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Saúde
Segunda - 11 de Fevereiro de 2008 às 23:36
Por: Rafaeal Garcia

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"Nada em biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução." Quando o biólogo russo-americano Theodosius Dobzhansky (1900-1975) cunhou essa frase, estava se referindo ao princípio subjacente a tudo o que é vivo, mas não estava dizendo necessariamente que o mesmo tipo de lógica se aplicaria especificamente à busca de tratamentos contra o câncer.

Essa surpresa foi algo com que o patologista brasileiro Jorge Reis-Filho, 32, se deparou. Tentando entender como tumores adquirem resistência a drogas quimioterápicas, a equipe liderada pelo cientista no Centro Breakthrough de Pesquisa em Câncer de Mama, de Londres, descobriu como um tipo de tumor "evolui". Atacado por um remédio, o câncer pode se adaptar por meio da seleção natural a um ambiente que em tese lhe seria hostil.

A descoberta teve participação de outra equipe, liderada pelo bioquímico Alan Ashworth. Os cientistas mostraram que o câncer de mama causado por uma mutação no gene BRCA2 --um dos tipos mais comuns de variedades hereditárias dessa doença-- pode desenvolver tolerância a medicamentos modernos, que atacam o DNA do tumor.

Ao aplicar repetidamente a droga carboplatina em culturas de células tumorais em laboratório, os cientistas verificaram que, num primeiro momento, a maior parte das células morria. As poucas que restavam, porém, começavam a se proliferar depois, porque haviam adquirido mutações que as deixavam imunes ao medicamento.

A carboplatina se aproveitava justamente de uma brecha deixada pela mutação no BRCA2. Em sua versão normal, esse gene é benéfico. Ele produz proteínas que ajudam o DNA a corrigir defeitos adquiridos, as mutações. São essas alterações nas "letras" do DNA que, em alguns casos, podem levar as células a uma multiplicação descontrolada: o câncer. Uma mutação que cause mau funcionamento no BRCA2 elimina essa proteção e induz as células ao câncer.

Sabendo que células portadoras de mutação no BRCA2 são vulneráveis a mais mutações, a carboplatina se aproveita dessa fraqueza. Ela bagunça o DNA do tumor a ponto de torná-lo inútil e matá-lo.

Ajuda involuntária

A descoberta de Reis-Filho foi que, nos episódios em que o tumor se tornava resistente à droga, a própria carboplatina induzia, aleatoriamente, uma segunda mutação que ajudava a "consertar" o BRCA2, eliminando o defeito causado pela primeira. Em vez de destruir as células cancerosas, ela acabava por torná-las mais fortes e mais aptas a se multiplicar.

Por seleção natural --na qual organismos mais adaptados tendem a prevalecer numa população--, essa segunda mutação se espalha entre as células tumorais. O resultado é um câncer à prova de quimioterapia, o pesadelo dos médicos.

Após o teste em laboratório, os cientistas confirmaram a descoberta analisando tumores de pacientes. "É uma ironia", disse à Folha Reis-Filho. A pesquisa foi publicada on-line neste domingo na revista "Nature", ao lado de outro de Toshiyasu Taniguchi, que descobriu um efeito semelhante, mas com outra droga, a cisplatina. "Juntos, esses dois estudos fornecem evidência muito forte da importância desse mecanismo", diz o japonês, que trabalha no Centro Fred Hutchinson de Pesquisa em Câncer, de Seattle.

Mais inusitada que a convergência de resultados dos dois grupos, porém, parece ter sido o fato de pesquisas de objetivo clínico --entender o mecanismo de resistência a uma droga-- terem levado a uma descoberta sobre biologia básica.

"O resultado é uma prova cabal de que existe seleção natural nos moldes darwinianos em câncer", diz Reis-Filho. "Podemos imaginar que o câncer é um organismo evoluindo e se adaptando ao corpo de outra pessoa. São dois seres, um competindo com outro."

A descoberta não significa que as drogas quimioterápicas usadas possam prejudicar os pacientes. Em praticamente todos os casos elas conseguem salvar ou prolongar a vida dos doentes de câncer. Em algumas pessoas tratadas, porém, o câncer volta, e de maneira desafiadora para os médicos.

Para o oncologista Ricardo Brentani, do Hospital A.C. Camargo, os novos estudos são de grande importância para compreender a resistência a drogas nos cânceres ligados ao BRCA2. Ainda não está claro, porém, o quanto a descoberta pode ser generalizada para outros tipos de tumor.

Brentani, 70, diz que a descoberta de Reis-Filho certamente encontrará uso na clínica, mas isso ainda levará algum tempo. Ela abre a possibilidade, por exemplo, de que pacientes submetidos a quimioterapia recebam também um medicamento para neutralizar o gene traiçoeiro. "Mas não conheço quem esteja desenvolvendo agora, com finalidade de tratamento, inibidores de BRCA2."





Fonte: Folha de S.Paulo

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