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Cidades/Geral
Segunda - 03 de Dezembro de 2018 às 09:08
Por: Bianca Fujimori/Mìdia News

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Alair Ribeiro/MidiaNews

De 25 de novembro a 10 de dezembro, o mundo inteiro é marcado por ações de combate à violência contra as mulheres como parte da campanha global da Organização das Nações Unidas (ONU), intitulada "16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres".

No Brasil, a campanha é adaptada para ser mais longa. Ela foi iniciada no Dia da Consciência Negra (20 de novembro) e dura 21 dias.

Em Mato Grosso, onde um caso de feminicídio é registrado a cada 5 dias - segundo dados de 2017 do 12º Anuário Brasileiro de Segurança de Pública - também são realizadas diversas atividades para a campanha global.

No Estado, conforme o estudo, 84 mulheres foram assassinadas no ano passado, sendo que 76 casos (90%) foram enquadrados como feminicídio.

Uma agenda de atividades foi montada pelo Conselho Estadual de Direitos da Mulher, composto por servidores públicos e sociedade civil, a fim de esclarecer o que é violência doméstica para que a própria vítima consiga identificar a situação.

Segundo a presidente do Conselho e procuradora do Estado, Gláucia Amaral, existem diversos tipos de violência contra a mulher, como a psicológica e a sexual, mas que apenas são percebidas quando culminam em agressão física.

A violência doméstica tem diversas vertentes. Tem a violência psicológica, a patrimonial, a sexual

"Mato Grosso está em primeiro lugar no ranking de feminicídio. Nós precisamos reagir", alertou, em entrevista ao MidiaNews.

Para Gláucia, o feminicídio é apenas a "ponta do iceberg".

“O feminicídio é só o final do ciclo de violência doméstica. Esse ciclo de violência contra a mulher e as crianças, normalmente, começa um pouco antes”, explicou.

Veja os principais trechos da entrevista:

MidiaNews - Em Cuiabá e Mato Grosso, como está sendo a campanha mundial de ativismo pelo fim da violência contra a mulher?

Gláucia Amaral - Tem muitas entidades envolvidas. Entidades de direitos humanos, de igualdade racial, entidades protetoras de mulheres. A Prefeitura de Cuiabá aderiu, a OAB aderiu, a Polícia Civil, o Ministério Público Estadual. No interior há muitos grupos que aderiram na busca de se fazer uma campanha e conscientização. Porque em Mato Grosso, como todos nós estamos vendo, estamos com um altíssimo índice de feminicídio. O feminicídio é só o final do ciclo de violência doméstica. Esse ciclo de violência contra a mulher e as crianças, normalmente, começa um pouco antes. A violência doméstica tem diversas vertentes. Tem a violência psicológica, a patrimonial, a sexual. Temos muitos casos de abusos contra criança, estupros de mulheres cometidos por maridos que nunca serão relatados. Eles chegam quando começa a desenrolar para a violência física e para o feminicídio.

Nós temos a violência urbana que ocorre todos os dias. Todos nós, homens e mulheres, estamos sujeitos. Mas o que está causando choque é que a crueldade está aumentando

MidiaNews - É fato que muitas mulheres permanecem na relação mesmo com as agressões, por absoluta falta de perspectivas financeiras. De que forma a dependência financeira da mulher contribui para a manutenção da violência contra ela? É um fato preponderante?

Gláucia Amaral - A sociedade cobra o porquê dessa mulher não sair de casa, mesmo sendo vítima de violência, mesmo tendo ido à polícia e tendo coragem de denunciar. Como ela aceita esse agressor de volta? É um ciclo de dependência. E o que o poder público precisa conseguir fazer é auxiliar essa mulher a quebrar essa dependência. Em muitos casos, essa dependência é econômica. Vários casos de violência doméstica começam com a violência patrimonial de uma maneira bastante simples: o companheiro se apodera de toda a remuneração da mulher. Não estamos falando só de mulheres que não têm remuneração. Ela teme pela vida dela, mas ela teme também pela vida dos filhos e ela não sabe como vai garantir a alimentação deles se ela sair de casa. Além daquela incredulidade: ela é ameaçada de morte, mas é ameaçada não por uma pessoa que acabou de encontrar na rua, é por alguém que já disse que a ama, que foi pai dos filhos, que chorou junto, que ajudou no momento de doença, que conhece a família dela. Muitas mulheres não acreditam que aquele homem vai concretizar essas ameaças. Nós temos a violência urbana que ocorre todos os dias. Todos nós, homens e mulheres, estamos sujeitos. Mas o que está causando choque é que a crueldade está aumentando. Tem casos aqui em Cuiabá de marido que ficou uma semana com a cabeça da mulher dentro de uma sacola. Tivemos o caso de uma moça que, além de apanhar, teve o crânio esmagado pelo marido com um tijolo. E as coisas pioram. Há um componente de ódio que está piorando bastante e ela está morrendo dentro de casa, pela condição de ser mulher.

MidiaNews - Acha que o álcool e drogas levam à violência contra a mulher?

