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Segunda - 22 de Junho de 2020 às 06:05
Por: Jad Laranjeira/Mídia News

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Vitor Ostetti/MidiaNews

Passados 22 anos da chacina que se tornou um marco da crônica policial em Cuiabá, um livro-reportagem do jornalista Jhonny Marcus vai contar detalhes sobre o caso dos três adolescentes assassinados na região central da cidade.

O crime, que ficou conhecido como "Chacina do Beco do Candeeiro", ocorreu no dia 10 de julho de 1998. Os menores - identificados como Adileu Santos, de 13 anos, Edgar Rodrigues de Arruda, de 15, e Reginaldo Magalhães, de 16 - foram executados com tiros na cabeça, no chamado Beco do Candeeiro, no Centro Histórico de Cuiabá. Na ocasião, um quarto garoto conseguiu fugir e sair vivo.

Anos mais tarde, uma escultura acinzentada do artista plástico Jonas Correa foi erguida no local do crime. Nela são reproduzidos os três adolescentes, um aparentemente sem vida e os outros dois agachados, com medo.

O crime chocou e teve repercussão nacional. O único sobrevivente apontou um policial militar como autor dos homicídios. O suspeito chegou a ser denunciado pelo Ministério Público Estadual e ir a júri popular. Mas em 2014 foi inocentado.

Em entrevista ao MidiaNews, Johnny Marcus explicou por que decidiu escrever sobre o episódio, que, segundo ele, nunca foi devidamente contado à sociedade.

O que sempre quis foi, ao invés de “quem matou?”, foi saber “por que matou?” e como é a dinâmica que gera essa multidão de pessoas se drogando e morrendo à luz do sol sob o olhar indiferente do poder público e do chamado cidadão de bem

O livro "Beco Sem Saída" tem 120 páginas e traz algo inédito, que é o depoimento do policial acusado e inocentado no episódio. Além disso, ele ouviu também o que as mães das três vítimas pensam sobre os homicídios, mais de duas décadas após o crime.

“A história é riquíssima e a imersão nos autos do processo, bem como as entrevistas com as mães, amigos e parentes das vítimas, e com autoridades policiais revelam um grave problema social e de saúde no Centro Histórico de Cuiabá. Uma das informações inéditas que o livro traz é a perda dos cartuchos recolhidos na cena do crime. Por causa da perda dessas evidências no Fórum, uma perícia que poderia identificar o atirador nunca pôde ser feita”, contou.

Jhonny começou a escrever o livro em 2016 e terminou em 2019. A intenção inicial era que fosse finalizado em 2018 – quando a chacina completava 20 anos –, mas, segundo ele, não teve apoio financeiro para isso.

O jornalista contou que também teve dificuldade para encontrar uma editora local que publicasse o seu livro, o que fez com que ele desistisse da busca e realizasse uma produção totalmente independente, paga por ele.

Jhonny fez um trabalho de pesquisa minimamente detalhado, com o que havia nos autos do processo da chacina, além de relatos de amigos e familiares dos meninos. Policiais e autoridades que atuaram na época do crime também foram ouvidos.

“[O livro]’Beco Sem Saída’” é um tributo aos menores. Cada um deles tem um capítulo dedicado a contar sua história de vida, seus sonhos e dramas e como chegaram às ruas. Depois eu mostro, a partir dos autos do processo, como Ministério Público, Gaeco e Polícia Civil conseguiram a façanha de não resolver um caso que ganhou repercussão nacional”, explicou.

“A chacina ocorreu há 22 anos e o Beco do Candeeiro continua a mesma 'cracolândia" de sempre, onde pessoas em situação de vulnerabilidade apenas esperam a hora de morrer, totalmente desassistidas pelo poder público. Na parte final do livro, faço uma reportagem mostrando como está a situação do Centro Histórico hoje”.

Para o escritor, o mais triste foi ver a dor das mães, mesmo passados mais de 20 anos da chacina.

“Ouvir as mães é, de certa forma, restituir a humanidade dos garotos. Dona Albina, Rosa e Maria sofrem até hoje e ainda esperam por justiça. Elas sabiam da vida que os filhos levavam nas ruas, mas nunca desistiram deles”.

Arquivo pessoal

jhonny

O jornalista e escritor do livro "Beco Sem Saída", Johnny Marcus

Já quanto ao policial Adeir de Souza Guedes Filho, que chegou a ser apontado como autor do crime, aceitou somente uma entrevista por telefone, na qual ele contou que investigou por conta própria a morte dos menores, sem chegar a nenhuma pista satisfatória.

“Hoje ele é evangélico e quer esquecer o caso. Adeir é um dos personagens mais controversos do livro, pois ele simplesmente surge na história. Embora tenha sido reconhecido por Edilson Verminose [sobrevivente da chacina], em nenhum lugar dos autos é explicado como chegaram ao seu nome. Até mesmo a descrição física feita preliminarmente por Edilson não batia”, afirmou.

