Macedonio Fernández inventou conceito de "zapping" literário
O século 21 "será macedoniano", anunciou o romancista argentino Ricardo Piglia no documentário "Macedonio Fernández", que ele realizou com o cineasta Andrés di Tello e que está disponível, sem legendas, no YouTube. Prova disso talvez seja a inesperada atualidade que uma de suas criações, o "leitor salteador", nestes tempos de internet.
Num dos infindáveis prólogos de "Museu do Romance da Eterna" (tradução Gênese Andrade, Cosac Naify), que acaba de ser publicado no Brasil, Macedonio desenvolve sua famosa teoria dos "leitores salteados" --aqueles que, mesmo pulando páginas, não deixam de ser "leitores completos". Fragmentário, o livro antecipa os saltos do leitor e "pula" o texto para ele, numa espécie de "zapping" literário.
Em 2009, em entrevista à Folha, para Sylvia Colombo, Ricardo Piglia (disponível para assinantes) reconheceu no internauta do século 21 o "leitor salteado" de Macedonio, "que já não é aquele que está isolado, concentrado e lutando contra a interrupção".
Por que a extravagante personalidade do autor do "Museu do Romance da Eterna", escrito ao longo de toda a sua vida e publicado postumamente em 1967, continua fascinando os escritores argentinos e rendendo um extenso anedotário?
Macedonio tentou fundar, por volta de 1897, uma comuna anárquica com três ou quatro pessoas, numa ilha perto da fronteira do Paraguai --o pai de Borges, Jorge Guillermo, não foi, pois estava para se casar. Eram "náufragos da sociedade", como diz Ricardo Piglia em seu documentário. Sobre essa experiência, Borges cravou: a colônia libertária "durou o que costumam durar tais utopias".
Nos anos 1920, ao ficar viúvo, Macedonio abandonou os quatro filhos, que seriam criados por parentes, para dedicar-se à fermentação das vanguardas literárias nos cafés e revistas de Buenos Aires. Dedicou-se também às suas proverbiais manias, narradas por seus discípulos incansáveis como Jorge Luis Borges, como a de mudar de casa constantemente, tendo morado em inúmeras pensões portenhas e em casas nos arrabaldes de Buenos Aires.
Entre as excentricidades do amigo, escreve Borges, estavam "o nacionalismo" (Macedonio apoiou todos os presidentes da República, na certeza de que o povo argentino "não erra"); o medo da odontologia (o que o levava a golpear-se em público para amolecer os dentes e assim evitar o boticão); e a paixão pelas prostitutas de rua.
Numa carta ao amigo, Macedonio escreveu: "Caro Jorge Luis: desculpe-me por não ter ido ontem à noite. Eu estava indo, mas sou tão distraído que no caminho me lembrei que havia ficado em casa. Estas constantes distrações são uma vergonha, e às vezes me esqueço de me envergonhar também".
As primeiras notícias sobre o "Museu do Romance da Eterna", escrito para sua falecida mulher, remontam aos anos 1920. Borges, Macedonio e amigos pretendiam escrever um romance coletivo, "O Homem que vai ser Presidente": a história de um grupo de conspiradores, liderado por um certo "Presidente", que pretende tomar a cidade de Buenos Aires.
O projeto não foi para a frente, mas Macedonio faria do Presidente o protagonista do seu "Museu do Romance da Eterna", escrevinhando ao longo de décadas em dezenas de cadernos e pedaços de papel que o acompanhariam pelo resto da vida. A edição experimental da Cosac Naify, de autoria da designer Elaine Ramos, procura recriar a sensação de um amontoado de páginas de diferentes formatos.
O "Museu do Romance da Eterna" é um curioso labirinto de prólogos que se sucedem, anunciando uma narrativa que nunca vem: em vez de preparar o leitor para entrar no recinto do romance, os prólogos constituem o próprio território da narrativa. A primeira publicação do livro, em 1967, de certa maneira traiu os ideais de seu autor, que almejava um eterno ineditismo, escrevendo sem jamais concluir o manuscrito ou publicar.
CANDIDATO À PRESIDÊNCIA
A presidência da República era mais uma das obsessões de Macedonio, que declarava ter a intenção de disputar as eleições como candidato independente, arregimentando amigos e fãs numa bizarra pré-campanha que alguns levaram a sério, outros como pura gozação.
Quem conta é Jorge Luis Borges, cuja irmã participou de uma mobilização de Macedonio para "insinuar-se na imaginação das pessoas de modo mais sutil e enigmático": em vez da "fácil" citação em jornais, pediu que seus conhecidos escrevessem seu nome em pedaços de papel que eram "esquecidos" em confeitarias, bondes, cinemas etc.
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