Gláucia Amaral - Sim. As mulheres não costumam encarar como agressão porque elas dizem: ele é muito bom marido, a geladeira está cheia, ele trata bem meus filhos até quinta-feira. Na quinta-feira, ele começa a tomar uma pinga e aí que a coisa piora. E há agressores que dão depoimento de que drogas são fatores determinantes. Mas nem todo mundo que bebe mata, se torna agressor. O ponto primordial não é esse.

Alair Ribeiro/MidiaNews

Glaucia Amaral 27-11-2018

"Em minha opinião, a sociedade do planeta Terra ainda é machista"

MidiaNews - E o desemprego e a crise financeira?

Gláucia Amaral - A questão econômica contribui, mas os índices de violência contra a mulher na América Latina começaram a aumentar nessa década, antes das crises econômicas. Na verdade, é um fator cultural. Nós estamos enfrentando uma modificação de mentalidade. Quando questionados dos motivos, em primeiro lugar está a possibilidade de terminar o relacionamento. O homem não aceita que a mulher deseje encerrar o relacionamento, ele não encara ela de igual para igual. Em segundo lugar é a traição. Ele também não aceita, ele se sente diminuído na sua masculinidade. As mulheres são vistas, no relacionamento, como a parte que é mais emotiva, mais ciumenta, mais possessiva, a que grita, dá escândalo. A gente precisa reconsiderar isso e olhar que a mulher não mata diante de uma traição. Existem exceções, lógico. Há um componente em que a virilidade do homem não pode ser questionada, e isso decorre do machismo. E o terceiro motivo dado por eles é que a mulher não estaria exercendo o seu papel de mulher. Então, ele chega em casa e acha que ela não varreu a casa direito, ele comeu e a comida estava sem sal. Os motivos primordiais se referem mais ao pensamento machista do que a qualquer problema econômico externo.

MidiaNews - A senhora considera o povo brasileiro machista?

Gláucia Amaral - Em minha opinião, a sociedade do planeta Terra ainda é machista. Nós viemos da circunstância da sociedade patriarcal. O papel era clássico porque as necessidades, as condições físicas, nas sociedades eram do homem saindo para trabalhar fora, para a roça ou para caça e a mulher ficar em casa cuidando das crianças. Ao longo de milênios, se criou a ideia de que existem papeis específicos. A Revolução Industrial, sim, mudou algo. Hoje, você defender que a mulher fique em casa é economicamente inviável. Você não consegue manter 50% da população em casa porque qualquer economia quebra. Não é conveniente sequer para a economia. Apesar de nós termos modificado radicalmente nos últimos séculos a estrutura de funcionamento da sociedade, a mentalidade continua. Existia um momento em que era normal cobrar um comportamento moral feminino diferente do comportamento moral masculino. Hoje, isso não faz sentido. Nós temos a noção da igualdade porque nós, igualmente, pagamos impostos, temos a possibilidade de estudar, podemos produzir, damos empregos, trabalhamos. A igualdade deve ser fática. O que é estranho é que a população dos anos 80 e 90 era menos preconceituosa e, hoje, o preconceito aumentou. Acho que houve uma falha educacional, uma falha cultural e a gente precisa trabalhar isso.

Muita gente não sabe ainda o que é violência doméstica. Tem vítima que não sabe que está em situação de violência

MidiaNews - Durante a campanha mundial, quais atividades estão sendo realizadas em Cuiabá?

Gláucia Amaral - Existem diversos atos. Estão sendo realizados seminários. Chegamos a fazer uma missa no Dia da Consciência Negra em uma comunidade no CPA 4, o Conselho Estadual de Direitos da Mulher está realizando ações junto às escolas de educação de adultos, estamos fazendo cine debates. Nós passamos alguns filmes sobre violência doméstica e nós vamos fazer essa discussão. A gente vai até essas escolas e dá a oportunidade desses alunos assistirem o filme – que é bom porque ele sensibiliza, diferente de uma palestra. A gente escolheu três escolas nos bairros que mais tem índice de violência doméstica em Cuiabá e Várzea Grande. Os bairros são Jardim Florianópolis, São Matheus e CPA 4. As atividades também compreenderam um seminário feito pelo Ministério Público Estadual que trouxe especialistas em segurança pública e na fenomenologia da violência doméstica. A Polícia Civil também está indo nas escolas porque boa parte da questão da violência passa pela educação. Uma empresa aqui em Cuiabá também está participando da campanha e vai receber uma palestra do conselho. As empresas também podem chamar. Teve uma rede de supermercados que sentiu a necessidade de começar a trabalhar esse tema porque estava tendo problemas até com sua escala de trabalho. Ou funcionárias haviam sofrido violência ou funcionários estavam detidos por terem praticado, para ver o nível que se encontra. Vamos ter também uma audiência pública na Câmara Municipal de Cuiabá no dia 30 de novembro para discutir a questão do feminicídio.

MidiaNews - De que forma estas campanhas podem contribuir para a redução na violência contra a mulher?

