanha e Itália e; na América do Sul: Chile, Argentina e Uruguai.

Sem descuidar dos posicionamentos divergentes, ao delimitar o teto de cinquenta salários-mínimos, a lei quis fixar um parâmetro objetivo a ser observado para excepcionar a regra da impenhorabilidade, justamente para eliminar a carga de subjetividade que vinha sendo utilizada recorrentemente pelo STJ no processo de relativização da regra.

Se assim não o quisesse o legislador (fixar critério objetivo), teria apenas estabelecido que “o salário é impenhorável, exceto quando não comprometer a dignidade e subsistência do devedor” ou que “o salário é impenhorável, salvo se de elevado valor” (este último exemplo foi utilizado como exceção da impenhorabilidade dos vestuários e pertences de uso pessoal – art. 833, III do CPC/2015), hipótese em que ficaria a cargo do juiz definir, casuisticamente, o que é e o que não é de “elevado valor” e quando a subsistência do devedor não restaria ameaçada.

Não restam dúvidas de que a lei processual determinou um valor mínimo considerado impenhorável, o qual, para o legislador, é o que corresponde à integração do princípio do patrimônio mínimo e dignidade humana do devedor.

Certa ou errada, é a lei.

Não concordo que o valor seja justo e razoável, mas entre o que é justo e o que é direito há uma certa diferença, assim como há uma larga diferença entre discutir a questão e propor novas alterações na lei e corrigir judicialmente qualquer desacerto do legislador. Fugir do direito para buscar a justiça pode ser perigoso e ocasionar graves traumas ao Estado Democrático de Direito.

É perfeitamente compreensível a preocupação do STJ em garantir a efetividade material do direito da parte que vê a demanda judicial como a única forma de obter a sua pretensão. Isso porque a delimitação do valor de cinquenta salários-mínimos para garantir a impenhorabilidade do salário não corresponde à realidade econômico-social brasileira, considerando que uma diminuta parcela da sociedade possui rendimentos mensais superiores ao referido valor.

Não se pode esquecer, todavia, que não cabe ao Poder Judiciário reescrever a norma, mas interpretá-la. E o esforço interpretativo requer cuidados, para que o subjetivismo não seja utilizado como a panaceia de todos os males, mesmo daqueles nascidos das péssimas escolhas legislativas, sob pena de o juiz ultrapassar o papel de intérprete e aplicador da lei para o de judge made law (juiz que cria o direito).

Conforme bem pontuado por Rodrigo Becker, o legislador fez a opção de trazer a regra de impenhorabilidade do salário e especificar a suas exceções (impenhorabilidade relativa e impenhorabilidade parcial), sendo que “interpretar não pode ter por função modificar, mas sim, extrair o melhor significado dentro do âmbito de possibilidade oferecida pela norma legal. Se não é a melhor norma, cabe perseguir uma forma de corrigir o problema, dentro das opções democráticas oferecidas pela Constituição”.

Não pode o mero desejo do juiz substituir a lei, sem uma justificativa jurídica - e hermeneuticamente – válida. Aliás, Becker ressalta que “se é ou não constitucional, é questão de inconstitucionalidade, e não de interpretação a partir de princípio”. É esta a crítica que faz Lênio Streck ao destacar que há limites interpretativos e que “uma decisão judicial que afasta a exceção do artigo 833, IV, fora das exceções previstas no próprio dispositivo, seria/é casuística e ativista”.

De todo modo, é claramente perceptível que o STJ seguirá trilhando esse caminho, avaliando a possibilidade de penhora do salário de acordo com o caso concreto, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.

Mas de que maneira isso será parametrizado? De acordo com os rendimentos do executado, a recalcitrância do devedor, a duração do processo, o montante e a natureza da dívida, a condição socioeconômica do credor? Difícil dizer, já que a análise sempre buscará resguardo no princípio da dignidade humana e a infinitude de situações possíveis permitirá a criativa produção de critérios particulares.

Por fim, ouso afirmar que o temperamento, para não dizer sepultamento, da regra da impenhorabilidade (parcial) do salário, abre margem para o tão criticado voluntarismo judicial e, reitero, com todo o respeito às opiniões que seguem direção oposta, o senso de querer fazer justiça produzirá um contingente cada vez mais numeroso de verdades incontornáveis, alérgicas ao firme sentido da lei.

THOMAS UBIRAJARA CALDAS DE ARRUDA é advogado e assessor jurídico na Procuradoria-Geral de Justiça.



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