Repórter News - reporternews.com.br
Internacional
Sábado - 04 de Junho de 2011 às 08:48

    Imprimir


Apesar do debate sobre a substituição do dólar como moeda internacional de reserva, provocado pela crise americana e a ascensão chinesa, os setores mais influentes em Pequim foram beneficiados pelo atual modelo financeiro e não querem romper com ele.

É o que afirma o pesquisador indiano Zorawar Daulet Singh, que vê coincidência de interesses entre o Ocidente e a elite chinesa ligada ao setor exportador. "Basta lembrar que 66% do superavit comercial chinês deve-se a multinacionais."

Singh, do Centro para Políticas Alternativas de Nova Déli, falou à Folha em seminário na PUC do Rio, promovido pelo Centro de Estudos e Pesquisas do Brics (fórum de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Para ele, as lideranças chinesas usam a associação com os demais emergentes quando os EUA aumentam a pressão por concessões, políticas ou econômicas. Não estão, porém, convencidas de que a ação conjunta do Brics por um sistema internacional mais equilibrado possa funcionar.

Do seu lado, diz Singh, a "grande estratégia" americana é manter a China engajada na atual forma de globalização. A aproximação recente com a Índia seria uma forma de Washington fazer um "colchão", para o caso de Pequim se desviar desse rumo.

Abaixo, a íntegra da entrevista:

FOLHA - Por que o sr. diz que os emergentes estão numa armadilha do dólar?
ZORAWAR SINGH - O centro da economia internacional continua sendo formado por EUA, Europa Ocidental e Japão, os principais produtores de alta tecnologia. Os emergentes, em especial China e Índia, foram irrigados nas últimas duas décadas por investimentos diretos que formaram conexões com esse centro.

Quando digo que estão numa armadilha do dólar é porque eles ingressaram no sistema sem ter independência financeira. Comercializam com as economias do centro usando o dólar.

A questão é pôr fim ao dólar como moeda de reserva?
Não apenas. O dólar é uma manifestação da assimetria global nas finanças, mas também há desequilíbrio no domínio de tecnologias e no modo como o comércio está estruturado. Não houve abertura no setor agrícola e outros em que os emergentes podem ter vantagens.

Por que isso se mantém, mesmo com o aumento do peso da China e de outros emergentes?
A China usa seu sistema financeiro para controlar a economia nacional e vem adotando taxas de câmbio fixas, coladas ao dólar. Se permitisse que a poupança interna fosse canalizada para a própria moeda, ela seria fortalecida.

Mas, para que o país continue sendo a fábrica do Ocidente, os salários e a moeda chinsesas têm que ser mantidos baixos. Agora, na crise, o Ocidente pode reclamar do yuan desvalorizado. Mas a moeda ajuda empresas exportadoras ocidentais baseadas na China.

O crescimento chinês beneficia o sistema organizado pelo dólar?
Desproporcionalmente. Claro que a China também ganhou nesse processo. Houve enorme modernização das áreas costeiras. Há setores internos que se beneficiaram. Como você convence a elite chinesa a propor alternativas à governança global se ela já está ganhando do jeito que está?

Por isso a relutância chinesa em fazer reformas internas?
Desde o início de sua abertura ao exterior depois da reaproximação com os EUA, em 1971, a escolha feita pela China, inicialmente devido à disputa com a Rússia na Guerra Fria, foi a de se abrir ao capital ocidental. Hoje, 80% da base do Partido Comunista é de empresários, profissionais liberais, membros da elite urbana. As pessoas que mandam e definem a opinião pública na China têm investimentos enormes no sistema de comércio e investimentos controlado pela OCDE (o clube dos 34 países mais industrializados).

Basta lembrar que 66% do superavit comercial chinês deve-se a corporações multinacionais. Quando você olha a cifra de US$ 1,5 trilhão das exportações da China, a maior parte não é de fato chinesa, mas representa uma divisão internacional do trabalho mais complexa, na qual o centro trouxe seus investimentos e capital intelectual para o espaço territorial chinês de mão de obra barata.

Isso não significa que esse know-how esteja sendo transferido. A cadeia de produção e de valor continua a ser controlada por empresas estrangeiras. A questão hoje é se a China conseguirá produzir tecnologias e marcas próprias.

É isso o que ela está tentando, não?
Sim, mas ainda não temos exemplos suficientes para comprovar que está sendo bem sucedida.

E a situação da Índia é parecida?
A Índia está inserida na economia global de maneira um pouco diferente, que não é operada diretamente de uma estrutura estatal centralizada. As conexões são feitas sobretudo pelo setor privado. É um processo mais orgânico.

Eu diria que a interdependência assimétrica entre a China e o Ocidente é bem mais profunda do que a da Índia, que tem baixo nível de educação, uma força de trabalho menos capacitada, e por isso é menos atrativa para os investidores.

A diferença fica clara quando se comparam as reservas chinesas em dólar, de US$ 2 trilhões, com as da Índia, de US$ 300 milhões. Qual é a economia mais relevante para o Ocidente?

É isso que faz a China hesitar entre associar-se aos EUA ou aos outros emergentes?
Os chineses operam num quadro bilateral. Eles usam o Brics sempre que aumenta a pressão dos EUA sobre sua elite por concessões, sejam políticas ou econômicas. Ainda não estão convencidos de que formas coletivas de barganha pelo Sul possam funcionar. Alguns intelectuais e economistas chineses dizem que a crise deve ser usada como uma oportunidade para o país redirecionar sua produção e infraestrutura, aumentar o consumo, aumentar salários. Mas isso ocorre muito lentamente.

