Produção continua na Capital e corpo sente impacto
São 19h30. Osmar Caldeira Batista observa com atenção as garrafas de plástico que percorrem a esteira, uma atrás da outra, em uma corrida sem fim. Ele é coordenador de produção da Refrigerantes do Noroeste S/A (Renosa), franqueadora da Coca-Cola do Brasil em Mato Grosso e no Maranhão.
Osmar acompanha a fabricação das bebidas com um instrumento parecido com o fone de ouvido, que evita uma baita dor de cabeça pelo incômodo barulho das máquinas. Ele está na empresa há 9 anos, 5 somente no período noturno, com jornadas de trabalho de 12h por 36h, ou seja, trabalha em dias alternados. "Prefiro a noite. É mais calma e eu já me acostumei".
Outro atrativo é o adicional noturno de 25% sobre as horas trabalhadas.
A função de coordenador é muito dinâmica, como destaca o gerente industrial da empresa, Gilson Evandro Steluti. Além do monitoramento, Osmar faz relatórios, analisa as trocas de sabores na máquina, o embalo dos produtos, etc.
Quem também troca o dia pela noite é a técnica de qualidade Graziele Lopes. O emprego dela é considerado o sonho de muitas pessoas: "degustadora" de refrigerantes.
Graziele tem a função de analisar se houve alteração no sabor das bebidas e experimenta, a cada 30 minutos, os produtos até as 6h30 do outro dia. Nesse período, não somente ela, mas todos os trabalhadores noturnos da fábrica têm uma hora para a refeição.
Formada pelo antigo Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet), ela está na função há 2 anos, provando os sabores a uma temperatura de 4 graus Celsius, logo após a saída da última fase da produção. "Toda a vez que provo, tenho que colocar no relatório".
A Renosa conta com uma média de 45 funcionários à noite em uma linha de produção avaliada em R$ 20 milhões, tanto em atuação direta na produção quanto em setores como empilhamento, manobrista, laboratório, xaroparia, controle de qualidade, entre outros. A empresa tem um trabalho ininterrupto, com jornadas divididas das 6h30 às 18h30 e das 18h30 às 6h30. Devido à demanda, a linha dos refrigerantes PET de 1,5 litro, 2 litros e 2,5 litros não param.
O principal motivo para o terceiro turno é para que o investimento em milhões de reais possa ser otimizado, isto é, que ele se pague no menor tempo possível. Pensando economicamente, não "compensa" para a indústria deixar a linha paralisada, pois estaria perdendo recursos. "Principalmente com a carga tributária que temos. Não se consegue fazer o investimento se não maximizar o ativo. Cem por cento das indústrias trabalham nesse sentido", disse Gilson Steluti.
O gerente industrial explica que as atividades diurnas e noturnas são idênticas, com a mesma estrutura automatizada. Por isso, a noite é responsável por 50% da produção da empresa. "E no verão, os níveis de venda aumentam".
Certos dias, o terceiro turno é até mais produtivo que a manhã e a tarde juntas, pois o período diurno sempre é o escolhido para manutenções de máquinas. Cada manutenção significa paralisação da produção e redução (mesmo que temporária) na fabricação dos refrigerantes.
Água do rio - O motorista Lúcio da Silva Júnior, 33, é outro trabalhador que inicia suas atividades às 19h30 e para por volta da 1h. Um amigo aluga o caminhão-pipa para que ele trabalhe jogando água nas plantas dos canteiros das principais avenidas de Cuiabá.
Lúcio atua de segunda a sábado e diz que deve molhar no período noturno porque é o menos movimentado do dia. "O trânsito é muito mais tranquilo".
Além dele, que trabalha na avenida Historiador Rubens de Mendonça (CPA), um colega faz o mesmo serviço na Fernando Corrêa da Costa, próximo ao 9º Batalhão de Engenharia e Construção (BEC) e também pode ser visto na Miguel Sutil.
Motorista há 14 anos (6 nessa função), ele busca água diretamente do Rio Cuiabá, já que não pode ser potável para que o cloro não mate as plantas, além de ser gratuita. "Como não tive oportunidade de estudo, preciso trabalhar aqui".
