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Nacional
Domingo - 28 de Novembro de 2021 às 08:42
Por: Juliana Eliasdo CNN Brasil Business em São Paulo

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Getty Images/Bloomberg Creative / via Getty Images

Prestes a se formar em administração, o paulista de Indaiatuba, na Grande São Paulo, Kaique Pereira de Jesus, vive, aos 24 anos, uma realidade bem diferente do que a dele próprio alguns anos atrás e também de sua família inteira.

Trabalhando desde os 16 como aprendiz e auxiliar, conseguiu terminar a escola, fazer um cursinho popular e ser aprovado, em 2017, para a graduação no novo campus de Osasco da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), com ajuda das cotas para estudantes negros e de escola pública. Ele integrará a sétima turma a se formar pela escola, inaugurada em 2011.

Hoje, Kaique está em seu terceiro estágio no coração do centro financeiro paulistano: trabalha em um grande banco na capital e ganha uma bolsa auxílio próxima de R$ 3.000.

O valor fica ainda maior se somados os R$ 850 de vale refeição, que, enquanto trabalha de casa na pandemia, é o que está pagando o supermercado da família de seis pessoas com quem mora.

Com a minha primeira bolsa auxílio, trabalhando seis horas, eu já ganhava o mesmo de quando trabalhava como assistente, mas lá eu trabalhava 10 horas por dia, de sábado, domingo e feriado. Para a nossa realidade aqui de casa, é surreal.
Kaique Pereira de Jesus, estudante

Mesmo ainda estagiário, Kaique já tem a maior renda da casa. É o primeiro da família e ainda o único dos cinco filhos que caminha para ter ensino superior.

A mãe, empregada doméstica, sempre ganhou perto de um salário mínimo (R$ 1.100 em 2021). O padrasto – seu pai morreu quando era criança – trabalhou a maior parte da vida como autônomo e tem a renda inconstante.

Com o novo nível de ganhos nos estágios, Kaique conseguiu melhorar tanto a sua vida quanto a da família. O dinheiro a mais para o aluguel permitiu que mudassem para uma casa com três quartos – a anterior tinha três cômodos no total para os seis.

Também tirou carteira de motorista e está pagando as prestações de seu primeiro carro, o que deve encurtar o trajeto de quase duas horas de transporte público até o escritório quando voltar a trabalhar presencialmente.

Kaique (à frente) junto aos quatro irmãos e a mãeKaique (à frente) junto aos quatro irmãos e a mãe / Acervo pessoal

Nos piores momentos da pandemia, foi também ele que acabou virando o esteio da casa e garantindo do aluguel à conta de luz: a mãe foi dispensada do emprego de copeira, o irmão mais novo perdeu o trabalho como aprendiz e o comércio do padrasto, uma marmoaria, custou a engrenar.

“A bolsa auxílio foi um ‘superupgrade’”, diz o estudante, “consegui ajudar muito mais em casa, ajudar meus irmãos também e, para a gente, foi muito bom.”

Kaique é parte de uma revolução lenta e gradual, que foi aos poucos ganhando novas fases, mas que muda completamente a vida das pessoas a que alcança.

Eles são as primeiras gerações de famílias inteiras a chegar ao ensino superior, graças a um conjunto de políticas construídas ao longo das últimas duas décadas que ajudaram a ampliar o acesso à faculdade.

No início dos anos 2000, foram os primeiros grandes programas de cotas. Ao longo da década, se consolidaram os programas públicos de bolsas e financiamento como o ProUni e o Fies, que, por sua vez, puxaram o crescimento das faculdades privadas.

De 2010 em diante, seriam expandidas as unidades e vagas das universidades federais, muitas delas abertas em regiões que veriam uma instituição pública de ensino superior pela primeira vez – da periferia de grandes metrópoles ao sertão do Nordeste e o interior da Amazônia.

O total de campus das federais, que somava 152 em todo o país em 2003, saltou para 334 em 2018. Entre 2009 e 2019, as matrículas em graduação aumentaram 44%, de 5,9 milhões para 8,6 milhões de alunos.

