A verdade, sem conveniências
O estudo reafirma que a política de biocombustíveis dos países ricos, longe de ser resposta adequada à crise ambiental global, insufla outra crise, a dos alimentos, desastrosa para as populações mais pobres do mundo.
Nesses países, o desvio de terras agricultáveis para a produção de matéria-prima para os biocombustíveis - sobretudo o milho, nos Estados Unidos - é feito à custa da produção de alimentos, cujos preços subiram 83% nos últimos três anos. O problema, diz a Oxfam, é que o consumo de petróleo nos países ricos é tão alto que seria quase impossível substituí-lo de maneira relevante pelos biocombustíveis. Se toda a colheita americana de milho fosse direcionada à produção de álcool, equivaleria apenas a um em cada seis galões de gasolina vendidos no país. E se toda a produção mundial de oleaginosas se destinasse ao biodiesel, não atingiria 10% do consumo.
O trabalho sistematiza elementos presentes na discussão sobre os biocombustíveis, colaborando para que ela não se transforme em dualidade simplista, do tipo "eles são a salvação diante do impacto ambiental do petróleo", ou "eles são os novos vilões da fome no mundo".
É preciso não esquecer a questão central: não se trata só de substituir a gasolina, mas de reduzir o uso dos automóveis e torná-los mais eficientes, porque a produção desenfreada de biocombustível, sem a devida precaução, trará também impactos ambientais e sociais. O desafio continua sendo mudarmos hábitos de vida e modos de produção e consumo insustentáveis.
A análise específica do caso brasileiro reconhece a oportunidade real de construir aqui uma política exemplar de biocombustíveis. Temos tecnologia para eliminar problemas históricos do cultivo da cana, como a prática das queimadas. Em várias indústrias já se aproveitam bagaço e palha para fornecer energia ao processo de produção e até gerar excedente. Avança a responsabilidade socioambiental, inclusive com programas de recomposição florestal.
Diversas usinas investem em projetos de ciclos fechados para diminuir o uso da água em seus processos de produção de açúcar e álcool. Outras estão implantando módulos de produção de soja orgânica em rotação com a cana-de-açúcar. E várias delas investem na melhoria de suas relações trabalhistas e em programas sociais, saindo da nefasta tradição de um setor que ficou conhecido pelas péssimas condições de trabalho. Esse comportamento atinge apenas parte das empresas, mas já constitui tendência com potencial para definir novos padrões.
Contudo, deve-se lembrar sempre que essa oportunidade vem da crise global das mudanças climáticas, que não pode desaguar em outra crise, com perda de biodiversidade e redução da oferta de alimentos. Impõem-se alguns cuidados para o Brasil, respaldado por essas condições excepcionais, constituir-se em exemplo a ser seguido na produção sustentável de biocombustíveis no mundo. Esse é nosso grande desafio.
A expansão dos biocombustíveis não pode ser vista como mera oportunidade de negócios ou função da existência de terras. Ela deve ser, antes, o resultado de uma visão e de esforços que buscam a convergência de inúmeros fatores sociais, ambientais, econômicos, de segurança alimentar, para não se transformar num desastre a ser registrado e lamentado daqui a algumas décadas. Ao contrário, pode ser bom caso de sucesso no cumprimento das Metas do Milênio, ao unir conservação ambiental, combate à fome e crescimento sustentável. É fundamental garantir acesso à terra e meios de vida para a população pobre das áreas rurais. Sem esquecer o velho efeito colateral da inovação tecnológica: se as máquinas tiram empregos de um lado, que o País esteja preparado para recriá-los de outro.
Além disso, precisamos de política solidária de transferência de tecnologia para países em desenvolvimento, principalmente da África, impulsionando a geração e distribuição de riqueza nessas economias.
Nosso objetivo deve ser a certificação do biocombustível brasileiro, de modo a estabelecer padrões internacionais por um bom horizonte de tempo. É preciso, porém, atenção a algumas advertências que constam do estudo da Oxfam. Embora a expansão canavieira não aconteça diretamente na Amazônia, ela pode empurrar para lá outros tipos de exploração, como gado e soja, pressionando cada vez mais áreas florestadas.
Para evitar que este e outros equívocos de grandes proporções aconteçam, é urgente um esforço coordenado para concluir rapidamente o zoneamento do território nacional, assegurar a sustentabilidade das atuais atividades pecuárias e madeireiras e planejar a integração dos diversos usos futuros, observando sempre os aspectos de segurança alimentar e a capacidade de suporte dos diversos biomas e ecossistemas.
* Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.
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