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MPF apura 101 casos de escravidão
O Ministério Público Federal apura 101 denúncias de trabalho escravo em Mato Grosso. São casos de todas as regiões, onde o trabalhador é submetido a situações degradantes. São vítimas da servidão por dívida e da falta de liberdade para locomoção. Tudo é cobrado, desde a passagem para que cheguem até Mato Grosso, a ferramenta de trabalho que vão utilizar, os produtos de higiene e a comida que vão consumir. A cobrança é feita pelos "gatos", os administradores do negócio que agem a mando do fazendeiro, que recrutam os serviçais.
Esses "gerentes" oferecem garantia de salário, de alojamento e comida. Seduzem os trabalhadores oferecendo adiantamentos para as famílias e garantia de transporte gratuito até o local de trabalho. Mas a realidade que essas pessoas encontram assim que pisam nos alojamentos improvisados, muitas vezes distante mais de 100 km da propriedade, é o aviso de que tudo que já consumiram está anotado em um caderno de dívidas, que fica guardado com o "gato". No armazém do patrão, o valor cobrado por cada quilo de arroz ou lata de óleo chega a ser 10 vezes superior ao que seria pago se a compra fosse feita em supermercados na cidade.
No entanto, a distância e a falta de opção de locomoção deixam essas pessoas sem alternativas. São obrigados ao cumprimento de jornadas exaustivas, que tomam todo o tempo livre e não têm direito a sequer um dia de folga. A frequência também é anotada pelo "gato" e prevê descontos no pagamento no final do mês caso não seja cumprida de forma satisfatória aos olhos do patrão. Por causa disso, por mais que o contrato estabeleça uma faixa de R$ 30 a diária por hectare roçado, a maioria não recebe sequer um centavo de salário.
Deles, ainda são tomados os documentos. "Nessa hora, a pessoa se torna um ninguém, sem identidade e não tem como voltar para o local de onde veio, porque já está devendo ao patrão. Para deixar essa situação e sair dali, ela precisa de dinheiro e se submete ao trabalho escravo", afirma a representante da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do MPF, a procuradora Vanessa Cristina Marconi Zago Ribeiro Scarmagnani.
Depoimentos colhidos nos locais em que alguns foram resgatados dão conta que quem se arrisca, reclama das condições e tenta fugir é vítima de surras, entre outras penalidades.
Levantamento feito em campo pelos fiscais do comitê de fiscalização do trabalho escravo aponta que as condições de alimentação, alojamento e sanitária são infinitamente precárias. Os barracos ficam em locais muito afastados da sede da fazenda, praticamente escondidos, no meio do mato, para evitar denúncias e até mesmo possíveis fugas. Para dormir, são oferecidas tábuas que substituem colchões. Outros têm um pouco mais de "luxo" e passam as noites em redes.
Em algumas fazendas, o trabalhador chega a dormir no mesmo local onde são armazenados produtos explosivos, ou ainda em ambientes propícios à proliferação de animais peçonhentos.
Na fazenda Liberdade, localizada em Campo Verde (131 km ao sul de Cuiabá), o grupo flagrou a comida oferecida aos trabalhadores. Na panela, apenas banha na gordura quente. Lá, as paredes dos dormitórios eram de plásticos usados para embalar produtos químicos e as camas eram de papelão. O fogão funcionava no chão, em meio a tijolos e madeiras. Fotos comprovam que no único reservatório de água disponível para beber, no meio de um matagal aberto, havia um surpreendente líquido verde localizado. De lá, foram resgatadas 44 pessoas em 2008.
Outro ponto que quase sempre fundamenta as denúncias é a ausência de assistência médica. Quando é oferecida, geralmente quando o paciente está à beira da morte, o atendimento é cobrado.
Viúva de Antônio de Souza Silva, 24, que morreu em 2003 vítima de um acidente com motosserra ao cortar uma árvore no município de Vila Rica (1.259 km de Cuiabá), Silvana Ribeiro Ferreira relatou, em depoimento, a morte trágica do marido e as condições humilhantes em que viviam. Informou que antes de se mudar para a fazenda Jataúba, ele era vaqueiro e nunca tinha tido contato com uma motosserra, tampouco feito cursos de manuseio, instrumento que foi obrigado a comprar para poder trabalhar. Contou ainda que ao ter a testa machucada por um pedaço de madeira não recebeu qualquer atenção médica. O local de trabalho ficava a mais de 2 mil metros do barraco onde moravam, separados por um caminho "cheio de pedras", que dificultava ainda mais a subida da serra. Falou ainda que na fazenda não havia sequer um carro para o transporte do acidentado. Nesta fazenda, o grupo de fiscalização apreendeu 19 motosserras e 25 trabalhadores foram resgatados.
