Comissão do Rio irá levar torturadores a juízo
"Aqui no Rio já há um consenso na Comissão da Verdade, entre os seus membros, de que haverá judicialização em relação àqueles que nós constatarmos serem responsáveis pelos fatos denunciados. Nós vamos levá-los a juízo.Quem tiver responsabilidade comprovada será levado a juízo".
A afirmação é do presidente da Comissão da Verdade no Rio de Janeiro e ex-presidente da OAB-RJ, Wadih Damous. Em entrevista ao Jornal do Brasil, Damous explica como funciona a Comissão e afirma que já encontra obstáculos.
"Não será um trabalho fácil, teremos que cruzar informações, buscar documentos, cruzar e analisar depoimentos de um lado e de outro para vermos que se consegue conformar uma situação o mais próximo possível da verdade", diz.
Damous critica a criação tardia das Comissões da Verdade e pede por uma maior cooperação das Forças Armadas.
Leia a entrevista:
Jornal do Brasil — Começo pelo que vi de mais recente em relação à Comissão da Verdade: Você, nos Testemunhos da Verdade, de Dulce Pandolfi e Lúcia Murat, chorando durante os depoimentos. Você considera este um símbolo desta Comissão, que procura revelar o que houve na Ditadura no Rio de Janeiro entre 1964 e 1985, que causou a morte e desaparecimento de 111 pessoas em todo o Estado?
Wadih Damous — “Não lembro se chorei, mas ali foi um momento muito importante se nós colocarmos esses depoimentos em confronto com o discurso que a máquina publicitária da Ditadura montou ao longo dos anos. Um dos pilares das distorções históricas que a ditadura produziu é que foi feita uma revolução para defender a democracia e salvar o Brasil do Comunismo. Neste discurso, se excessos houve, como tortura, foi necessário porque se vivia uma guerra, inclusive contra o terrorismo.Claro que uma análise até mais superficial deita por terra essa afirmação. A tortura começou a ser praticada antes de qualquer ação armada da esquerda brasileira. A tortura foi uma marca da ditadura. E, no caso da professora Luci Pandolfi e da cineasta Lúcia Murat, sobretudo da Dulce Pandolfi, torturou-se por mero sadismo. Elas foram usadas como cobaias, o que se chamava de “boneco da tortura”. Resolveu-se dar uma aula de tortura em um determinado dia e pegaram a Dulce para essa demonstração. Deve ser ressaltada, afora demonstrar que esse discurso da ditadura é uma farsa, a coragem dessas mulheres. Elas se expuseram publicamente, contaram em detalhes o suplício sofrido lá no DOI-CODI, e isso mostra que sobretudo as novas gerações de brasileiras precisam saber o que aconteceu neste país.
Jornal do Brasil — A pergunta agora é de caráter pessoal, Wadih: como você, cidadão Wadih Damous, se tornou interessado pela questão da revelação de uma verdade envolvendo o período da Ditadura Militar no Rio, e como se deu a sua nomeação para a presidência da Comissão?
Wadih Damous — A minha consciência como ser humano, como cidadão, ela foi se formando na época da ditadura civil-militar. Eu, já estudante de segundo grau e posteriormente na faculdade de direito da UERJ, não havíamos como não vivenciar o que acontecia. Ou se omitia, ou tomava-se uma posição. E eu tomei posição. Ainda teve a minha formação, juntamente com uma série de pessoas com quem eu também convivia. Saber que pessoas eram torturadas, ou que desapareciam, e viver sob censura às artes, à imprensa, e ver a perseguição ao movimento estudantil, tudo isso se transformou em indignação. Lutei contra a ditadura de meados da década de 70 ao início da década de 80, fui presidente do Diretório Central da UERJ, do Centro acadêmico Luis Carpenter do direito da UERJ. E a ditadura deixou este legado, triste e lúgubre, de mortos e desaparecidos, além dos casos de mortos e desaparecidos. Houve também o atentado à OAB que matou a secretária Lyda Monteiro, em 1980, a bomba no Rio Centro, que poderia ter vitimado milhares de jovens em 1981...tudo isso já era do nosso conhecimento e nos causava indignação, e fez muito da minha consciência como cidadão.
Jornal do Brasil — no dia 14 de março. Porém, a posse ocorreu somente no dia 8 de maio. Quais foram os entraves que causaram essa demora? E mais importante: esta demora chegou a causar algum prejuízo nos trabalhos da Comissão aqui no Rio de Janeiro?
