Messi driblou limitação física e regras para crescer na base do Barcelona
Era 17 de setembro de 2000, e Gaggioli estava no aeroporto El Prat, em Barcelona. Tinha ido buscar esse seu compatriota de 13 anos, que chegava de Rosário com o pai.
Sua primeira impressão chocava-se com o que, como empresário, teria de fazer de ali em diante --convencer um dos maiores clubes do mundo de que o garoto podia, sim, jogar muito futebol, conforme lhe diziam seus sócios na Argentina.
Para Lionel Andrés Messi, provar seu domínio sobre a bola seria, como em toda a sua vida, a parte fácil. O que o melhor jogador do mundo teve que superar com ainda mais obstinação foram percalços outros que não as botinadas dos zagueiros.
Sobretudo a partir daquele dia em Barcelona, o início do que ele definiria como "anos complicados". Do aeroporto, pai e filho foram ao hotel Catalonia Plaza, ao lado da montanha de Montjuic. O hotel não guardou registro da estadia. Os hóspedes, sim: uma foto em que Messi aparece na janela, com a praça ao fundo. Uma lembrança de duas semanas de angústia.
Depois de impressionar os técnicos das divisões de base do Barça, precisava da aprovação de seu chefe, Carles Rexach, que estava em Sydney, na Olimpíada. Messi e seu pai resolveram voltar a Rosário. O clube pediu calma.
O dia decisivo chegou, e Rexach chegou atrasado. Mas subiu ao gramado bem no instante em que o argentino fazia uma de suas demonstrações. O sinal verde piscou ali.
Diario Sport |
Ficha de cadastro de Messi na Federação Catalã, em 2002 |
"Foi muito fácil. Qualquer técnico já via o que ele iria ser", conta Quimet Rifé, então responsável pelas categorias de base do Barcelona. "Muita gente diz que viu primeiro. Mas Messi não foi descoberto. Ele se descobriu sozinho."
Com o ok do clube, o argentino voltou a Rosário para preparar a mudança. Só que o ok não era tão ok assim.
"A diretoria, recém-chegada, não tinha tanto interesse em jovens como tinha em buscar jogadores para o primeiro time", diz Josep María Minguella, sócio do clube que foi a ponte entre Gaggioli, o argentino do aeroporto, e Rexach, do Barça. "As prioridades eram outras. Queriam ganhar partidas logo."
Os problemas não paravam aí. Messi não se encaixava na política habitual das divisões de base. O clube não costumava contratar garotos estrangeiros. Menos ainda tão novos. A regra nem lhe permitia jogar todos os torneios.
O menino ficou dois meses na Argentina aguardando uma palavra mais firme do Barça. Seu pai ameaçava oferecê-lo a outras equipes. Pressionado durante um almoço, Reixach, o assistente técnico do time, pediu um guardanapo a um garçom, escreveu que o clube se comprometia a contratar Messi e assinou. Gaggioli ainda tem o documento --num cofre.
O próprio Barça, porém, ainda demoraria mais um mês para enviar um compromisso à família, depois de a diretoria exigir um relatório sobre a aposta que o clube faria. Rexach foi sucinto. Descreveu Messi como "acollonant" ("impressionante").
A bola estava com a família, que precisava decidir se casaria a aposta. "Sentamos ao redor de uma mesa e estivemos todos de acordo. Lionel tinha muita vontade de ir", disse o pai de Messi, Jorge, ao Canal+. Em fevereiro de 2001, pai, mãe e os quatros filhos desembarcaram em Barcelona.
O clube os alojou em um hotel próximo ao seu estádio, o Camp Nou. Como parte do acordo, arrumou um emprego para o pai de Messi. O argentino começou a treinar. "Era tão pequeno que dava medo tocá-lo. Alguns treinadores nos diziam que não entrássemos forte para não lesioná-lo", relata em sua biografia o zagueiro Piqué.
Apesar disso, os problemas de Messi apenas continuaram.
O Newell"s Old Boys, o clube onde jogava na Argentina, se recusava a enviar seu certificado de transferência. Com documentação provisória, entrou em campo e saiu contundido. Longe dos gramados, a irmã mais nova do jogador, María Sol, chorava por não compreender o catalão na escola. A família retornou à Argentina e repensou seu futuro. Sua mãe e seus irmãos iriam ficar na Argentina.
Messi sentiu o baque. "Chorava sozinho, me trancava para ninguém saber. Do básico nunca me faltou nada, mas do afetivo sim", disse o jogador ao jornal "El País". Mas bateu o pé: queria continuar no Barça, e o pai ficou com ele.
Pois tentar a carreira em seu país era algo que Messi já havia feito.
Ganhou uma bola aos quatro anos e, carregado pela avó, logo começou a jogar perto de sua casa. Segundo descreveu sua mãe, era um garoto travesso. Que roubava no baralho. Que não gostava de ir à escola. Que queria mesmo era jogar bola.
Sport |
Lionel Messi celebra título conquistado nas "canteras" (categorias de base) do Barcelona |
Passou ao complexo das Malvinas, o centro de treinamento do Newell"s, principal clube de Rosário. Integrava uma equipe conhecida como "Máquina 87" --uma referência ao ano de nascimento dos garotos e ao que faziam com os adversários. Era o craque do time.