Outro exemplo é a fazenda Santa Eulália, que fica em Tapurah (433 km a médio-norte da Capital). Um dos resgatados, Adolfo Ferreira, chegou a afirmar em depoimento que "a comida não era ruim, embora a carne que lhes era fornecida estivesse exposta a insetos, estando sempre cheia de larvas, uma vez que não tinham local para seu devido armazenamento".
Valdeci Magalhães Souza morava em Rosário do Oeste quando foi convidado a trabalhar na fazenda Santa Eulália, em Tapurah. Em depoimento à procuradoria, disse que morava em um barraco de plástico e folhas de palmeiras construído na beira de uma floresta, embora não estivesse fazendo desmatamento. Disse acreditar que o "alojamento foi construído neste local para que ficasse escondido de quem visitasse a fazenda". Além de ficar em um ambiente sem as mínimas condições básicas de conforto, para fazer sequer as necessidades fisiológicas, o trabalhador contou que comprava do "gato" os produtos que necessitava, mas nunca soube o valor cobrado por itens como pasta de dente, papel higiênico, fumo e isqueiro, porque o agenciador não informava. Afirmou que podia deixar a fazenda quando quisesse, "só que sem receber pelo trabalho realizado" e que a mesma água que bebia matava a sede do gado.
Diferente do que a maioria pensa, este tipo de situação não ocorre apenas em locais afastados, mas sim próximos de grandes centros. A diferença é que quase sempre são muito escondidos e são descobertos somente por denúncias. "Isso acontece muito mais no campo, mas pode acontecer do nosso lado sem que percebamos", pontua a procuradora.
Um exemplo é o caso de 2 irmãos deficientes mentais que foram encontrados, em 2007, trabalhando em um ferro velho em uma das principais avenidas de Várzea Grande em condições análogas à escravidão. Antes de se mudarem, João e José Brandino moravam na zona rural de Cáceres. Ao chegarem na cidade, onde a promessa era de emprego, tiveram os documentos retidos e sofriam todo tipo de maus-tratos. O dono do ferro velho, José Nilson dos Santos, foi denunciado na época, mas até hoje não foi condenado.
Segundo o MPF, a condenação deste tipo de crime é difícil, principalmente por falta de acesso às vítimas. Por causa disso, uma alteração no Código Penal possibilitou a produção de provas antecipadas no momento do flagrante, com a colheita do depoimento. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) discutida na Câmara Federal prevê, entre outros itens, que o fazendeiro perca a terra para que o dinheiro seja revertido em benefício aos trabalhadores, no pagamento de direitos trabalhistas, por exemplo.
Esses "gerentes" oferecem garantia de salário, de alojamento e comida. Seduzem os trabalhadores oferecendo adiantamentos para as famílias e garantia de transporte gratuito até o local de trabalho. Mas a realidade que essas pessoas encontram assim que pisam nos alojamentos improvisados, muitas vezes distante mais de 100 km da propriedade, é o aviso de que tudo que já consumiram está anotado em um caderno de dívidas, que fica guardado com o "gato". No armazém do patrão, o valor cobrado por cada quilo de arroz ou lata de óleo chega a ser 10 vezes superior ao que seria pago se a compra fosse feita em supermercados na cidade.
No entanto, a distância e a falta de opção de locomoção deixam essas pessoas sem alternativas. São obrigados ao cumprimento de jornadas exaustivas, que tomam todo o tempo livre e não têm direito a sequer um dia de folga. A frequência também é anotada pelo "gato" e prevê descontos no pagamento no final do mês caso não seja cumprida de forma satisfatória aos olhos do patrão. Por causa disso, por mais que o contrato estabeleça uma faixa de R$ 30 a diária por hectare roçado, a maioria não recebe sequer um centavo de salário.
Deles, ainda são tomados os documentos. "Nessa hora, a pessoa se torna um ninguém, sem identidade e não tem como voltar para o local de onde veio, porque já está devendo ao patrão. Para deixar essa situação e sair dali, ela precisa de dinheiro e se submete ao trabalho escravo", afirma a representante da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do MPF, a procuradora Vanessa Cristina Marconi Zago Ribeiro Scarmagnani.
Depoimentos colhidos nos locais em que alguns foram resgatados dão conta que quem se arrisca, reclama das condições e tenta fugir é vítima de surras, entre outras penalidades.
Levantamento feito em campo pelos fiscais do comitê de fiscalização do trabalho escravo aponta que as condições de alimentação, alojamento e sanitária são infinitamente precárias. Os barracos ficam em locais muito afastados da sede da fazenda, praticamente escondidos, no meio do mato, para evitar denúncias e até mesmo possíveis fugas. Para dormir, são oferecidas tábuas que substituem colchões. Outros têm um pouco mais de "luxo" e passam as noites em redes.
