Repórter News - reporternews.com.br
Cidades/Geral
Quarta - 06 de Fevereiro de 2008 às 07:41
Por: Elton Rivas

    Imprimir


Entrevistar Edison Rodrigues já era meu desejo há algum tempo. Queria ouvir dele algumas explicações antropológicas sobre os conflitos entre índios e não índios que embalam a corrida pelo desenvolvimento em nosso estado. Quando produzimos o documentário “Em Trânsito” (sobre o povo Manoki), esse paulista de Jundiaí, formado em Ciências Sociais e mestrando em Antropologia Social , fez o papel de consultor etnográfico do vídeo.

Desde 2005 atuando como indigenista em Mato Grosso , diretamente com o povo indígena Enawene Nawe, Rodrigues aprendeu muito sobre a difícil realidade dos povos da floresta do noroeste de Mato Grosso. Um fato, ocorrido em agosto de 2007 iria colocá-lo como um dos protagonistas de um dos episódios mais lamentáveis da história recente do Estado. Juntamente com uma equipe do Greenpeace e de jornalistas franceses, foi confinado num hotel de Juina, levado à Câmara Municipal da cidade e depois impedido de ir ao encontro dos Enawene Nawe na aldeia, para no fim, ser praticamente expulso de Juína.

As imagens do ocorrido circularam pelo mundo todo trazendo publicidade na luta dos Enawene pela reconquista do território tradicional e também graves conseqüências para o indigenista, que passou a ser o alvo do ódio de proprietários rurais e outros agentes contrários aos interesses dos índios na região. Entrevista-lo deixou de ser uma vontade se tornou uma obrigação.

Trazer o pensamento de Edison Rodrigues não foi tarefa das mais fáceis. Foi necessário vencer a resistência de quem tem sofrido ameaças e que optou pelo recolhimento, inclusive saindo do estado para garantir sua segurança pessoal. Mas por outro lado, calar-se é fazer justamente o que querem seus detratores.

SINA – Qual a grande questão que se coloca hoje para os povos indígenas no estado de Mato Grosso?

Rodrigues - A realidade conflituosa que se coloca no Mato Grosso atualmente em relação aos povos indígenas não é diferente do que se passa no país todo. Guardando as devidas especificidades. Existem problemas que já são velhos e parece que timidamente estão sendo resolvidos pelo Estado, que é a questão fundiária. No bojo dessa questão a conjuntura atual coloca ainda a preservação de áreas de floresta como um contraponto às previsões catastróficas para o clima do planeta. E as áreas indígenas demarcadas têm se mostrado como ilhas de florestas que em um mar de devastação da floresta amazônica. São verdadeiras alternativas ainda que segmentos sociais tradicionalmente devastadores estão se mostrando preocupados com a preservação, claro que tal situação atrelada às ameaças aos seus negócios. Outra realidade que se apresenta bastante problemática e que aparece em nova roupagem é a questão da geração de energia com a construção de complexos hidrelétricos avassaladores para populações tradicionais e indígenas, sem contar os impactos ambientais.

SINA – Na verdade, o que temos então não é só a permanência das velhas questões ligadas a terra, mas também novas problemáticas associadas a uma suposta “vocação” econômica de Mato Grosso, quase sempre ligada à perspectiva da utilização desenfreada dos recursos naturais?

Rodrigues - O problema é que todos os empreendimentos que colocam a floresta em risco têm se mostrado danoso a essas populações, pois atinge o fundamento de sua sobrevivência que é a necessidade de um território com o qual possam reproduzir cultural, social e economicamente em suas tradicional idades.

Os processos colonizadores para a Amazônia trouxeram atividade agropecuária, garimpo, entre outros relacionados ao agronegócio que avançou e ainda avança como rolo compressor que não respeitou e não respeita as populações indígenas. Essa situação assume nova nuances, mas permanecem imbricadas e cada vez mais complexas colocando meio ambiente e povos da floresta em risco.

