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Saúde
Segunda - 23 de Março de 2009 às 12:33

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Mariana Cotrim dos Reis, 19, sempre foi considerada calma e muito forte. Quando criança, nunca chorava após um machucado, mesmo depois de quebrar o braço ao cair de uma mesa ou de ter o dedo prensado no portão por um primo. Também sempre tomou injeções de benzetacil passivamente --até hoje diz que prefere agulha a comprimido, para evitar que se esqueça de tomá-lo.

Mais suspeitas, no entanto, sempre foram as reações de seu pai, o metalúrgico Ismail Reis, 50. Apesar de os familiares considerarem anedota boa parte das histórias, ele insiste em contar da vez em que, num jogo de futebol, deslocou o joelho e "resolveu ali mesmo" o problema, recolocando-o no lugar.

Sem contestação é o fato, testemunhado por sua mulher, de que Ismail arrancou um dente em casa, com a mão. "O dente estava latejando, incomodava muito. Então o arranquei no quintal mesmo e depois lavei a boca com água e sal", explica.

Até cinco anos atrás, pai e filha não tinham explicação para a insensibilidade à dor.

"Nunca estive no corpo de outra pessoa para entender o que é sentir dor. Como poderia saber que a falta da sensação era anormal?"

Doença congênita

A motivação para a descoberta da "resistência" dos dois foi uma ferida sob o dedão do pé de Mariana, aos 14 anos.

Uma bolha surgiu por culpa de um sapato apertado e, sem que ela sentisse dor, a ferida inflamou, transformou-se em uma úlcera e causou uma osteomielite (infecção no osso).

O prognóstico, após um ano e meio de tratamentos sem sucesso, era de amputação do dedo. A família resolveu buscar explicação para o problema e tentar evitar a perda do membro.

Com diagnósticos indo de amiloidose (incluindo a indicação para um transplante de fígado) a hanseníase, Mariana foi enviada ao Hospital das Clínicas de São Paulo, onde exames descartaram as duas hipóteses.

A amputação foi evitada e hoje ela usa palmilha especial e tênis com amortecedor e precisa ficar longe de salto alto ou sandálias sem proteção nos dedos, já que há risco de formação de feridas sem que ela perceba.

O departamento de neurologia do HC constatou que a menina sofre de neuropatia hereditária sensitiva autonômica --ou insensibilidade congênita à dor. A doença, genética e sem tratamento, prejudica a sensibilidade dos nervos periféricos, responsáveis por transmitir as sensações de dor para a medula óssea e para o encéfalo.

Investigando antecedentes familiares, chegaram ao pai, que sofre do mesmo distúrbio.

Pós-descoberta

Com a constatação, Mariana passou a prestar mais atenção no corpo, à procura dos ferimentos que não sente. Todos os dias, verifica especialmente os pés e as mãos, regiões mais insensíveis a dor --quanto mais distante da medula espinhal, menor a capacidade de sentir.

"Alguns pacientes têm algum nível de sensibilidade mais próximo ao tronco. E a sensibilidade visceral [dos órgãos] é geralmente preservada", esclarece o neurologista Daniel Ciampi de Andrade, do grupo de dor do Departamento de Neurologia do HC de São Paulo.

A garota também aceita a sugestão de usar uma blusa quando está frio, apesar de não sentir o incômodo de ficar exposta a temperaturas baixas, e obedece, "quando lembra", à instrução da mãe de não pegar a panela quente direto do fogo.

O pai, mais teimoso, afirma que nada mudou. E ainda passa por situações delicadas, principalmente no trabalho, onde manuseia um torno revólver. Seus braços são marcados por queimaduras causadas pelos cavacos que voam ferventes das peças metálicas durante a usinagem. Como não sente dor, dispensa as luvas.

Há um ano, ele quase perdeu um dedo. Ajustando o torno, ele se distraiu e, ao puxar a mão, notou que ela estava presa. Retirou o dedo de dentro da máquina, e a unha ficou.

Roupas grossas também são raras no vestuário de Ismail. Além de não sentir frio, ele alega que não fica doente.

"Meu pai tem um sistema imunológico ótimo. Nunca o vi com febre", diz Mariana, que, apesar de ficar doente de vez em quando, nunca sentiu cólicas nem sensibilidades ligadas à TPM.

"Meus amigos da escola dizem que sou a única menina com quem dá para conversar no período menstrual", brinca.

Os dois integram um grupo de cinco pacientes diagnosticados no país, segundo Ciampi. Para o médico, apesar de a doença ser rara, estima-se que haja cinco vezes mais pessoas no país com o problema.





Fonte: Folha de S.Paulo

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