Um amigo de infância contou que uma vez Messi não apareceu para jogar a final de um torneio que premiava os campeões com bicicletas. O time perdeu o primeiro tempo por 1 a 0. O argentino tinha ficado trancado em casa, mas escapou em tempo de marcar os três gols do título na segunda etapa.
Mas já aí havia outro problema que não os zagueiros. Aos nove anos, tinha apenas 1,27 m. A família procurou um médico. O diagnóstico: seu corpo não produzia hormônio de crescimento suficiente. O tratamento custava em torno de R$ 30 mil anuais, dinheiro que os Messi não tinham.
O pai buscou ajuda numa fundação. Conseguiu pagar as doses por dois anos. O próprio Messi se aplicava as injeções, antes de dormir. Uma picada em cada perna.
O atacante mede hoje 1,69 m. "Ele teve uma resposta muito boa ao tratamento", afirma Diego Schwarzstein, seu médico em Rosário. Ele diz que a incidência da doença chega, quando muito, a 1 caso em cada 4.000 nascimentos --o diabetes, por exemplo, atinge cerca de 3% da população.
O dinheiro para as doses, porém, voltou a faltar. Jorge Messi recorreu ao Newell"s, que topou ajudar, mas não foi por muito tempo. Cansado, levou o filho ao River Plate, mas o clube não quis negociar com o Newell"s. Abria-se o caminho para uma história incomum: um ídolo do futebol argentino que nunca passou por nenhum dos dois grandes times da capital.
O que ajuda a explicar a dupla imagem que tem hoje em seu país, de "Messi de cá" e "Messi de lá".
O "de lá" começou a emergir em 2003, meses depois de o Barcelona apresentar o que seria seu próximo grande ídolo, Ronaldinho --de quem Messi herdaria a camisa 10. O argentino estreou no time principal com o número 14 às costas, pelas mãos do técnico Frank Rijkaard.
Os espanhóis adorariam que ele fosse para sempre um "de lá", brilhando na Fúria. Mas os argentinos foram rápidos: organizaram jogos da seleção sub-17 e também o estrearam com a camisa albiceleste, impedindo legalmente que ele defendesse a Espanha, apesar da dupla cidadania.
Na seleção principal, sua primeira vez como um "de cá" foi traumática: entrou no segundo tempo de um amistoso, foi expulso 40 segundos depois por dar uma cotovelada e passou o resto do tempo chorando do lado de fora.
Como lamentaria, também de fora, contundido, perder a final da Liga dos Campeões de 2006, vencida pelo Barcelona. Aquele time, porém, falharia ao buscar o grande título que faltava o clube, o Mundial. Um vazio que o próprio Messi resolveria em dezembro passado, ao liderar a conquista inédita.
É admirado no clube pelo senso de equipe. "Trabalha como os demais", disse o lateral Daniel Alves, o brasileiro mais próximo de Messi hoje. Há antídoto para isso? "Tem que estar bem posicionado. É um jogador muito difícil de marcar individualmente.". Na Espanha e no Brasil, somam-se vozes dizendo que os adversários lhe dão liberdade demais.
No Barcelona, Messi tem mais liberdade tática que alimentar _Guardiola o incentivou a trocar os churrascos pelos pescados, mas permite que num mesmo jogo ele se alimente em qualquer posição do ataque.
Na Argentina, a coisa não está tão azeitada. Messi nasceu em 1987, depois do título mundial, do gol de mão e do gol do século de Maradona. Idolatra o treinador, mas os dois ainda não acharam uma maneira de reproduzir na seleção seu jogo no Barça.
Tampouco é um problema de agora. O atacante saiu da última Copa marcado por ter ficado no banco enquanto a equipe caía diante da Alemanha. No livro "Messi, el Nen que no Podia Créixer" (inédito no Brasil), o jornalista italiano Luca Caioli relata a sensação, naquela equipe argentina, de que Messi dava pouco valor a rituais internos. Tomado da Nike pela Adidas, teve sua imagem superexplorada no Mundial, o que provou ciúme.
Ele é o jogador mais midiático do mundo, segundo a Universidade de Navarra. Porém mantém a timidez que sempre o acompanhou. Costuma disparar em direção ao vestiário quando o juiz apita. Na definição do escritor inglês John Carlin, "extremamente difícil é pouco para definir quão atormentadoramente frustrante é o exercício de entrevistá-lo".
Tal característica só parece ser quebrada diante do PlayStation. Os jogadores que o conheceram nas categorias de base do Barça brincam que foi graças ao videogame que descobriram que ele não era mudo. Messi diz que não gosta de ler. Nem demostra grande esforço em falar o catalão, orgulho do Barça.
Mas, com seus gols, conquistou a torcida do clube, que discute se vive uma "messidependência" e que renovou seu contrato até 2016, impondo a quem quiser levá-lo uma multa de 250 milhões de euros (batizada de "cláusula antiflorentino", em homenagem ao presidente do Real Madrid).
Só que, quando volta a Rosário, como no Natal passado, Messi é obrigado a se explicar. "Faço o mesmo esforço pela seleção. Se não consegui mais até agora, não é porque não queira."
O bisavô de Messi emigrou da Itália para a Argentina no século 19. O hospital onde o jogador nasceu em Rosário homenageia um italiano conhecido dos brasileiros, Giuseppe Garibaldi, o herói de dois mundos. Messi já ganhou o Velho Mundo. Aos 22 anos, vai atrás, na Copa, de conquistar o outro --o seu velho mundo.
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