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Internacional
Quinta - 17 de Outubro de 2013 às 20:49

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Elas desconstroem a imagem da mulher como vítima da guerra: pegam em armas, são matadoras profissionais e, no meio da selva africana, fazem os mesmos trabalhos que os rebeldes homens. Registradas pela fotógrafa italiana Francesca Tosarelli, as mulheres que lutam nos grupos guerrilheiros da República Democrática do Congo seguram fuzis com as unhas das mãos pintadas de vermelho e comandam grupos inteiros de soldados clandestinos.

A fotógrafa italiana Francesca Tosarelli (Foto: Arquivo pessoal)

A fotógrafa italiana Francesca Tosarelli ficou quatro
meses na selva africana (Foto: Arquivo pessoal)
MAPA Congo (Foto: Editoria de Arte / G1)

Francesca, de 29 anos, passou quatro meses na selva com os grupos, entrevistando e fotografando seu cotidiano, para criar a série inédita "Ms. Kalashnikov" - "Senhorita Kalashnikov" [tipo de arma].

"É um assunto fascinante porque essas mulheres não se encaixam em nenhum papel estabelecido pela sociedade. Elas podem ser mães e assassinas profissionais ao mesmo tempo", disse Francesca em entrevista ao G1, por e-mail.

A italiana (conheça mais aqui, no site dela em inglês), que morou no Brasil quando era pequena, conta como ganhou a confiança dos comandantes e de que forma a luta faz parte da vida das mulheres no coração da África. "Como ser humano, como fotógrafa e como mulher, eu tentei não julgá-las. Nunca."

A chegada
Francesca conta que começou a entrar em contato com o assunto no final de 2012. "Basicamente, fiquei fascinada com como as linhas divisórias de gênero são turvas, no geral, e nesses conflitos em particular. Fiquei obcecada com a ideia de uma "guerrilheira fêmea" e sua identidade ambígua e eu queria saber se havia alguma (além de nas Farc [guerrilha colombiana] e no PKK [partido curdo da Turquia]) que eu ainda não conhecia. Descobri pelos meus amigos antropólogos que há".

Para ter certeza da existência das guerrilheiras, a fotógrafa viajou até a República Democrática do Congo (RDC), onde foi apresentada a alguns comandantes do grupo guerrilheiro M23 e começou um "longo processo de meses para conseguir acesso adequado."

"Eu ficava geralmente sob controle dos comandantes, que queriam ver exatamente do que eu estava tirando fotos. Muito devagar, eu conseguia alguns minutos sozinha. Tudo era questão de tempo. Eu não era autorizada a dormir com elas ou ficar por vários dias."

Os grupos
O movimento 23 de Março (M23) foi criado em maio de 2012 na instável e rica província mineradora de Norte-Kivu, leste da RDC. O grupo, composto principalmente por ex-rebeldes tutsis congoleses que ingressaram no exército da RDC, combate, desde então, as forças governamentais e os capacetes azuis da ONU - cuja operação é chefiada por um brasileiro.

A ONU e o governo congolês acusam os vizinhos Ruanda e Uganda de apoiar os rebeldes, o que os dois países negam. As conversas de paz entre a RDC e o M23 começaram em Kampala, em 10 de setembro, mas estão paralisadas.

A coronel Fanette Umuraza, de 32 anos, mantém as unhas pintadas mesmo integrando o grupo M23. Foto feita no território de Rumangabo, controlado pelos guerrilheiros (Foto: Francesca Tosarelli)

Coronel Fanette Umuraza, de 32 anos, mantém as
unhas pintadas mesmo integrando o grupo M23. A
foto foi feita no território de Rumangabo, controlado
pelos guerrilheiros (Foto: Francesca Tosarelli)
Até em momentos de paz, a vida na floresta não é fácil sem água corrente, eletricidade, dormindo em barracas, longe dos amigos e da família, rodeada por basicamente comandantes homens. Essas mulheres são fortes e lidam com uma rotina muito difícil"
Francesca Tosarelli, fotógrafa italiana
 
A major Masika Ngheleza Queen, de 26 anos, em Kiwanja. Ela se formou em negócios e contabilidade antes de lutar pelo Mai Mai La Fontaine e, depois, pelo M23. Em 2012, rebeldes Mai Mai a espancaram devido à decisão de se unir ao M23 (Foto: Francesca Tosarelli)

A major Masika Ngheleza Queen, de 26 anos, foi
espancada por rebeldes Mai Mai depois que ela se
uniu à guerrilha do M23 (Foto: Francesca Tosarelli)
A feminilidade pode ser vista na superfície em muitos detalhes, como na unha pintada, nos brincos ou em um corte de cabelo ou nas tranças. Todas fizeram questão de parecer mulher enquanto eu tirava fotos"
Autor
Kanieremervè Uivin e a major Francine Kanier patrulham território controlado pelo grupo Mai Mai Shetani/FDP em Nyamilima. As duas integram a milícia há um ano (Foto: Francesca Tosarelli)

Kanieremervè Uivin e a major Francine Kanier em
área do grupo Mai Mai Shetani/FDP. Elas integram
a milícia há um ano (Foto: Francesca Tosarelli)

