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Opinião
Quinta - 07 de Janeiro de 2021 às 18:01
Por: Roberto Boaventura da Silva Sá

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Já dentro de 2021, que apenas dá sequência ao doloroso 2020, externo o constrangimento por ter visto compartilhadas, em redes sociais, algumas manifestações – de amigos e familiares – acerca da recente passagem.

Depois de um ano tão anômalo, como foi 2020, nosso comportamento naquele momento também foi revelador de como cada um tem visto o outro durante o processo pandêmico em curso.

Em viradas anteriores, qualquer palavra podia ser dita, por mais clichê que fosse. Nesta, não. Todo cuidado – ou respeito – era necessário, principalmente com as palavras.

Mas só teria essa postura quem, de fato, havia internalizado a dimensão da tragédia vivida, não apenas pelas vítimas diretas da covid-19, em especial pelas que saíram dos hospitais em caixões lacrados e sem velório, mas por todos os familiares e amigos de cada uma dessas vítimas fatais. Em menos de um ano, foram quase 200 mil! Como foi lembrado por um telejornal, número que não é encontrado em 97% de nossas cidades.

Ao invés de fogos de artifícios e palavras vãs só o silêncio cabia

Por esse panorama, ao invés de fogos de artifícios e palavras vãs que, ainda bem, se vão com a força do vento, só o silêncio cabia. Por isso, não cabia a exposição, pelo menos publicamente, do velho e natural agradecimento (obviamente, aos deuses) pela vida.

Não cabia sequer agradecer pelo fato de se estar junto à sua “sagrada” família; afinal, esse tipo de agradecimento, em momento de tanta dor e incertezas, mesmo de forma inconsciente, é registro do império do individualismo, há muito, naturalizado em nossa cultura, que consegue conviver, sem questionamentos, com a contradição que sustenta um casamento socialmente cínico – desde as primeiras barbáries da exploração portuguesa – do voraz capitalismo com o cristianismo de fachada.

Numa cultura assim, o individualismo é prova de como cada um de nós se sente melhor e o escolhido por algum tipo de criador – seja ele de que matriz religiosa for – para, neste tempo de pandemia, ter sido isentado da devastadora doença que não poupou lugar no planeta.

Qualquer reflexão básica deveria nos levar a perceber que ter sobrevivido a 2020 foi arte que demandou esforços exclusivamente humanos; nada mais. Os deuses – se existirem – foram Pilatos. Cruzaram os braços e assistiram a uma grande tragédia planetária.

Logo, não houve mão divina separando os joios dos trigos. Detalhe: muitos dos “trigais” perderam a vida, apesar de todos os cuidados tomados, afinal, por perto, ou pelas mídias, podia (e certamente havia) ter alguma abominável criatura negacionista, “rondando ao redor”; ou um parente, um vizinho, ou um amigo desatento, ainda que pontualmente.

Nunca andamos tanto na corda bamba, por mais que as precauções fossem tomadas: sabão, álcool em gel ou o distanciamento social de 2 metros mantido; aliás, se os deuses existem, certamente disseram a todas as vítimas fatais de 2020: “- mas, você, aqui? Agora?

O que houve no inferno da Terra? Não era ‘sua hora’ ainda! Queria me ver mais rapidão, quando – no fundo, no fundo – ninguém dentre minhas amadas criaturas quer me ver nem pintado de ouro? Não estou entendo”.

Agradecer – nas redes sociais – por ter sobrevivido a 2020 foi o mesmo que desconsiderar – quando não escarniar – todas as dores sentidas por tantas famílias, mesmo que nenhuma delas fosse de nosso convívio. Ao dizer isso, me recordei do poema “Procura da Poesia”, de Carlos Drummond, inserido no livro “A Rosa do Povo”, do qual transcrevo as duas primeiras estrofes:

“Não faças versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia./ Diante dela, a vida é um sol estático,/ não aquece nem ilumina./ As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam./ Não faças poesia com o corpo,/ esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.// Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro/são indiferentes./ Não me reveles teus sentimentos,/ que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem./ O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia...”

Toda vez que releio esse poema, penso em como o silêncio pode ser mais significativo do que tantos atos que concretizamos e de palavras que proferimos; aliás, como lembra Arnaldo Antunes no poema “O Silêncio”, “o silêncio foi a primeira coisa que existiu; um silêncio que ninguém ouviu”, posto ter vindo antes da voz. Ah, se sempre nos lembrássemos disso!

Se nos lembrássemos sempre disso, os espaços das redes sociais raramente seriam usados para tanta exposição de nossos sentimentos, fossem quais fossem. Esse comportamento fútil está nos conduzindo à saturação como seres humanos.

Se nos lembrássemos sempre disso, penso o quanto o silêncio poderia nos ajudar a entender nossa dimensão diminuta e nossa relativa importância nos giros do mundo, até por conta de nossa incontrolável efemeridade.

Ao nos fazer lembrar disso tudo, o eu-poético de Drummond nos coloca diante de nossa limitada importância individual, mas nos projeta como raridades na dimensão coletiva da continuidade da espécie, da qual não passamos de um singelo exemplar, aliás, e paradoxalmente, raramente exemplar.

Talvez, lançar mais mão do silêncio nos fizesse entender o que, citando-o novamente, Arnaldo Antunes já compreendeu, ao dizer sobre si:

“...Eu sou um fragmento de olhares alheios que me compõem... Sou a síntese de todos os olhares possíveis que existem sobre mim, também. Essa fronteira entre interior e exterior; não tem um ‘eu’. O ‘eu’ é um mundo voltado para uma experiência do mundo... Eu questiono essa coisa porque que tem um “eu”, Arnaldo. Não. Eu sou o resultado do que a vida tá passando, por este momento presente”.

Lindo isso, mas difícil de ser absorvido, posto a maioria de nós já estar bem atolada no vício de compartilhar insignificantes individualidades.

Roberto Boaventura da Silva Sá é Dr. em Jornalismo/USP e professor de Literatura/UFMT.



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