Em algumas fazendas, o trabalhador chega a dormir no mesmo local onde são armazenados produtos explosivos, ou ainda em ambientes propícios à proliferação de animais peçonhentos.
Na fazenda Liberdade, localizada em Campo Verde (131 km ao sul de Cuiabá), o grupo flagrou a comida oferecida aos trabalhadores. Na panela, apenas banha na gordura quente. Lá, as paredes dos dormitórios eram de plásticos usados para embalar produtos químicos e as camas eram de papelão. O fogão funcionava no chão, em meio a tijolos e madeiras. Fotos comprovam que no único reservatório de água disponível para beber, no meio de um matagal aberto, havia um surpreendente líquido verde localizado. De lá, foram resgatadas 44 pessoas em 2008.
Outro ponto que quase sempre fundamenta as denúncias é a ausência de assistência médica. Quando é oferecida, geralmente quando o paciente está à beira da morte, o atendimento é cobrado.
Viúva de Antônio de Souza Silva, 24, que morreu em 2003 vítima de um acidente com motosserra ao cortar uma árvore no município de Vila Rica (1.259 km de Cuiabá), Silvana Ribeiro Ferreira relatou, em depoimento, a morte trágica do marido e as condições humilhantes em que viviam. Informou que antes de se mudar para a fazenda Jataúba, ele era vaqueiro e nunca tinha tido contato com uma motosserra, tampouco feito cursos de manuseio, instrumento que foi obrigado a comprar para poder trabalhar. Contou ainda que ao ter a testa machucada por um pedaço de madeira não recebeu qualquer atenção médica. O local de trabalho ficava a mais de 2 mil metros do barraco onde moravam, separados por um caminho "cheio de pedras", que dificultava ainda mais a subida da serra. Falou ainda que na fazenda não havia sequer um carro para o transporte do acidentado. Nesta fazenda, o grupo de fiscalização apreendeu 19 motosserras e 25 trabalhadores foram resgatados.
Outro exemplo é a fazenda Santa Eulália, que fica em Tapurah (433 km a médio-norte da Capital). Um dos resgatados, Adolfo Ferreira, chegou a afirmar em depoimento que "a comida não era ruim, embora a carne que lhes era fornecida estivesse exposta a insetos, estando sempre cheia de larvas, uma vez que não tinham local para seu devido armazenamento".
Valdeci Magalhães Souza morava em Rosário do Oeste quando foi convidado a trabalhar na fazenda Santa Eulália, em Tapurah. Em depoimento à procuradoria, disse que morava em um barraco de plástico e folhas de palmeiras construído na beira de uma floresta, embora não estivesse fazendo desmatamento. Disse acreditar que o "alojamento foi construído neste local para que ficasse escondido de quem visitasse a fazenda". Além de ficar em um ambiente sem as mínimas condições básicas de conforto, para fazer sequer as necessidades fisiológicas, o trabalhador contou que comprava do "gato" os produtos que necessitava, mas nunca soube o valor cobrado por itens como pasta de dente, papel higiênico, fumo e isqueiro, porque o agenciador não informava. Afirmou que podia deixar a fazenda quando quisesse, "só que sem receber pelo trabalho realizado" e que a mesma água que bebia matava a sede do gado.
Diferente do que a maioria pensa, este tipo de situação não ocorre apenas em locais afastados, mas sim próximos de grandes centros. A diferença é que quase sempre são muito escondidos e são descobertos somente por denúncias. "Isso acontece muito mais no campo, mas pode acontecer do nosso lado sem que percebamos", pontua a procuradora.
Um exemplo é o caso de 2 irmãos deficientes mentais que foram encontrados, em 2007, trabalhando em um ferro velho em uma das principais avenidas de Várzea Grande em condições análogas à escravidão. Antes de se mudarem, João e José Brandino moravam na zona rural de Cáceres. Ao chegarem na cidade, onde a promessa era de emprego, tiveram os documentos retidos e sofriam todo tipo de maus-tratos. O dono do ferro velho, José Nilson dos Santos, foi denunciado na época, mas até hoje não foi condenado.
Segundo o MPF, a condenação deste tipo de crime é difícil, principalmente por falta de acesso às vítimas. Por causa disso, uma alteração no Código Penal possibilitou a produção de provas antecipadas no momento do flagrante, com a colheita do depoimento. Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) discutida na Câmara Federal prevê, entre outros itens, que o fazendeiro perca a terra para que o dinheiro seja revertido em benefício aos trabalhadores, no pagamento de direitos trabalhistas, por exemplo.
Fonte:
A Gazeta
URL Fonte: https://reporternews.com.br/noticia/161699/visualizar/
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