A questão é que, na medida em que a dívida de EUA, Europa e Japão não permita mais que eles consumam além de seus meios, os chineses enfrentarão um choque externo nos seus mercados de exportação que os forçará a se voltar para dentro e para a região.
É o que eu chamo de regionalização involuntária.

Apesar da simbiose com a China, Washington busca uma aliança com a Índia para contrabalançar a ascensão chinesa. Como isso entra no seu raciocínio?
Acho curioso que os EUA proponham à Índia que os ajude a conter a China porque eles foram os principais patrocinadores do sistema chinês nos últimos 30 anos. O que a Índia pode fazer para contrabalançar quando os EUA exportam suas indústrias para a China?
Vejo isso como uma tentativa do establishment militar e estratégico dos EUA de fazer um colchão para o caso de a China mudar em consequência do choque da queda da demanda externa.
Estão mantendo as opções abertas para se as elites chinesas tentarem romper com a atual divisão internacional do trabalho. Eles tentarão usar coalizões ou a ameaça do uso da força para encarecer essa escolha. A grande estratégia dos EUA é manter a China engajada na atual forma de globalização.

Na regionalização aberta que o sr. vê como saída, Brasil e África do Sul terão que atuar em sua região independentemente dos demais Brics.
Não vamos criar a visão idealista de que a competição estrutural no sistema internacional vai acabar. Os atuais emergentes podem e poderão competir uns com os outros e mesmo entrar em conflito. Índia e a China, por exemplo, podem competir por influência no sul e no sudeste da Ásia.

Mas a questão agora é que, apesar de todas as diferenças entre eles, os Brics deveriam ter o interesse comum de reduzir a assimetria no sistema internacional. São todos economias em desenvolvimento, com renda de média a baixa. O trabalhador indiano médio e o trabalhador chinês médio têm mais em comum do que as diferenças que o separam.

Faz sentido ter a Rússia no Brics?
O grupo só tem hoje valor geopolítico por causa do poder militar da Rússia. O dilema russo é como defender a agenda do Brics e ter ganhos no processo.
Quando a Rússia se absteve no caso da Líbia, esperou os outros decidirem e se escondeu atrás. O desafio hoje é passar desse processo em que cada um almeja uma vantagem individual por fazer parte dos Brics para outro em que os países sejam capazes de propor
uma agenda própria.

A relação da Rússia com os EUA melhorou muito desde o início do governo Obama.
Os EUA fizeram um recuo tático na relação com a Rússia porque estão enfrentando a crise econômica, a turbulência no Oriente Médio.
Quando houve o ataque russo ao governo pró-americano da Geórgia, em 2008, viram que humilhar a Rússia em seu exterior próximo tem um custo alto. Mas, embaixo da superfície, há uma competição do tipo da Guerra Fria entre os dois países.

Qual a importância da ampliação do Conselho de Segurança nesse contexto?
É o outro lado da questão econômica. Hoje o Conselho de Segurança está perdendo a capacidade de intervir na realidade. Na Líbia, por causa das divisões no Conselho, não será possível chegar a uma solução clara para o conflito. Mas acredito que o foco atual dos emergentes deve ser a governança econômica. Se você estiver preso na velha estrutura globalizada, qual o sentido de tentar entrar nas estruturas de segurança? Hoje a dependência econômica do centro impede o exercício do poder de veto. A China só o usou três vezes nos últimos 30 anos. Se não houver um elemento de simetria na interdependência, você não será capaz de usar a estrutura de governança de segurança.

Mas se a dinâmica interna na China e na Índia não mudar isso dificilmente acontecerá, não é?
Estou convencido de que a velha forma de globalização é um capítulo que está se encerrando. Você verá múltiplos pilares em que a semiperiferia lutará entre as pressões das conexões com o centro e as pressões regionais. Como os países do Bric vão lidar com essas pressões contraditórias é que estamos por ver.

E a substituição do dólar como moeda de reserva, demora?
Acho que a transição vai demorar cerca de dez anos para acontecer. O que vamos ver agora são moedas mais regionais que vão competir entre si por investimentos e credibilidade. A estrutura hierárquica será substituída por outra mais fragmentada e não é inconcebível que daqui a dez anos o yuan chinês tenha se tornado uma moeda regional no leste da Ásia e talvez para parceiros do Brics. Acho que a China já se deu conta de que os US$ 3 trilhões em papeis que tem na mão vão perder valor porque os EUA não vão pagar essa dívida. Vão inflacionar sua saída da crise, como estão fazendo.

RAIO-X

Nome: Zorawar Daulet Singh, 32
Formação: Economia na Universidade de Londres e relações internacionais na Johns Hopkins (EUA)
Atividade: analista e pesquisador do Centro para Políticas Alternativas, de Nova Déli, especializado em geopolítica asiática e na relação EUA-China
Livro: "Índia-China: the Border Issue and Beyond" (Índia-China, a questão fronteiriça e além)






Comentários

Deixe seu Comentário

URL Fonte: https://reporternews.com.br/noticia/89144/visualizar/