Em 2 anos, foram 401 mortes em Mato Grosso, principalmente de menores, e famílias ficam entre medicina moderna e cura pela religião
Criança internada na Capital retrata dilema dos indígenas
Retrato da saúde indígena em Mato Grosso, a pequena Fabrícia Bakairi, de 2 meses e 20 dias, luta pela vida. Ela está internada na UTI neonatal do hospital Santa Rosa há 46 dias, com quadro de infecção generalizada ocasionada a partir de uma pneumonia. Sua família enfrenta o dilema de acreditar na medicina moderna ou na cura a partir de suas práticas religiosas.
"Os brancos não sabem do nosso remédio caseiro. Na aldeia, a gente mata bicho para fazer oferenda em troca da cura", afirmou o pai de Fabrícia, Romilson Bakairi, 22.
Na semana passada, ele e vários Bakairis adentraram a UTI do hospital, munidos de arco e flecha, e ameaçaram retirar a pequena Fabrícia do local. Desde que foi internada, ela está ligada a um respirador, sem o qual não consegue viver.
De acordo com a médica pediatra Isa Keila do Amaral Vieira, quanto mais a criança apresenta dependência do aparelho, maior a possibilidade de desenvolver alguma sequela. Até o momento, Fabrícia tem fortes indícios de que ficará com sequelas neurológicas. Seu estado é considerado grave, segundo a médica.
Quando chegou ao hospital, seu quadro apresentava suspeitas de coqueluche, bronquite, tuberculose e pneumonia. "Ela não estava assim tão ruim quando chegou aqui, mas os médicos nunca descobriam o que ela tinha. Viemos para cá porque, no hospital em Paranatinga, eles não tinham paciência e queriam que ela engolisse o remédio de uma vez, mas ela é pequena, não toma remédio como a gente que é grande", afirmou Romilson.
Com o olhar cansado, Romilson é o retrato da convivência de índios com a cultura branca: ele afirma que não sabe mais em que acreditar e explicou que não teve tempo de fazer os rituais de cura na aldeia. "Depois de um mês de nascida, ela começou a tossir muito e levamos ela até o atendimento de saúde. Depois veio direto pra cá. A gente tá lutando".
A mãe de Fabrícia, Fabiana Bakairi, 18, afirma que diante da explicação do médico sobre o estado de saúde da filha, concordou em esperar por sua recuperação. "Ele disse que nesses casos um tem que ajudar o outro até que ela fique boa".
Desde então, o pajé Vicente Kaiawa Baikari, que também é bisavô de Fabrícia, adotou uma nova rotina: todos os dias ele realiza um ritual de pajelança na UTI neonatal do hospital Santa Rosa. Fabiana e o esposo afirmaram que em momento algum os médicos proibiram a retirada da criança, apenas os aconselharam.
Com as luzes apagadas, Vicente utiliza de fumaça, palavras e cantos para colaborar com a saúde de Fabrícia. O pajé não entende como ela adoeceu, mas conta que problemas na respiração são muito comuns em sua aldeia, localizada a 300 km de Paranatinga (373 km ao sul de Cuiabá).
Atualmente, uma criança Bakairi, de apenas 1 ano, se encontra na Casa do Índio (Casai). De acordo com Romilson, ela apresentou o mesmo quadro de sintomas de sua filha, mas já está recuperada e vai para casa, onde moram outros 600 indígenas da etnia, divididos em 8 aldeias. A própria esposa do pajé sofre de bronquite há anos, segundo Romilson.
A pediatra Isa Keila afirma que este não é o único caso de bebês indígenas que entram em conflito com a medicina. "É muito comum em Mato Grosso".
Segundo a médica, o contato cada vez mais intenso com a população branca, vem causando os quadros de internação e mortes em indígenas. "Eles não têm imunidade para doenças que em nós não seriam tão graves. Imagine um bebê".
O pajé, que carrega no peito uma medalha de Nossa Senhora Aparecida, acredita na recuperação da bisneta. Fabiana afirma que ainda não desistiu de esperar pela melhora da filha. "Mas nós temos tradição. Por enquanto, tenho que me conformar".
Retrato - Quatrocentos e um índios morreram por problemas de saúde em Mato Grosso nos últimos 2 anos. O relatório da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), responsável pelo atendimento médico dos indígenas, aponta que em 2008 foram 201 óbitos e 200 em 2009. Os problemas no aparelho respiratório foram responsáveis por 35,5% das mortes no Estado, contabilizando 71 vítimas no último ano.
Porém, o número de mortos pode ser maior que o divulgado pela Funasa. Em outubro passado, a etnia Xavante denunciou que 123 nativos haviam ido a óbito por falta de assistência médica.
Denúncia - Conforme representantes dos Xavantes, a maioria das mortes registradas é relacionada a crianças com menos de 4 anos que foram a óbito por desnutrição e desidratação, principalmente nas aldeias de Campinápolis, General Carneiro, Barra do Garças e Novo São Joaquim.
Eles reclamam do abandono enfrentado e descaso do poder público com saúde indígena, que não dispõe nem mesmo de medicamentos. Em Mato Grosso existem 179 aldeias da etnia, distribuídas em 9 áreas distintas, com uma população de 19 mil nativos.
Vacinação - Os índios entraram no grupo preferencial de vacinação contra a Influenza A H1N1 no Brasil. Em Mato Grosso, a expectativa é vacinar 35.379 nativos, dos quais até o momento foram imunizados 17.255, conforme dados do Ministério da Saúde. O montante alcançado representa 48% do total da cobertura prevista.
A Influenza A H1N1 matou índios em todo território nacional e em Mato Grosso não foi diferente. No Estado, a doença fez 2 vítimas da etnia Panará e deixou mais de 10 Xavantes internados, que afirmam ainda terem registrado óbitos provocados pela gripe suína.
A doença chegou às aldeias por conta do contato com os não-índios cada vez mais frequente.
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