Agricultura irrigada tem tudo para crescer no Brasil, mas carece de incentivos
“Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.
Foi o que Pero Vaz de Caminha relatou na sua Carta de Achamento do Brasil, há 513 anos. Hoje, cinco séculos depois, já se sabe que 12% da água potável do mundo está por aqui e 30 milhões de hectares – o equivalente a sete voltas em torno da Terra – podem ser irrigados, mas que somente 5,5 milhões são beneficiados.
De acordo com informações da Agência Nacional de Águas (ANA), as culturas com mais áreas irrigadas são cana-de-açúcar (1,7 milhão de hectares); arroz em casca (1,1 milhão de hectares); soja (624 mil hectares); milho em grão (559 mil hectares) e o feijão de cor (195 mil hectares).
É de se perguntar: estamos, de fato, “querendo aproveitar” todo esse potencial? O Secretário Nacional de Irrigação, Guilherme Orair, tem a resposta na ponta da língua. “A própria criação da secretaria em 2011, bastante recente, demonstra que o Governo Federal está preocupado com essa questão”.
Foi por meio da Secretaria Nacional de Irrigação (SENIR), que o Ministério da Integração Nacional lançou, em novembro de 2012, o Programa Mais Irrigação que prevê investimentos de R$ 10 bilhões, em recursos federais e parcerias com a iniciativa privada, para estimular projetos de irrigação por todo o país.
Outro importante passo foi dado em janeiro deste ano com a nova Política Nacional de Irrigação. “A importância desse plano foi dar um foco e estabelecer uma estratégia para o desenvolvimento da agricultura irrigada, com aumento da produtividade e um menor impacto ao meio ambiente”, aponta Orair.
É também previsto para junho a criação de um plano diretor nacional para irrigação. “O plano diretor vem dos trabalhos conjuntos com estados, oferecemos a metodologia para os estados e aí saem os programas. O desafio é que os produtores se articulem para que possamos ouvir o setor, saber quais são as demandas”, explica o secretário.
Dados do Ministério da Integração Nacional apontam o Rio Grande do Sul como o estado que mais concentra lavouras irrigadas, com 984 mil hectares. Em seguida, estão São Paulo (770 mil hectares), Minas Gerais (525 mil hectares), Bahia (299 mil hectares) e Goiás (270 mil hectares).
“A Secretaria está elaborando esses planos diretores e, com o Ministério [da Integração Nacional] atuamos em algumas regiões para criar pólos. Estamos aproveitando águas que já existem para desenvolver uma atividade econômica. Isso é importante”, ressalta Orair.
Pedras no caminho
Tão grandes quanto os investimentos feitos, são os desafios para desenvolver a agricultura irrigada no país. “Num número muto grosseiro eu diria que temos 60 milhões de áreas próprias pra irrigação e apenas 10% de área utilizada. A Índia com área que é um terço da nossa e uma população três vezes maior é mais eficiente”, afirma Durval Dourado Neto, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ).
Durval sustenta que o Brasil possui conhecimento de seu potencial hídrico para irrigação. “Quanto a saber o potencial pra irrigar, isso nós temos. Em algumas regiões, se tem limitação para conhecer vazão de rio, mas, ainda assim, há procedimentos práticos que podem ser utilizados”.
Seu colega, o também professor Warwick Manfrinato, acrescenta que “as melhores tecnologias agrícolas são existentes no Brasil”, mas: “tenho a impressão de que o Brasil é deficitário, no sentido de que a tecnologia é mal financiada”, opina.
Ainda de acordo com Manfrinato o problema não estaria na pesquisa, mas na extensão, ou seja, em repassar ao agricultor o que se produz nos centros de pesquisa. “Embora tenhamos Embrapa, todas as frentes de desenvolvimento de informação, existe uma deficiência na transferência de tecnologia para o usuário”.
Já Durval acrescenta mais outro entrave para a expansão da agricultura, e este é elementar: não há água para todos. “Aqui em São Paulo tem que se pensar muito. A grande diferença é que existe uma densidade demográfica maior. Você tem alguns pontos, algumas regiões, onde há problemas de conflito pelo consumo entre cidade, indústria e agricultura”.
Muita discussão, pouca ação
“A política de irrigação não olha só por si e temos que conviver em consonância. É um constante processo de articulação, de quando o espaço de cada ação”, afirma o secretário Guilherme Orair.
De fato, não há como dissociar a atividade agrícola da preservação da água. Assim como não se pode negar que a agricultura é a atividade que mais consome água. Isso faz que, na classificação dos níveis de prioridade para distribuição de água, a agricultura fique atrás da indústria e do consumo residencial.
Para se ter uma dimensão do volume gasto, basta fazer as contas.“Numa área de 100 hectares e o produtor tem que colocar 400 milímetros, vai dar uns 4 milhões de litros, o que uma cidade de 20 mil habitantes consume, isso em um dia. Mas isso acontece porque a planta gasta muita água. Não se pode achar que isso é desperdício do agricultor”, afirma Durval Dourado Neto.
Dourado ressalta que a agricultura irrigada pode fazer bem ao meio ambiente, pois ela diminui a necessidade de expansão da área plantada. “Uma área de plantio geralmente precisa ser ampliada em seis vezes para se aumentar a produtividade, o que não é necessário quando a lavoura é irrigada”, explica.
Mas em tempos de sustentabilidade e proteção dos recursos naturais, a concessão de licenças para uso da água passa a ser muito mais criteriosa, o que resulta em uma enorme burocracia. “Dependendo da região, um agricultor que precisa da autorização para plantar tem de esperar entre dois a três anos. Isso desincentiva o produtor”, afirma Durval.
Ainda de acordo com o especialista, há o problema da interpretação jurídica. “Imagine a situação de um produtor que irriga 10 hectares de uva, aí chega um outro produtor, rio acima, com apoio do governo, que consegue financiamento para irrigar 500 hectares de feijão, milho. O juiz então fica em dúvida sobre quem tem a licença para irrigar: se é o produtor de uva por estar lá há mais tempo ou o outro porque tem verba do governo.”
Vale do São Francisco: razão para acreditar
Diante desse cenário podemos afirmar que há razões para se acreditar na expansão da agricultura irrigada no Brasil? Se olharmos para o Vale do São Francisco, situado em uma das regiões mais secas do país, a resposta é sim.
Petrolina, centro de efervescência do Vale, situada na divisa entre os estados de Pernambuco e Bahia, há 40 anos era apenas uma “última parada” antes de Juazeiro, importante cidade do estado vizinho. Hoje é o maior polo da fruticultura irrigada do país. São 300 mil hectares irrigados que produzem em média 100 mil toneladas ao ano.
Ali encontram-se todos os tipos de irrigação e de produtores. Desde os de vinho que exportam para a Itália; os de manga que exportam para os EUA e Europa e também os produtores pequenos que abastecem o mercado regional. Há até produtores de sementes, que por conta do clima seco do Vale, são mais resistentes à pragas e à climas hostis que as comuns.
“Lá existem projetos muito bons. Em Minas Gerais, onde nasce o rio lá há a principal unidade da Condevasf [Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba]. Na Bahia, em Barreiras, a área irrigada ampliou e então os produtores se organizaram em uma associação para disciplinar o uso da água”, afirma Durval Dourado.
Tudo isso vem a provar que Pero Vaz de Caminha, estava certo: para se aproveitar toda a abundância de água no Brasil, mais que tecnologia e conhecimento, é preciso vontade.
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