Cada ida ao rio são 11 mil litros de água abastecidos no caminhão. A duração é, em média, de 45 minutos por serviço, ou seja, toda a noite as plantas recebem ao menos 6 caminhões de água.
Por vezes, os lavadores de carros "emprestam" água dele para lavar os veículos das pessoas que jantam nas pizzarias e restaurantes da avenida do CPA. Mas esse não é o principal obstáculo dele. Lúcio dorme apenas 4 horas por noite, já que no período diurno tem outro emprego (também como motorista).
Delivery - Carlos Alberto Nascimento de Alcântara, 44, faz por noite cerca de 7 entregas no restaurante Duca"s 7. Ele começa suas atividades às 18h e recebe por cada serviço R$ 3, além de um salário mínimo ao mês. "Só um salário não dá. Tenho que ter 2 empregos. Entrego pizza desde 1990 e só por 3 anos que eu não precisei trabalhar de dia".
Ele percorre geralmente as regiões do Coxipó, Coophamil, Santa Rosa e em Várzea Grande, somente na área central.
No mesmo restaurante trabalha o gerente Geraldo Pereira de Almeida Filho, 41. Ele chega ao local por volta das 15h e sai no início da madrugada. "Gerente é na correria. Cochilou, o cachimbo cai", diz ele com uma pequena risada em seguida.
A partir das 19h, após o final do expediente em várias empresas da cidade, o restaurante inicia a sua movimentação. Geraldo não relaxa, fica em pé observando o atendimento, a segurança, o caixa e como os alimentos são preparados. À sombra do gerente está o sócio-proprietário Luís Henrique de Magalhães, 49, que há 23 anos atua no ramo, sempre fechando a empresa enquanto o resto da cidade dorme. "Por noite, recebemos uma média de 250 pessoas".
Alface - Contra o sono não há como lutar, já que é uma batalha perdida. "Ela perdeu a direção na curva e bateu na muretinha. Essa curva sempre tem acidentes, principalmente quando chove", disse o 2º sargento do Corpo de Bombeiros Anderson César Carulla ao observar um Clio prata amassado devido a batida ocorrida há poucos instantes. O acidente aconteceu próximo a avenida Mato Grosso e deixou retorcida a frente do veículo, assim como o parabrisa quebrado.
O sargento estava registrando a placa do automóvel em uma prancheta e explicava à reportagem que a condutora sofreu uma fratura na perna. A mulher, que estava com a filha no banco do passageiro, havia dormido ao volante.
Carulla trabalha desde as 8h e iria até o mesmo horário do dia seguinte. "Hoje cortamos um grande alface (árvore). Você tinha que ver. Olha como eu tô sujo. Sem falar dos suicídios que nós temos que atender".
Ele trabalha em turnos de 24h por 48h e está nesse serviço há 20 anos. "Mas provavelmente amanhã nós não vamos sair 8h. Como temos que terminar de cortar a árvore (que havia caído em uma residência no bairro Pedra 90), talvez eu saia meio-dia".
Santa noite - Apesar de no período noturno a maioria dos pacientes estarem dormindo e o horário de visita encerrar às 20h, o pronto-atendimento (PA) do Hospital Santa Rosa está movimentado. Após as 22h, a recepção da instituição passa a ser o PA, por isso todos os atendimentos são centralizados nela.
A recepcionista Vera Lúcia Alexandre, 40, lembra que o hospital recebe de tudo um pouco: ferido a tiro, pessoas picadas por cobra, esfaqueados, entre outras vítimas. A televisão é a única distração, além da garrafa de café localizada próximo à porta, junto ao segurança. Vera Lúcia diz que o movimento noturno é parecido com o do dia e, assim como parte dos entrevistados, prefere indiscutivelmente trabalhar a noite. "Tem menos gente e não dá tanto sono porque nós nunca paramos".