Na visão do autor do livro, todo o desdobramento do caso seria cômico, se não fosse trágico, uma vez que cada uma das pessoas ouvidas por ele sobre o episódio conta uma versão diferente dos fatos.

“Costumo dizer que a única afirmação que pode ser feita sobre o caso é que Adileu Santos, Edgard Rodrigues de Arruda e Reginaldo Dias Magalhães foram executados a sangue frio. Não escrevi o livro pensando em solucionar os crimes. O que sempre quis foi, ao invés de “quem matou?”, foi saber “por que matou?” E como é a dinâmica que gera essa multidão de pessoas se drogando e morrendo à luz do Sol”.

“Embora contraditórias nos detalhes, a maioria das histórias que ouvi é que as execuções têm a ver com furtos que eram praticados pelos menores no comércio. e que os comerciantes estariam com a paciência esgotada e teriam contratado um pistoleiro de aluguel”, finalizou.

A venda dos livros começam a partir do final de julho e custa R$ 40. Ele também pode ser adquirido pelo (65) 9 8404-8047 (somente WhatsApp).

Leia aqui o prólogo do livro:

- Onde que é o cabaré? – perguntou o homem ao menino sujismundo largado ao léu na calçada da rua 27 de Dezembro, no centro histórico de Cuiabá, na fria noite de 10 de julho de 1998. Cerca de dez metros à frente, no lado oposto, completando o trio de mosqueteiros, seus dois parceiros se preparavam para mais uma “cachimbada” de pasta-base de cocaína.

A estreiteza da rua quase tricentenária, a primeira da cidade a receber iluminação pública, com seus casarões decadentes, carcomidos pelo tempo e pelo descaso do poder público, refúgio de uma gente que apesar de tudo insiste em viver, relegava apenas metro e meio do céu pouco estrelado a Indinho, 15, Baby, 13, e Nado, 16.

No início do logradouro, invisível sob a penumbra da Praça Dr. Alberto Novis, estava o D’Artagnan da turma. Verminose, 16, apesar da enorme vontade de se juntar aos outros capitães do asfalto, permaneceu imóvel, indiferente ao odor nauseabundo de excremento humano reinante ao redor, como que a pressentir que o Beco do Candeeiro, nome extraoficial da via, se transformaria, dali a pouco, no próprio vale da sombra da morte.

Eram quase oito da noite daquela sexta-feira e o homem que pedira a informação tinha acabado de descer, pelo lado do carona, de um Passat preto, na rua Campo Grande, estacionado junto ao calçadão da Galdino Pimentel. Tão logo o sujeito desembarcou do veículo, o condutor seguiu em frente, virando à direita na avenida Tenente Coronel Duarte.

- É “bênhali”! – apressou-se Baby apontando para o fim do beco, na esperança de ganhar algum. O “rendivú”, pronúncia adaptada da nostálgica boemia cuiabana para a expressão francesa “rendez-vous”, ou como ditavam as boas normas da outrora aristocrática Cuiabá, “um encontro planejado entre duas ou mais partes num lugar e horários específicos”, ficava na Voluntários da Pátria, ao lado da Igreja Senhor dos Passos.

Divulgação

beco do candeeiro

O livro será lançado no final de julho de 2020

Contudo, ao chegar à “casa de tolerância”, o homem apenas ficou parado durante alguns minutos à porta. Depois botou um boné preto na cabeça, vestiu um colete escuro, como os usados por garçons, e deu meia-volta.

De frente pro Beco do Candeeiro, avistou primeiro Adileu Santos, o Baby, e Reginaldo Dias Magalhães, o Nado. Mais adiante estava Edgar Rodrigues de Arruda, o Indinho. Enfiou então a mão direita por baixo da calça, na altura da cintura, e entrou novamente na viela. Seus passos eram firmes porém sem aparentar pressa.

Sentados lado a lado e quase colados um ao outro por causa do frio, Baby e Nado não perceberam o retorno do homem. Muito menos a pistola automática 7,65 que trazia à mão. Os garotos não tinham sido avisados do “rendez-vous”.

Sem camisa, de calça azul e tênis da marca Puma nos pés, Baby, o primeiro do corredor da morte, foi atingido na cabeça. A bala entrou pela têmpora esquerda e saiu pelo olho esquerdo. O menino preto de cabelos encaracolados trazia no ombro direito a tatuagem de um morro e de um coqueiro. No antebraço direito mais duas tatuagens: na parte superior, divididas por um coração, as letras A e K; um pouco mais abaixo, uma caveira.

