Seres que sobrevivem sem água inspiram técnica de preservação de órgãos
É o fenômeno da anidrobiose, uma das estratégias de sobrevivência mais fascinantes e pouco compreendidas do planeta. Um grupo de biólogos brasileiros quer domesticar a anidrobiose e colocá-la a serviço da medicina moderna. A possibilidade mais ambiciosa da pesquisa: descobrir como se produz um coração de pedra. Literalmente de pedra.
Mudando vidas
"Já me cansei de dar palestras dizendo para as pessoas que a vida delas nunca mais será a mesma depois de me ouvir", brinca Tiago Campos Pereira, reconhecendo que a ideia tem um quê de megalomania.
Entusiasmo não falta ao biólogo, recém-aprovado para o cargo de professor na USP de Ribeirão Preto. Os olhos de Pereira brilham ao explicar os detalhes bizarros do fenômeno. "É quase como se o organismo se transformasse inteiramente num mineral, numa espécie de cristal", compara ele.
A anidrobiose, em geral, é um último recurso de organismos relativamente simples que, como todas as outras formas de vida, dependem de água para manter seu metabolismo andando. Os mestres do truque são animais como os rotíferos (os invertebrados minúsculos que ilustram esta reportagem) e as artêmias (pequenos crustáceos que os peixes de aquário adoram devorar). Mas criaturas maiores também são capazes de entrar nesse estado e sair dele sem maiores problemas.
"Um exemplo impressionante é a planta-da-ressurreição [nome dado a várias espécies de vegetais de áreas desérticas], que realmente parece ser capaz de ressuscitar", conta Pereira.
O que acontece é que, diante de situações ambientais adversas, nas quais o organismo "sabe" (sem consciência disso, claro) que não vai conseguir sobreviver, o metabolismo é simplesmente desligado. A animação suspensa em estado "mineral" pode ser prorrogada por anos a fio, até que as condições melhorem e a criatura em questão possa retomar sua vidinha de sempre. Agora, o pulo-do-gato: imagine a utilidade disso para preservar qualquer tipo de material biológico --um coração a ser transplantado, por exemplo-- nas situações mais adversas do mundo.
"O grande desafio é que os animais anidrobiontes são pequenos, da ordem de milímetros, em comparação com os tecidos e órgãos humanos. Orquestrar todo esse processo de entrada e saída da anidrobiose em estruturas orgânicas tão grandes será um desafio para a biologia molecular, celular e de tecidos", reconhece Pereira.
O trunfo do pesquisador para atingir esse objetivo é conhecido como Panagrolaimus superbus. Apesar do nome grandiloquente, trata-se de um verme nematoide, uma das formas mais simples de invertebrado. O P. superbus tem duas grandes vantagens: é um anidrobionte e, ao mesmo tempo, é parente do C. elegans, verme que é um dos organismos mais estudados nos laboratórios mundo afora. Com o C. elegans, os biólogos aprenderam como estudar a função de dezenas de genes em paralelo, graças ao uso da RNAi (interferência de RNA). É tudo uma questão de dar a comida certa ao bicho.
A RNAi consiste em "silenciar" ou "desligar" certos genes de maneira indireta, com a ajuda de formas específicas de RNA, a molécula "irmã" do DNA. A técnica impede que a receita para a produção de proteínas contida nos genes vá para a "linha de montagem" da célula. Assim, se o gene deixou de servir de receita para proteínas, a falta que isso faz para o organismo é percebida pelos cientistas, os quais podem inferir a função de cada região do DNA para o bicho.
Repasto de RNA
Pereira explica que basta oferecer um lanchinho especial aos C. elegans para que a técnica funcione --são bactérias que produzem as moléculas responsáveis por iniciar a RNAi.
"Vimos que o mesmo processo pode ser feito em P. superbus. Além disso, como ambos são nematoides, isso permite que diversas técnicas de biologia molecular, de cultivo em laboratório e manipulação de C. elegans, muito bem conhecidas e estabelecidas, sejam aplicadas em P. superbus", diz ele.
Manipular o funcionamento de muitos genes em paralelo é importante porque isso deve ajudar a elucidar as vias metabólicas que regem a anidrobiose, ou seja, a interação entre muitos genes que torna possível esse fenômeno. O maior desafio vem depois: aplicar esse conhecimento a células e tecidos de mamíferos --e, espera-se, humanos, os maiores interessados no truque.
"A anidrobiose é um mistério, tanto na entrada quanto na permanência e na saída desse estado. O que sabemos é que o processo existe na natureza, ou seja, é possível emergir dele sem graves danos", diz Pereira.
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