"Os rebeldes do M23 pedem direitos humanos, democracia e boa governança. Eles acusam o presidente Kabila de roubar nas eleições de 2011 e ameaçam marchar em Kinshasa e depor o presidente", explica Francesca

Outro grupo documentado pela fotógrafa é o Mai Mai Shetani. "É um grupo pequeno que basicamente defende seu território local contra outros grupos armados. Grupos que ficam sob o guarda-chuva do termo Mai Mai incluem forças lideradas por senhores da guerra, líderes tribais antigos, chefes de vilarejos e rebeldes de resistências politicas. O termo não se refere a um movimento, afiliação ou objetivo político particular, mas a uma variedade de grupos.

As mulheres
"Até em momentos de paz, a vida na floresta não é fácil sem água corrente, eletricidade, dormindo em barracas, longe dos amigos e da família, rodeada por basicamente comandantes homens. Essas mulheres são fortes e lidam com uma rotina muito difícil", explica a fotógrafa.

Segundo ela, nos grupos Mai Mai, as meninas tinham um passado muito parecido. "A maioria tem ao menos um parente que foi morto por milícias rivais, isso cria um senso e desejo de vingança. Na verdade, a maioria não tem muitas outras opções (não há dinheiro para frequentar a escola), então a decisão de ir para a milícia não é tão difícil de ser tomada."

Algumas das mulheres que a fotógrafa conheceu decidiram mandar os filhos para morar com os tios, longe, e outras preferiram não se casar.

Francesca conta ainda que a feminilidade das mulheres é perceptível em muitos detalhes. "Esse é meu maior interesse na pesquisa, a complexidade dos papeis de gênero, feminilidade e masculinidade e as linhas turvas que os dividem. Por diferentes razões (ideológicas, políticas, de vingança) elas são garotas muito determinadas e mulheres que fizeram uma escolha forte."

"A feminilidade pode ser vista na superfície em muitos detalhes, como na unha pintada, nos brincos ou em um corte de cabelo ou nas tranças. Todas fizeram questão de parecer mulher enquanto eu tirava fotos, mas mesmo normalmente, durante o dia-a-dia, elas gostam de mostrar essa parte."

O medo e a aventura
Francesca viveu episódios tensos durante o projeto - como quando quase teve que passar a noite em um ponto de inspeção rebelde -, mas quando perguntada sobre os melhores momentos da viagem, ela diz que foram justamente as experiências difíceis. "Trabalhar com rebeldes significa muita estratégia e adrenalina ao mesmo tempo. Talvez eu seja uma viciada? Quem sabe? Provavelmente o melhor momento foi quando eu percebi pela primeira vez que eu realmente achei as guerrilheiras mulheres. DE VERDADE. Tinha sido um sonho por meses, apenas na minha cabeça e nas pesquisas, mas ninguém sabia antes de sua existência."

"Ser uma mulher, fotógrafa independente e trabalhando sozinha significa viver experiências fortes, e fico feliz que tenha aprendido muito sobre mim", conta ela. "Como qualquer um ali, você tem que lidar com agressividades diárias. O Congo é um lugar ilógico, e você precisa achar maneiras criativas para solucionar todos os problemas."

O Brasil - e a liberdade do sertão
"Eu morei no Brasil por seis anos, eu era uma criança e meus pais foram trabalhar para uma pequena ONG italiana em Esperantina, no Piauí. Eles trabalharam em um projeto longo de desenvolvimento. Minha infância brasileira foi mágica. Eu vivia em um ambiente selvagem (sertão) e eu era muito livre."

Francesca aprendeu português antes do italiano e conta que não se sentia italiana quando voltou. "Minha realidade era a do sertão. Quando meus pais me trouxeram de volta para a Itália, eu fiquei muito brava, eu não sentia que a Itália era minha casa por um bom tempo, não tinha crianças brincando nas ruas, tudo tinha regras rígidas, ninguém dançava como eu dançava no Piauí..."

A fotógrafa conta que voltou ao Brasil algumas vezes e ainda sente uma "conexão intensa" com o país. "Amo a forma como vocês se conectam entre si, amo a vida na rua, a simplicidade como vocês conseguem conhecer novas pessoas, as dimensões da dança. Amo dançar, samba… Você sabe, o destino é irônico, quem sabe, talvez em breve você brasileiros venham até a Itália para nos resgatar da pobreza causada pela crise… :)!

Detalhes no quarto da major Masika Ngheleza Queen, de 26 anos, em Kiwanja. Em 2012, rebeldes Mai Mai a espancaram devido à decisão de se unir ao M23. No porta-retrato, uma imagem de sua irmã, Denadine (Foto: Francesca Tosarelli)

Detalhes no quarto da major Masika Ngheleza Queen, de 26 anos, em Kiwanja. Em 2012, rebeldes Mai Mai a espancaram devido à decisão de se unir ao M23. No porta-retrato, uma imagem de sua irmã, Denadine (Foto: Francesca Tosarelli)




Fonte: Do G1

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