Ciência começa a abrir caminho para filhos biológicos de casais gays
Imagine um futuro no qual, quando alguém fizer aquele velho comentário de família sobre crianças fofinhas – “Nossa, é a cara do pai!” –, será preciso perguntar “Do pai número um ou do pai número dois?”.
A mera ideia parece coisa de quem tem um parafuso a menos. Mas, ao menos em princípio, não tem nada de impossível. A descoberta de que qualquer célula do nosso corpo tem potencial para retornar a um estado primitivo e versátil pode significar que homens são capazes de produzir óvulos e mulheres têm chance de gerar espermatozoides. Ou seja, casais gays, de ambos os sexos, podem ter filhos biológicos.
Quem se empolga com essa possibilidade deve agradecer às chamadas células iPS (sigla inglesa de “células-tronco pluripotentes induzidas”), cujas capacidades aparentemente miraculosas estão começando a ser estudadas. Elas são funcionalmente idênticas às células-tronco embrionárias, que compõem o organismo de embriões com poucos dias de vida e conseguem dar origem a todos os tecidos do corpo humano, dos músculos do coração aos neurônios do cérebro.
As células iPS não passam de células adultas (extraídas da pele, por exemplo) que, em laboratório, são revertidas ao estado embrionário por meio de manipulação genética. A coisa funciona porque todas as células do nosso organismo carregam o mesmo conteúdo de DNA, possuindo, portanto, a mesma "receita" genética que dá origem ao corpo inteiro. O processo seria uma mão na roda para produzir tecidos sob medida para transplantes, sem riscos de rejeição (seria; ainda não foi testado para valer). Mas também abre a possibilidade aparentemente impensável mencionada acima.
“Os pesquisadores já conseguiram produzir espermatozoides a partir de células embrionárias. Nada impede que também consigam isso com as células iPS. E, se isso acontecer, o debate ético vai deixar no chinelo o que hoje existe em torno da pesquisa com embriões”, prevê o biólogo Stevens Kastrup Rehen, que estuda as células iPS na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em falta
Em tese, para possibilitar o nascimento de bebês com o DNA de dois pais (ou de duas mães), bastaria obter amostras de células do casal e reprogramá-las para produzir o tipo de célula sexual “em falta” – espermatozoides no caso de mulheres, óvulos no caso de homens. Por causa da ausência do sistema reprodutor feminino, um casal de homossexuais do sexo masculino precisaria de uma mãe de aluguel para gestar seu bebê; já mães lésbicas poderiam decidir qual das duas daria à luz seu filho biológico.
Por incrível que pareça, homens teriam, em tese, chances iguais de gerar filhos de ambos os sexos, enquanto mulheres só poderiam engendrar mulheres. A explicação está nos cromossomos sexuais, estruturas que determinam o sexo em mamíferos como nós. Meninas têm dois cromossomos X, enquanto meninos possuem um X e um Y. Assim, a junção de um X de cada mãe só poderia levar a uma mulher (XX). Uma forma de contornar isso seria inserir artificialmente um cromossomo Y no DNA de uma das mães. "Nesse ponto ainda estamos no campo da ficção científica. Trata-se de algo bem difícil", diz Rehen.
Além desses detalhes, existe uma importante complicação adicional. É que trechos do DNA das células sexuais ficam marcados quimicamente, indicando quais genes vieram do pai e quais vieram da mãe. Essa marcação é essencial para o desenvolvimento correto do bebê. Segundo Rehen, esse “certificado de origem” desaparece quando a célula original é reprogramada. Não se sabe se um óvulo criado a partir de células masculinas vai continuar com a marcação tipicamente masculina ou ganhará “traços” femininos.
Enquanto os cientistas não aprenderem a controlar isso com precisão, a técnica provavelmente será tão arriscada e ineficiente quanto a clonagem, exigindo centenas de fecundações, bem como gestações de alto risco para a mãe e para o feto. É uma barreira considerável – mas está longe de ser eterna ou insuperável.
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