Nesse sentido colocar o conceito de “vocação” é bem complicado, pois pressupõe uma natureza das coisas que inevitavelmente deve assumir essa face que destrói para o bem do desenvolvimento econômico. Sabemos que a floresta e os povos indígenas podem oferecer alternativas econômicas viáveis que não impediria outras frentes. O que precisaria é esse processo ser equilibrado no sentido de respeitar o meio ambiente, os indígenas e toda a população brasileira e mundial. A busca de uma ética que permita saber que a geração de riquezas não necessariamente só pode ser obtida através da marginalização e destruição da diversidade social existente no Mato Grosso, na Amazônia e no país. A suposta “vocação” deveria vir com a real vocação de respeitar o meio ambiente e as sociedades indígenas que sempre estiveram a reboque de avanços econômicos, desde o início da colonização. Não se trata de ser contra o desenvolvimento e sim de exigir uma negociação para implantá-los além do que diz a legislação, mas não como o bom moço que da presentes e sim com o compromisso de nas relações inter-étnicas, e digo indígenas e sociedade nacional, seja vislumbrado avanços além da lógica assimilacionista ou assistencialista presente.

SINA – Nos últimos meses, intensificaram-se os conflitos entre índios e não índios, como por exemplo, nas regiões de Barra do Bugres e Juina. Quais as razões para esse acirramento?

Rodrigues - Conforme coloco nas questões anteriores, esse acirramento está nessa lógica que acelera um desenvolvimento sem considerar esses povos na condição de sujeitos, que devem ter voz no processo. Claro que esses acirramentos guardam especificidades em suas ocorrências, porém não podemos perder de vista o que expus. Nessa condição ainda, o que se mostra frágil são instituições do Estado que deveriam se colocar efetivamente como mediadoras, antes mesmo do acirramento. Mas, infelizmente o que tem acontecido é a presença do Estado se mostrar contingencial e nada preventiva, atuando somente depois de situações que produzem violências, ameaças ou quando atenta contra o estado de direito. Mesmo assim, poucas vezes a efetividade do Estado se mostra eficaz em ações nesses conflitos. É fácil prever, nesse sentido que cada vez mais esses conflitos se mostrarão mais radicais se não houver predisposição de negociações justas dos sujeitos e uma mediação competente de instituições públicas comprometidas com a paz. Nesses locais citados o que houve foram fatos que estão na esteira de desenvolvimentos e relações econômicas que conflitam com a forma indígena de lidar com essa nova realidade. O comércio e montantes financeiros decorrentes dele e de compensações podem se mostrar como implantadores eficazes dessas discrepâncias jurídicas e políticas que assistimos e colocar ambiente e sociedades frontalmente dispostas a embates.

SINA – No caso específico dos Enawene Nawe, quais as ameaças a esse povo indígena?

Rodrigues - A questão que envolve os Enawene Nawe, também é o processo de instalação do Complexo Hidrelétrico Juruena. Simplesmente será construída uma seqüência de 11 barramentos no alto Rio Juruena. Existe um discurso que não haverá impactos, ou que será de impacto mínimo tanto ambiental como sócio-culturalmente aos povos indígenas da região. Ora, que escala é essa que determina o que é impacto mínimo e máximo?

SINA – Provavelmente não é a lógica indígena que determina.

Rodrigues - Os Enawene Nawe são o povo que sofrerão os impactos mais diretos do empreendimento. Pois, além de ter grande parte do Rio Juruena atravessando seu território, se alimentam de peixes fundamentalmente. Eles temem uma diminuição de pescados e alterações na paisagem. É aí que entra a questão do que é impacto mínimo e máximo. O que para os técnicos é considerado mínimo está relacionado com alterações ambientais que calculam e o fato de os barramentos serem construídos fora dos limites da terra indígena. Não consideraram como impacto o processo que antecede a instalação. Quantos rituais e momentos dos Enawene Nawe foram tomados em negociações, tanto na aldeia como fora? E o temor de que serão perseguidos pelos espíritos donos dos peixes se o Complexo Hidrelétrico Juruena for instalado? Sem contar a falta de clareza sobre o empreendimento tocado em um processo acelerado que não contempla o tempo indígena e acabam causando mais confusão que esclarecimentos.