O enfermeiro de assistência noturna Everton Tubino é responsável pelo primeiro andar do hospital, pelos pacientes que ficam nos apartamentos. Esse é seu primeiro mês no turno das 19h às 7h (fazendo 12h por 36h), pois ele pretende ter outro emprego durante o dia. "Temos 2 horas e meia de repouso por noite. Nesse período intercalo com outro enfermeiro que geralmente vem do térreo para dar suporte no primeiro andar".
A supervisora noturna Maria Quitéria da Silva afirma que os dias mais movimentados são terças e quintas, quando ocorrem cirurgias e o paciente precisa de maior atenção à noite. "Todas as cirurgias acontecem durante o dia. Só ocorre à noite se for caso de urgência".
No hospital, o número de funcionários no período noturno ultrapassa 100. O único setor que não funciona é o administrativo.
Limpa e iluminada - O gari Sebastião Francisco de Carvalho, 59, trabalha há 15 anos na função. "Comecei dia 15 de agosto de 1995". Desses, há 2 anos está na Praça Ipiranga, no período noturno.
Carvalho lembra que nenhum dos drogados ou bêbados que ficam na área central da Capital o incomodaram no seu ambiente de trabalho. O mesmo não pode ser dito entre eles. "Há uns 10 meses vi um cara matar o outro com uma faca naquele corete", apontou o gari ao lugar onde são feitas músicas e apresentações na praça. "O que morreu estava dormindo".
Há 4 quadras de Sebastião está o técnico de Redes e Linhas das Centrais Elétricas Matogrossenses (Cemat), Valdemir Meira, 40. No combate ao "apagão", em um pequeno hotel no centro de Cuiabá, Valdemir sobe a escada próxima ao padrão elétrico. "Foi o barramento que quebrou".
Para trabalhar à noite, ele assume plantões com um colega, que fica iluminando o padrão enquanto Valdemir verifica o "barramento". Os turnos deles geralmente vão até 4h, horário em que milhares de cuiabanos e várzea-grandenses precisam acordar para conseguir entrar no ônibus lotado e chegar antes das 7h no trabalho.
Extinto - "No trabalho à noite, o corpo está no piloto automático", afirmou o médico do trabalho, Ivanio Ballagnol, por isso, nas palavras dele, o corpo age por extinto.
O médico explica que os acidentes são mais frequentes no trabalho noturno comparado ao que é realizado durante o dia. "Eles falam isso (que preferem trabalhar à noite) para não perderem o emprego, porque precisam muito dele".
Ivanio, que é médico em um frigorífico em Mato Grosso, diz que os acidentes no período noturno têm aumento de 40% comparado ao diurno. "O pedido de demissão de quem trabalha à noite é 20% maior também".
Segundo ele, mesmo que haja menos pessoas no ambiente de trabalho nas madrugadas, o serviço realizado é o mesmo, assim, como os resultados também devem ser iguais.
Ele conclui lembrando que, além da atenção, o comportamento sexual do funcionário também é comprometido. "O número de dissolução do casamento aumenta, e não é por causa de traição. É porque a pessoa não consegue fazer um bom desempenho em casa".
Pesquisas - Várias pesquisas sobre o impacto do trabalho noturno na vida das pessoas já foram feitas e todas apontam problemas que podem ser desenvolvidos. Entre os estudos, um de 2007, da Organização Mundial da Saúde (OMS), feito com enfermeiras e aeromoças, chegou a apontar que as profissionais que trabalhavam no turno da noite tinham maiores chances de desenvolver o câncer de mama. Também foram constatadas alterações nos ritmos cardíacos e propensão a queda nas defesas imunológicas destes trabalhadores.
Outro instituto, o ISMA (International Management Stress Association), realizou um estudo no Brasil no qual constatou que 40% dos trabalhadores que exercem sua atividade no turno da noite desenvolvem algum distúrbio na visão, em casos mais extremos podendo chegar à cegueira. Já os dados obtidos pelos pesquisadores espanhóis são ainda mais alarmantes. De acordo com o estudo da Unidade do Sonho de Barcelona e do Serviço de Neurofisiologia do Hospital da Paz de Madri, os profissionais que atuam no turno da noite perdem 5 anos de vida para cada 15 anos trabalhados.
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