Wadih Damous — Entraves burocráticos são uma constante na máquina administrativa brasileira. Se discutiu durante muito tempo a estrutura, o número de assessores, os salários, e isso atrapalhou o início dos trabalhos, porque tínhamos as indicações e nomeações, mas não tínhamos tomado posse. Nem tínhamos lugar para nos reunir. No entanto, há entraves políticos também. O projeto de lei levou quase um ano tramitando na Assembleia Legislativa no Rio de Janeiro( NR: o projeto foi publicado a 25/10/2012), e houve várias obstruções por parte de parlamentares daqui do Rio(NR: O principal articulador foi Flavio Bolsonaro, do PP-RJ), que não queriam a criação da Comissão. Isso atrasou sobremaneira a instalação desta.
Agora, se nós descortinarmos o cenário nacional, nós sabemos que a Comissão Nacional da Verdade se instalou tardiamente, quase 30 anos depois da ditadura. Isso é ruim, porque aquele período de mobilização pós-diretas, pós-ditadura, ficou perdido. Se naquele momento uma Comissão fosse criada, as condições políticas seriam mais favoráveis. Neste período, desapareceram com arquivos, perpetradores morreram, vítimas morreram, mas nada disso vai servir de justificativa para que deixemos de cumprir nossa missão. Espero que possamos dar nossa contribuição para estes casos que a ditadura deixou como legado.E pelo menos aqui no Rio já há um consenso na Comissão, entre os seus membros, de que haverá judicialização em relação àqueles que nós constatarmos serem responsáveis pelos fatos denunciados. Nós vamos levá-los a juízo.
Jornal do Brasil — Após um ano de criação da Comissão Nacional da Verdade, completado no último dia 13 de maio, muitos ainda têm críticas quanto à atuação desta, envolvendo falta de participação social nos trabalhos da Comissão e o caráter sigiloso de algumas de suas investigações e o fato de a lei não prever que ela leve à Justiça possíveis responsáveis por violações, como aconteceu na Argentina. De que forma isso preocupa a Comissão aqui no Rio? Isso chegou a fazer a Comissão repensar algumas de suas prioridades?
Wadih Damous — Existem incompreensões em relação ao trabalho da comissão da verdade tanto à direita quanto à esquerda. Á direita, obviamente, a Comissão é vista, taxada de revanchista, “Comissão de Meia Verdade”, porque só se investigaria um lado; E à esquerda, há entidades e pessoas que entendem que a Comissão é governista, que não tem condições de apurar nada, quase inútil. Para mim, os dois lados estão errados. É uma comissão de Estado, não de governo. Ela tem uma missão muito importante, que não é só de recontar a história, como se fosse um conclave de historiadores. É um trabalho de investigação, que vai influir por uma nova narrativa da história do Brasil, mas sobretudo o relatório final das comissões deve colaborar e contribuir para que se concebam políticas públicas a partir daquilo que foi apurado, a partir das conclusões a que se chegar a Comissão.Um exemplo é mudar a formação dos nossos soldados, das nossas Forças Armadas. É uma formação que remonta à Guerra Fria, à idéia de inimigo interno. Das forças de segurança pública, das polícias, que trabalham com o conceito de “guerra contra o crime” e praticam políticas de extermínio, tortura, desaparecimentos...Acho que o resultado final da Comissão, se ela tiver êxito, deve caminhar neste sentido.Aqui no Rio, teremos os Fóruns da Sociedade, cuja segunda reunião será realizada em breve. São reuniões mensais em que as entidades e pessoas que quiserem participar poderão acompanhar os trabalhos da Comissão. Ali, vamos nos submeter às críticas, elogios e sugestões de quem queira colaborar.
O sigilo será respeitado a partir do momento em que alguém que chamarmos para depor pedir isso. Se ele em troca me der informações de onde está enterrado Rubens Paiva, de quem colocou a bomba na OAB, de onde está enterrado Stuart Angel, quem participou da Casa da Morte em Petrópolis, eu aceito o sigilo.
Jornal do Brasil — Quando teremos a presença de agentes da repressão nos Testemunhos? A presença de Carlos Alberto Brilhante Ustra na Comissão da Verdade, ao chamar um vereador preso durante a ditadura de “terrorista”, causou bastante polêmica.
