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Opinião
Quarta - 24 de Novembro de 2021 às 06:28
Por: Sérgio Cintra

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O tema da redação Enem/ 2021 (1ª aplicação) foi: “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. Como afirmei, em live, no último sábado: - Os textos motivadores têm, entre outras funções, o objetivo de delimitar sobre o que se deve e escrever e, simultaneamente, gerar um ambiente que provoque reflexão sobre o tema.

Muitos alunos relataram certa dificuldade em desenvolver essa redação, isso ocorreu não apenas pelo desconhecimento a respeito do assunto como também por não saber usar os textos motivadores para gerar repertório sociocultural produtivo.

Em um mundo cada vez mais individualista, é difícil olhar para o outro, principalmente se o outro estiver à margem da sociedade. Se não se consegue sentir o drama de parte significativa da sociedade (marginalizada); imagine estabelecer relações entre o Brasil do passado e o do presente, entre a escravidão e as sequelas por ela impostas a milhões de pessoas, entre o comportamento cultural (do não lugar) e a legislação vigente (que desde 1997 garante gratuidade no acesso à certidão de nascimento), por exemplo.

Além disso, como dito anteriormente, os textos motivadores servem, portanto, para situar, motivar, inspirar e contextualizar os participantes em relação ao tema.

Este ano, o Inep trouxe quatro textos de apoio (como prefiro chamá-los): o primeiro, um trecho da tese de doutorado de Fernanda Melo Escóssia que propõe uma etnografia da invisibilidade social (observe que o termo “etnografia” – estudo descritivo de etnia – está nos créditos do texto; o segundo, estima a quantidade de pessoas não cidadãs por conta da falta de documentos, primordialmente a certidão de nascimento; o terceiro, creditado ao Senado, discorre sobre a importância da certidão como instrumento de inclusão e de cidadania; o quarto, mescla linguagem verbal e não verbal, retirado e adaptado de www.ufgs.humanista. (sic), o gênero textual é o cartaz, traz a seguinte frase:

“Onde existem pessoas, nós enxergamos cidadãos”, assina a peça publicitária “Defensoras e defensores públicos pelo direito à documentação pessoal”. Dessa maneira, as ideias contidas nos motivadores, se bem identificadas e relacionadas a repertórios de mesmo eixo temático, conduziriam os partícipes à identificação da problematização: a invisibilidade causada pela falta do registro civil tendo, para mais de três milhões de brasileiros, como consequência o “não existir” nem para o Estado e suas políticas públicas nem para a sociedade nem para si.

Em 1948, a ONU, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 6º, exarou: “Todo ser humano tem o direito, em todos os lugares, de ser reconhecido como pessoa perante a lei”. Infelizmente, mais de sete décadas depois, o Estado e a sociedade brasileira negam (porque ao não ter ações eficazes que erradiquem essa mazela social, negam) à parcela significativa de nossa gente um direito elementar: ter o registro civil. E como cantou, relatando poeticamente essa invisibilidade social, o poetinha Vinicius de Moraes, em 1975:

“O meu vizinho do lado/ Se matou de solidão/ Ligou o gás, o coitado/ Último gás do bujão/ Porque ninguém o queria/ Ninguém lhe dava atenção/ Porque ninguém mais lhe abria/ As portas do coração/ Levou com ele seu louro/ E um gato de estimação// Há tanta gente sozinha/ Que a gente mal adivinha/ Gente sem vez para amar/ Gente sem mão para dar/ Gente que basta um olhar/ Quase nada/ Gente com os olhos no chão/ Sempre pedindo perdão/ Gente que a gente não vê/ Porque é quase nada// Eu sempre o cumprimentava/ Porque parecia bom/ Um homem por trás dos óculos/ Como diria Drummond/ Num velho papel de embrulho/ Deixou um bilhete seu/ Dizendo que se matava/ De cansado de viver/ Embaixo assinado Alfredo/Mas ninguém sabe de quê” e, oxalá, agora os “Alfredos” e “Alfredinas” possam se tornar visíveis e terem sua cidadania efetivada em uma simples certidão de nascimento.

Sérgio Cintra é professor de Linguagens e de Redação.



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