Trata-se de um processo que vem de longa data, mas que, em um país onde só 16% dos jovens e adultos têm ensino superior completo, até hoje ainda está levando membros de muitas famílias à universidade pela primeira vez.

Made with Flourish

O dobro do salário em quatro anos

A cada vez que isso acontece, o resultado é quase padrão: com mais da metade da população vivendo com menos de um salário mínimo, em atividades de pouca qualificação e em que a progressão profissional é quase nula, os jovens de baixa renda que conseguem furar a fronteira para a universidade demoram muito pouco a alcançar ou mesmo ultrapassar o salário que os pais ganharão a vida inteira.

É um fenômeno que, se para as famílias de classe alta e média alta parece estranho, para as mais pobres só não é amplamente comum porque os desafios para que coloquem e mantenham os filhos na faculdade ainda são muitos.

Vão desde a falta de vantagens na disputa pelas vagas e a concorrência desde cedo do trabalho com os estudos até a dificuldade em arcar com a mensalidade ou mesmo custos acessórios como transporte e alimentação.

“A universidade introduz a ideia de crescimento sempre, de se renovar ao longo da vida. A geração anterior, além de muito menos acesso ao ensino superior, não foi ensinada a aprender durante a vida toda”, diz o economista Marcelo Neri, diretor do FGV Social, centro de pesquisas em políticas públicas da Fundação Getulio Vargas.

Um estudo feito por Neri em 2018, cruzando os dados populacionais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), mostrou que para cada um ano de ensino superior concluído no Brasil, a renda da pessoa aumenta em 21% em comparação ao que ela ganhava antes ou à dos que ficaram para trás. “Com um curso de quatro anos de nível superior, a renda vai praticamente dobrar”, diz o economista.

“Temos vários alunos entrando agora no mercado de trabalho e, como a grande maioria é da região, de famílias mais pobres, certamente já começarão recebendo muito mais que seus pais”, diz a reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Joana Angélica Guimarães, que também é vice-presidente da Andifes, associação que reúne os reitores das universidades federais do país.

Mais universidades

Criada em 2013 em Itabuna, a UFSB começou a formar suas primeiras turmas em 2018 e atende os cerca de 45 municípios do entorno de Ilhéus e Porto Seguro, onde, até então, não havia universidade pública.

Estudantes da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), em ItabunaEstudantes da UFSB, em Itabuna: 70% dos alunos são pretos e pardos / ACS/UFSB

Os valores dos estágios na região são bem mais baixos do que no centro financeiro de São Paulo – na faixa de R$ 400 a R$ 800, de acordo com Joana –, mas acompanham a renda local.

“Tem muito trabalhador informal e muita gente da zona rural que ganha menos do que um salário mínimo”, diz a educadora. “Nossa universidade é um exemplo dos impactos da ampliação da oferta de vagas; muitos não conseguiriam mudar e se manter em Salvador para estudar.”

Enquanto só em 2019 a rede total de universidades públicas do país alcançou a marca de 50% dos alunos pretos e pardos, na UFBA eles são mais de 70%, a grande maioria egressa de escola pública e de famílias com renda familiar per capita inferior a um salário mínimo.

“É uma realidade muito diferente de quando eu entrei na faculdade”, relembra Joana, que saiu aos 15 anos da zona rural de Itabuna com os seis irmãos e os pais para conseguir estudar e foi a única negra de sua turma de geologia, no Rio Grande do Sul, onde se formou na década de 1980.

“Eu me sentia deslocada, feia, não tinha roupa, fui tratada de forma muito ruim em diversas situações”, diz. “À época eu fui uma exceção. Políticas como cotas e ampliação das vagas certamente ajudam muito.”

Joana Angélica GuimarãesJoana Angélica Guimarães, reitora da UFSB e vice-presidente da Andifes / Foto: ACS/UFSB

Porta para a formalidade

Além de salários mais altos, cruzar a linha do ensino superior também alarga o caminho para outra segurança do mercado de trabalho valiosa em um Brasil de desemprego alto: a formalidade.