Gláucia Amaral - Porque elas são esclarecedores. Muita gente não sabe ainda o que é violência doméstica. Tem vítima que não sabe que está em situação de violência. A campanha é importante nesse sentido. O esclarecimento do que é violência doméstica para que a própria vítima consiga se identificar no início desse processo. Em segundo lugar é importante para esclarecer quais são os mecanismos que ela tem junto ao Estado para ela conseguir se proteger se a situação já chegou ao ponto da agressão física, quando a vida dela e dos filhos já estão em risco. Outra coisa que está sendo fundamental nesses dias de ativismo é que a gente tem falado, por meio desses eventos, também com as autoridades públicas que são responsáveis pelas providências. Os órgãos de segurança sozinhos não conseguem resolver.

Mato Grosso está em primeiro lugar no ranking de feminicídio. Nós precisamos reagir

MidiaNews - Muitas mulheres assassinadas tinham medidas protetivas contra o companheiro agressor. A senhora não acha que o problema está no não cumprimento da lei, na incapacidade do poder público fazer valer as regras que ele próprio cria?

Gláucia Amaral - O bairro onde mais tem medidas protetivas em Cuiabá é o Dom Aquino e o segundo é o CPA 3. Agora, a Polícia Militar está fazendo um trabalho de ronda. Acabou de implantar em outubro a Patrulha Maria da Penha e ela está dando efetividade à medida protetiva. Então, a mulher que denuncia em Cuiabá, hoje, sabe que não vai ficar somente com um papel na mão. A Polícia Militar organizou uma patrulha que vai verificar a situação do cumprimento dessa medida protetiva. Isso independe da mulher chamar a Polícia na sua casa e nem a mulher ou o agressor sabem quando a polícia vai passar. A PM colocou isso em um radar e ela vai passar fiscalizando. Não é possível que quem denuncie vire uma pessoa em situação de mais risco. O Estado precisa dar efetividade à proteção. A Patrulha Maria da Penha está nos trazendo a grande esperança de que a gente consiga reduzir os índices de feminicídio, não só das mulheres que denunciam, mas que para quem está em volta comece a observar que uma mulher que denuncia tem proteção, que ela não vai estar sozinha e que, se ele desobedecer essa medida, pode ser encontrado. E a PM tem encontrado agressores e tomado providências em relação a eles quando a mulher tem a medida protetiva. Isso desde outubro para cá. Existe um problema que é do poder público de conseguir dar efetividade. A Lei Maria da Penha fala de uma rede de proteção, ela reconhece a fenomenologia que está em volta da violência doméstica.

Alair Ribeiro/MidiaNews

Glaucia Amaral 27-11-2018

"Acho que houve uma falha educacional, uma falha cultural e a gente precisa trabalhar isso"

MidiaNews - Não seria necessário reforçar a estrutura das delegacias?

Gláucia Amaral - É muito importante, desde o treinamento. A gente vem de uma situação de décadas atrás, que a mulher ao denunciar é humilhada pela denúncia. Isso hoje ocorre em situações mais raras, mas ocorre. Recentemente, foi publicada uma lei para que o IML [Instituto Médico Legal] tenha atendimento preferencial para mulheres, crianças e idosos vitimas de violência. O ideal seria que houvesse delegacias das mulheres em cada uma das cidades, mas isso tem um custo altíssimo. Então, as delegacias precisam ter salas onde a mulher possa ter a medida protetiva, o atendimento diferenciado, para que ela consiga sair do ciclo de violência. Nós pretendemos pedir a todos os deputados estaduais que disponibilizem parte dos seus valores de emendas obrigatórias para que a gente, já em 2019, consiga equipar as delegacias do Estado. Mato Grosso está em primeiro lugar no ranking de feminicídio. Nós precisamos reagir.

MidiaNews - A senhora é procuradora do Estado, portanto atua em defesa do Estado. Não é, por exemplo, uma defensora pública ou delegada do setor. Por que decidiu atuar nesta questão relativa à violência contra a mulher?

Gláucia Amaral - O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher é um órgão colegiado e integrado por representantes do Estado e da sociedade civil que atua nessa área. A Procuradoria do Estado tem uma cadeira em cada um dos conselhos de direitos. Eu sempre fui suplente dessa vaga de direitos da mulher. De dois em dois anos a presidência do conselho muda. Com muita honra, as integrantes tanto da sociedade civil quanto do poder público aceitaram a indicação do meu nome e eu tenho esse desafio.

MidiaNews - Como ocupante de um cargo importante do serviço público, já se sentiu discriminada por ser mulher?

Gláucia Amaral - Já. Anos atrás foi emblemático. Eu era presidente da Associação de Procuradores do Estado e ganhei da OAB o título de mulher de destaque. Minhas amigas me chamaram para almoçar ali no Getúlio. Depois, eu saí e atravessei a rua para pegar o meu carro, às 13h, e o flanelinha queria um valor em dinheiro. Eu entreguei as moedas que eu tinha. Ele não gostou, me atacou. Ele jogou essas moedas e só parou de me atacar porque um homem passou e interferiu. Aquela placa de mulher do ano não quer dizer nada se alguém resolver praticar um ato de violência. Eu comecei a trabalhar muito jovem e uma mulher jovem sofre mais preconceitos de suposição de incompetência.





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