Com o corpo do colega precipitado contra si, Nado encolheu-se, juntando instintivamente os joelhos e cruzando os braços. O primeiro tiro atravessou-lhe o pulso esquerdo e atingiu-lhe a cabeça. Com o disparo recebido à queima-roupa, partes de sua massa encefálica saíram-lhe pela boca. O matador ainda atiraria mais quatro vezes, atingindo-lhe o joelho e antebraço esquerdos.

No domingo, a seleção brasileira de futebol disputaria a final da Copa do Mundo da França contra os donos da casa. Muito provavelmente por isso, Indinho – apaixonado por futebol – trajava camiseta azul, calção verde e tinha uma fita verde e amarela no pulso esquerdo.

Incrível que possa parecer, mesmo depois de ouvir seis disparos, o garoto moreno de cabelos pretos e escorridos, motivo de seu apelido, não esboçou reação. Petrificado de terror, virou alvo fácil. O projétil perfurou-lhe a região acima do ouvido direito e saiu pelo olho direito. Morreu na hora.

Do outro lado da rua, ainda na praça, Edilson Alves Ferreira Júnior, o Verminose, foi surpreendido e, de frente pro criminoso, topou com o "berro" apontado contra si. Por duas vezes seguidas a arma engasgou. Os dois tiros seguintes erraram o alvo. Apavorado, o menor sacou o revólver calibre 32 que portava e enquanto corria em direção à Galdino Pimentel, atirou duas vezes a esmo.

Já no calçadão, olhou para trás e observou que o assassino trocava o carregador da arma e saía em seu encalço. Ziguezagueando pelo calçadão e como que recebendo cobertura sobrenatural, não foi atingido por nenhum dos disparos.

Ao chegar à Praça da República, esbaforido pela corrida, tentou conseguir guarida na Igreja da Matriz, onde era realizado um casamento. Um segurança tratou de botá-lo pra fora. Na escadaria do santuário e virado para a avenida Getúlio Vargas, o adolescente viu seu perseguidor entrar num ônibus. Ao avistar um policial conhecido, relatou-lhe aos gritos a chacina: “Mataro meus amigo ali”.

Todavia, contrariando a sugestão de seguir o circular, o policial levou Edilson de volta à cena do crime. Chegando lá encontraram uma guarnição da polícia militar, a imprensa e o corpo de Indinho estendido no chão. Baby e Nado tinham sido levados em estado gravíssimo ao Pronto Socorro Municipal de Cuiabá. Nenhum deles resistiria aos ferimentos.

Liberado pelo policial, Verminose pegou o rumo da avenida do CPA. Por volta de seis da manhã, próximo ao viaduto, foi novamente perseguido pelo assassino de seus amigos e fugiu em direção ao bairro do Pedregal.

O assassinato dos menores Adileu Santos, Edgar Rodrigues de Arruda e Reginaldo Dias Magalhães ficou nacionalmente conhecido como o “A Chacina do Beco do Candeeiro”.

Os fatos narrados até aqui fazem parte do depoimento de Edilson Alves Ferreira Júnior, o Verminose, único sobrevivente da barbárie, e que subsidiou a denúncia oferecida pelos Promotores de Justiça do Ministério Público do Estado de Mato Grosso, através do Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (GAECO), Roberto Aparecido Turim, Mauro Zaque de Jesus e Elisamara Sigles Vodonós.

Na peça, enviada à 13ª Vara Criminal de Cuiabá, em 13 de agosto de 2003, cinco anos após os crimes, com base no testemunho e no auto de reconhecimento feitos por Edilson, os promotores acusaram o ex-policial militar Adeir de Souza Guedes Filho, o “Zé do Caixão”, à época com 38 anos e cumprindo pena de 16 anos na Cadeia Pública de Santo Antônio do Leverger, de triplo homicídio qualificado, motivo torpe e impossibilidade de defesa das vítimas e tentativa de homicídio.

O ex-PM somente seria julgado onze anos depois, em 17 de setembro de 2014, quando foi absolvido por quatro votos a três em júri popular. Apesar de ter a prerrogativa de recorrer da decisão, o Ministério Público decidiu por declarar o caso como encerrado.

Antes de Adeir, dois outros homens, Jair Cândido da Cruz e Lúcio da Silva, foram apontados como suspeitos, mas acabaram não sendo formalmente denunciados pelo MP por falta de provas.

Um mês depois dos crimes, o artista plástico Jonas Correa esculpiu uma estátua em pedra na Praça Senhor dos Passos, localizada ao lado do beco em tributo a Adileu, Edgar e Reginaldo. Cômico se não fosse trágico, hoje a macabra obra de arte serve como ornamento da casa sem teto sem nada de uma legião de homens e mulheres que não têm nem a areia para morar.

Passados vinte anos da chacina, Albina Rodrigues, Maria Santos e Rosa Dias dos Santos, respectivamente as mães de Baby, Indinho e Nado, persistem em busca de justiça, ainda que tardia.

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