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Politica Brasil
Quarta - 21 de Abril de 2004 às 15:50
Por: Vitor Gomes Pinto

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Com um bom carro, tração nas quatro rodas, nervos e coração em ordem, saindo de La Paz às cinco da manhã, chega-se a La Asunta, na região de Yungas, às quatro da tarde. São apenas 150 km, mas essa é a estrada mais perigosa do mundo (rodovia da morte) e talvez também a mais bela. Depois de subir até La Cumbre (A Cúpula) a 4.633 metros acima do nível do mar (La Paz está a 3.600), inicia-se uma descida serpenteante e quase vertical onde a cada semana morrem quatro pessoas e um caminhão cai em precipícios que podem chegar aos mil metros de fundo.

As cruzes ladeiam todo o caminho, mas o cenário é de uma beleza estonteante mesmo para quem está acostumado com o altiplano boliviano. A cidade, com 30 mil habitantes (a população cresce quase 20% ao ano desde 2001), está num vale encravado entre altas montanhas e até onde o olhar alcança só se vê plantações de coca, espalhadas junto à mata cerrada ou em terraças encostas acima.

Predominam índios aymarás mas há colônias de negros descendentes de escravos trazidos quando se extraía prata do Cerro de Potosí e o número de mestiços aumenta a cada dia. A “folha sagrada” dos antigos Incas nos últimos anos cada vez mais substituiu os cultivos de arroz, os pomares de laranja, maracujá e morango, dominando a economia graças ao bom preço de venda e ao pagamento no ato, sem discussão. Só o café ainda resiste em algumas áreas.

Famílias inteiras se dedicam à semeadura aproveitando cada metro de terra fértil e quatro vezes ao ano fazem a colheita. É preciso secar as folhas verdes para alcançar um bom preço de venda e para isso vale tudo. A coca é estendida nas ruas, nos tetos das casas (quase todas de barro), nos campos de futebol e nos pátios das escolas, como constatou a equipe de repórteres do principal jornal de La Paz, o La Razón. Gonzalo, um garoto de 12 anos, ceifa a coca desde os 7 e hoje se orgulha por ser capaz de colher de 30 a 35 quilos por dia. “A coca é o produto estrela.

É vida, saúde e educação”, diz o secretário da federação camponesa local. Na localidade vizinha de Coripata, 70% de seus 2 mil habitantes dedicam-se à produção de coca. As motos são o meio de transporte preferido, por serem mais ágeis e menos arriscadas para enfrentar a rodovia da morte, sendo comum vê-las rodando com grandes bolsas de coca penduradas.

Yungas, norte e sul, está localizada na área onde o cultivo tradicional da coca está permitido pela Lei 1008, de Substâncias Controladas. Não poderia ser diferente. Afinal, ali a coca é plantada e consumida há mais de 3 mil anos, ou “desde sempre”. Em Los Yungas e em uma parte de vales como o de Chapare em Cochabamba, é permitido plantar até 12 mil hectares de coca. Fora disso, qualquer cultivo é considerado excedente e ilícito. De acordo com o último levantamento com fotos de satélite realizado pelo DEA norte-americano (encarregado do combate às drogas), ao final de 2003 havia 28,4 mil hectares plantados na Bolívia, cerca de 17% a mais que no ano anterior. Nos países vizinhos, Colômbia e Peru, a área de cultivo diminuiu significativamente, embora a oferta de cocaína não tenha sofrido alteração no mercado internacional. A demanda permanece firme e os preços costumam aumentar cada vez que o DEA anuncia êxitos na sua política de erradicação da coca.

No país de origem, o quilo da folha da coca é comprado a cerca de 3 dólares e a base de coca a 900 dólares, mas a cocaína (o produto final, após o “beneficiamento” da folha) alcança nos EUA preços de 23 mil dólares no atacado e 67 mil no varejo. Na Rússia a cocaína chega a ser vendida a 150 mil dólares mas na Colômbia é possível comprá-la por menos de 2 mil dólares o quilo.

Plantadores tradicionais de coca não querem ser confundidos com os ilegais. São identificados com facilidade, pois em suas terras as folhas são menores, além de mais doces e agradáveis de mastigar segundo os índios que as consomem para aliviar os males da altitude e da fome. Já os que se dedicam ao mercado negro usam fertilizantes e agrotóxicos para obter uma folha grande, brilhante e amarga, de pior qualidade. Os Estados Unidos procuram meter a todos em um mesmo saco para então tentar a erradicação total fumigando as plantações com o glifosato que a tudo destrói. É uma política fadada ao insucesso, mesmo porque já não conta com o mesmo apoio irrestrito dos tempos do general Hugo Bánzer ou do ultraliberal Sánchez de Lozada. O atual presidente, Carlos Mesa, que administra “sem partidos” e faz um governo débil, está mais preocupado com a nova Constituição, o plebiscito para saber se a Bolívia deve ou não exportar gás e com nova luta com o Chile pela saída marítima.

A região de Los Yungas, estrategicamente situada a meio caminho entre o Altiplano e a Bacia Amazônica, tentará persistir em seus costumes milenares, usando a agressiva geografia que a circunda para resistir à febre da coca ilegal que hoje a domina.

*Vitor Gomes Pinto - Escritor, analista internacional e Autor do livro Guerra nos Andes. Vitor.gp@persocom.com.br




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