Wadih Damous — Estamos tratando disso com muito cuidado. Nos depoimentos da Pandolfi e da Lúcia Murat, elas denunciaram vários nomes, que foram anotados. Os que estiverem no Rio serão chamados. E esses trabalhos não partiram do zero, há o trabalho dos parentes desde a época da ditadura. O Grupo Tortura Nunca Mais vai ceder arquivos à Comissão da Verdade, por exemplo. As próprias Comissões de Anistia, de Mortos e desaparecidos, também apuraram muita coisa. Então a partir desses novos trabalhos, vamos interrogar possíveis perpetradores ou testemunhas. Hoje mesmo(quinta-feira, 6 de junho), estou embarcando para Fortaleza, porque me encontrarei com o ex-delegado da Polícia Federal que dirigiu o inquérito do caso da Bomba na OAB. Ele exerce o Direito lá, e concordou em encontrar com ele. Então, tudo será feito no seu momento, sem atropelo, sem ansiedade, mas a partir de um itinerário que possa nos levar a obter as informações que nós queremos, todos serão chamados para depor.
Jornal do Brasil — Vocês estão instalados no prédio da OAB, onde aconteceu o atentado em 1980 que matou a secretária Lyda Monteiro, em uma carta-bomba endereçada ao presidente da OAB. Qual o simbolismo dessa escolha de local? E quais são os principais pontos da investigação dos atentados à OAB em 1980 e no 1º de Maio de 1981, no Rio Centro?
Wadih Damous — Há duas razões para a nossa sede ser ali: primeiro, enfatizar a autonomia da Comissão em relação ao Estado, sem nenhuma dependência material. Segundo e mais fundamental, até pela minha origem e por ter acabado de deixar a presidência da OAB no Rio de Janeiro, e a Ordem tem uma importância institucional marcante na sociedade, e foi uma vítima da ditadura. A bomba que vitimou a Dona Lyda tem um caráter emblemático até hoje. Por isso que a sede é lá no quarto andar do prédio histórico do Conselho Federal. A minha sala era a sala onde Lyda despachava. É fundamental lembrar disso.
Jornal do Brasil — Recentemente, você elogiou a nomeação do advogado trabalhista Fernando Dia, em ato do prefeito Rodrigo Neves, para presidente da Comissão Municipal da Verdade de Niterói (RJ).Quais outras cidades já estão se articulando para a posse de suas comissões municipais da verdade? E algum outro equipamento esportivo do Rio foi utilizado para este fim, segundo as investigações da Comissão, uma vez que o estádio de Caio Martins já foi citado como local de tortura em Niterói?
Wadih Damous — Em relação à criação de Comissões Municipais no Rio, eu estive em Volta Redonda, e já está tudo encaminhado para que o projeto de lei na Câmara de Vereadores seja aprovado nesta segunda-feira(10). A Comissão Municipal deve ser presidida por algum representante da OAB. Em Macaé e em São Gonçalo, também está se criando Comissões Municipais, e também há a presença da OAB como mola propulsora. Isso me deixa muito contente e muito orgulhoso, porque o trabalho que desenvolvemos durante seis anos aqui na OAB deu frutos.Quanto a outros estádios utilizados como locais de tortura e repressão, não temos notícia ainda. Agora, se for descoberto alguma coisa, pode ter certeza que isso será investigado.
Jornal do Brasil — Como está o andamento da criação do museu da repressão, no antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social(Dops)? Sabe-se que aquele prédio é pertencente à Polícia Civil. Como esta questão está sendo resolvida?
Wadih Damous — Esse projeto se chama Marcas da Memória, com a criação de memoriais da repressão. O equipamento do Estado que poderia servir para este fim é o Dops, que pertence à Polícia Civil do Rio de Janeiro. O problema é que a Polícia quer transformar também em museu da Polícia Civil. E existe um projeto, que não é unanimidade entre membros da sociedade civil, de dividir o espaço do prédio para dois museus. A parte superior, onde se localizam as celas que foram palco de torturas e prisões, seria o memorial da repressão. Isso está sendo debatido democraticamente, mas afora isso, nós preconizamos que a Casa da Morte, em Petrópolis, está sendo desapropriada, para que seja um Memorial, assim como a sede do DOI-CODI(localizado no 1º Quartel do Exército, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca). Mas esse é um problema que tem que ser resolvido com o Exército, com as Forças Armadas. Nós sabemos da dificuldade que teremos em convencer os chefes militares a transformar o DOI-CODI em um memorial.
Jornal do Brasil — Como estão as investigações envolvendo as Casas da Morte em Petrópolis? A Inês Etienne Romeu, única sobrevivente de um dos maiores equipamentos de repressão da história Brasileira, será interrogada pela Comissão? Como estão as negociações para tal?