Durante a pandemia, que levou o país a níveis recordes de desemprego, foram os jovens os que mais sofreram, vítimas de uma concorrência com trabalhadores mais experientes dispostos a receber os salários mais baixos.

A taxa de desocupação entre as pessoas de 18 a 24 anos está hoje em 29,5%, ante os 13% quando considerada a população total, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Fatores como emprego registrado e diploma universitário, porém, funcionam como uma espécie de escudo em um momento em que muitos autônomos e informais, historicamente desamparados de políticas de proteção, ficaram sem alternativa à falta de trabalho. Entre os trabalhadores com diploma, o desemprego está em apenas 7,5%, quase a metade da média nacional.

Os jovens foram o grupo mais afetado pela pandemia, e o jovem de baixa renda perdeu ainda mais; mas o jovem com ensino superior está de certa maneira mais protegido. A pandemia pode acabar, ao fim, exacerbando essa divisão e essa desigualdade.
Marcelo Neri, diretor do FGV Social

Na casa de Kaique, por exemplo, foi o estagiário do grande banco quem continuou com o trabalho mantido durante a pandemia e segurou as despesas da casa enquanto mãe, padrasto e irmão tinham perdido a renda.

É uma história parecida também com a de Rayssa Moura, estudante de 21 anos de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, que se forma neste ano no curso de terapia ocupacional, por uma faculdade particular onde conseguiu bolsa.

Tanto a mãe, faxineira, como o pai, montador de andaimes que faz bicos para grandes empresas, tinham trabalhos temporários que acabaram interrompidos no começo da pandemia.

Foram Rayssa e a irmã, recém-formada em jornalismo e funcionária de uma emissora, com ajuda ainda do irmão mais novo, que seguraram as contas da casa enquanto isso – incluindo o plano de saúde que começaram a pagar para a mãe, hoje com 50 anos.

“Eu falei para ela não procurar outro emprego agora”, diz a filha. “Por conta da limpeza, ela tem vários problemas na coluna, está agora fazendo fisioterapia e acupuntura, e a gente está dando conta de tudo.”

Rayssa foi promovida no meio do ano na clínica terapêutica onde estagiava, e viu o salário de R$ 1.000 subir para a faixa dos R$ 3.000 – valor que ainda deve ficar maior quando estiver efetivamente formada.

Além de permitir afastar a mãe do esforço físico, a renda mais alta trouxe também uma série de melhorias e pequenas regalias para Rayssa e sua casa.

“A gente nunca almoçava fora, eu nunca tinha ido ao Outback e hoje posso ir. Conseguimos tirar carta, fazemos bate-volta para a praia, comecei a fazer terapia, e minha mãe, que passou quase dez anos sem ver a mãe dela por causa das condições financeiras, hoje viaja duas vezes por ano para a Bahia”, conta a universitária.

São pequenos mimos, mas eu vejo que a nossa qualidade de vida melhorou muito.
Rayssa Moura, estudante

Progressão interrompida

O medo dos especialistas, agora, é que essa evolução, já lenta para o tamanho do déficit educacional brasileiro, acabe interrompida, em um misto de rupturas da pandemia, que tiraram muitos jovens dos estudos, com enxugamento nas políticas de incentivo.

A proporção dos “nem-nem” – os jovens que nem estudam e nem trabalham – subiu de 22% para 29,5% durante a pandemia, de acordo com Marcelo Neri, da FGV Social.

Tanto a oferta pelo governo quanto a procura por bolsas do ProUni e do Fies estão caindo, enquanto muitos recém-formados, sem emprego, não conseguem pagar o financiamento estudantil que já tinham.

A ampliação de vagas nas universidades federais perdeu força e, de acordo com levantamentos feitos pela Andifes, o orçamento do governo para elas vem caindo desde 2015.

“Infelizmente, há uma conjuntura bastante desfavorável e, apesar da tendência de melhora, é possível que essa ascensão a que assistimos esteja em desaceleração”, disse Neri. “Talvez, da Covid para frente, tenhamos uma geração partida, entre os jovens que avançaram e aqueles que agora ficarão para trás.”





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