Wadih Damous — A Inês, pelo menos ao que se sabe, foi a última sobrevivente daquele verdadeiro Açougue, lá em Petrópolis. Em 1979, ela prestou um amplo, longo e detalhado depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil. Eu presumo que o que ela tinha a dizer ela já tenha dito.Ela sofreu, anos depois, um assalto suspeito, onde ela sofreu uma fortíssima pancada no crânio,e isso causou a perda de movimentos, além de prejudicar a fala e o raciocínio dela na época. Como a Casa da Morte de Petrópolis é um dos objetos da nossa investigação e a Inês é uma peça importantíssima, é óbvio, ela tem que ser pensada como uma testemunha. O problema são as condições de saúde. Alguns colegas me passaram a informação de que ela melhorou. Se ela tiver condições, nós a convidaremos a prestar um depoimento, e até mesmo um Testemunho da Verdade.
Jornal do Brasil — Você já deixou claro que a Comissão pretende investigar o financiamento e estrutura da repressão política, com identificação de torturadores e da cadeia de comando aos quais estes estavam subordinados, incluindo civis.Como o empresariado está envolvido nessa questão?
Wadih Damous — Em São Paulo, por exemplo, isso já está comprovado: membros do alto empresariado paulista gostavam de assistir às sessões de tortura, se compraziam disso. Não temos informações do mesmo ter acontecido no Rio de Janeiro, mas pode ter certeza que isso será investigado.
Jornal do Brasil — Colocando um pouco de lenha na fogueira aqui, Wadih, eu pergunto: e a atuação da imprensa no Rio durante a ditadura? Será investigada pela Comissão? Existe alguma preocupação com a atuação dos órgãos de imprensa naquele período?
Wadih Damous — O que é claro é que a grande Imprensa apoiou ativamente o golpe de 1 de abril de 1964. A maioria esmagadora das grandes empresas jornalísticas existentes à época apoiou o golpe. Ao assumir como verdadeiras as informações que o próprio regime fornecia acerca de desaparecimentos, esses jornais acabaram colaborando com o desaparecimento ao prestarem falsas informações.No caso do Rubens Paiva, jornais noticiaram a versão da ditadura de que o deputado fugiu quando estava sendo conduzido a uma delegacia da Quinta da Boa Vista, quando já se sabia que ele foi morto no DOI-CODI. Houve outros casos, como o “suicídio” de Vladimir Herzog, de que uns morreram em tiroteio quando na verdade estavam sendo massacrados nas dependências do aparato de repressão.Essa colaboração, de que se tem notícia da Folha da Tarde, jornal pertencente ao Grupo Folha, de empréstimo de carros para os agentes da Ditadura, nós não temos nada parecido aqui no Rio a princípio. Agora, se tivermos, obviamente nós vamos torná-la pública.
Jornal do Brasil — O período da Ditadura é, naturalmente, um período polêmico, uma vez que muitos de seus principais protagonistas ainda estão vivos, cada um contando a sua versão da história. Esse é o maior desafio de uma Comissão que se debruça sobre este período tão vivo e tão marcante da vida brasileira?
Wadih Damous — Essa é uma missão espinhosa diante dos inúmeros obstáculos que nós temos que enfrentar. O principal deles é sobretudo a atuação dos militares. Mesmo os miitares dessa geração, que não têm nada a ver com aqueles que fizeram essas barbaridades todas, eles acobertam e se recusam a colaborar com a Comissão. Nós vimos, no depoimento do Brilhante Ustra, foi lá proteger o Ustra. Eu não consigo compreender isso.
Esta é uma mancha nas nossas Forças Armadas, ter se colocado a serviço do terror do Estado, ter permitido que nas suas dependências se matasse, torturasse, se empalasse, se barbarizasse com as pessoas. O bom senso apontaria para que essas novas gerações de militares colaborassem no sentido de apagar esta mancha, recuperar a sua reputação diante do povo brasileiro. E não é isso que acontece. Eles vêm publicamente, quase cinicamente, dizer que os arquivos não existem mais, estão queimados ou destruídos, e acobertam os perpetradores da época. Então não será um trabalho fácil, teremos que cruzar informações, buscar documentos, cruzar e analisar depoimentos de um lado e de outro para vermos que se consegue conformar uma situação o mais próximo possível da verdade. Mas, ainda que com todos os obstáculos, vamos em frente e temos certeza que vamos conseguir, a partir das informações que reunimos, formar um mosaico sobre como a repressão da ditadura civil-militar funcionou, como vitimou pessoas, instituições e como deixou um legado, até hoje não superado, na nossa sociedade.
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