Como pode técnico colocar dedo em riste para afirmar aos Enawene Nawe que estão errados quanto ao temor de que morrerão peixes? E isso na aldeia de indígenas que pouco falam o português e ainda se produz um relatório antropológico depois de uma permanência de poucas horas entre eles e em condições de tensão. Inclusive atrapalhando ritual importante que se realizava. É nesse sentido que podemos entender o porquê de se instalar conflitos e de alguma forma o empreendimento ameaçar os Enawene Nawe. Entre suas reivindicações está a realização de estudos independentes dos empreendedores que possa de forma mais clara mostrar a eles a realidade de impactos que poderão sofrer. Um estudo dessa natureza hoje teria obrigação ética de mostrar antropologicamente os conflitos que se instalaram entre os povos indígenas, os conflitos intra e entre aldeias e os impactos causados pela efervescência decorrente de ações políticas desses povos em seus deslocamentos. Deverão ainda considerar de forma mais efetiva os impactos na vida espiritual dos Enawene Nawe e dos Nambikwara que guardam especial relação com a paisagem que eles consideram sagradas naquela região. Imaginem um lago de uma hidrelétrica imergindo uma paisagem ou monumento do cristianismo. Causaria um alvoroço e ações contrárias de muitos cristãos. Por que a concepções sagrada de povos indígenas são impactadas e destruídas e isso não nos horroriza?

SINA - Porque não nos importamos, ou simplesmente não compreendemos?

Rodrigues – Isso. Essa situação toda fica evidente quando apenas se anunciam valores financeiros de medidas compensatórias aos povos indígenas da região. Podemos assim imaginar que conseqüências desenrolarão se não houver uma gestão adequada desses valores quando da concessão da medida.

Os Enawene Nawe por sua natureza inquietante aparecem como protagonistas dessa realidade na bacia do rio Juruena, mas outros povos também estão no bojo desse complexo problema, tais como: Myky, Rikbatsa, Nambikwara e Paresí. Finalizando, as ameaças não podem ser consideradas somente depois da instalação do Complexo Hidrelétrico, elas antecedem esse momento, intensifica nele e perduram. E os Enawene Nawe e Nambikwara poderão ter impactos mais efetivos pela proximidade do empreendimento.

SINA – Você estava no grupo que foi expulso da cidade de Juina no mês de agosto, fato que pode ser conferido no vídeo “Amazônia, uma região de poucos” (postado no Youtube). O que essa experiência mostra?

Rodrigues - A situação é uma representação da situação do noroeste do Mato Grosso. O cerco, coação e ameaças sofridas em Juína por equipes de jornalistas, indigenistas e ambientalistas só evidenciou um quadro que nos mostra que além de acirramento de conflitos entre indígenas e segmentos da sociedade regional e nacional também assume faces de explícito atentado aos direitos civis e ameaças ao Estado de direito.

Essa é outra prática que tem se intensificado na Amazônia em geral. Quem trabalha em defesa de indígenas e do meio ambiente encontra esse tipo de coisa. São considerados inimigos do desenvolvimento e, portanto devem ser eliminados, assim como a natureza e as populações consideradas “atrasadas” porque vivem na floresta.

SINA – Inimigo público, já que vocês defendem um outro modelo que vai contra tudo aquilo que está colocado aí, que dizem gerar a riqueza e o desenvolvimento do estado.

Rodrigues - Tanto é verdade que fatos como esse atentam contra a democracia e as instituições legalmente constituídas. Desde agosto ainda não se sabe quais medidas efetivas foram tomadas por autoridades que cuidam do caso. Ou seja, políticos e fazendeiros em vários locais na Amazônia se sentem à vontade para atacar e atentar contra pessoas, pelo simples fato de não concordar com a destruição da floresta ou por defender direitos constitucionalmente garantidos aos indígenas. A característica fundamental da democracia é ter mediação dos conflitos, para que os segmentos sociais não se degladiem, nesse sentido falta dar uma firmada na democracia brasileira, pelo menos em locais onde há uma clara manifestação de autoritarismo e intolerância, como em Juína. É incrível que instituições escusas aos interesses da maioria possam ditar regras em cidades como se fossem os donos da realidade. Isso precisa um dia acabar. Principalmente porque a região noroeste do Mato Grosso apresentar um histórico de mais de cem anos de massacres de povos indígenas e essa violência conseguir ter continuidade. Massacres de Cinta-Largas (Massacre do Paralelo 11) na década de 1970; massacres de Irantxe (Massacre do Tapuru) e mais recentemente, 2006, as tentativas de eliminação dos índios isolados em Colniza, entre outros.

Em pleno século XXI, assistimos e sabemos de práticas que poderiam ser consideradas peças de museu das relações sociais, mas não, assumem novas roupagens, mas continua na lógica do etnocídio como fizeram os colonizadores a partir de 1500 aqui no Brasil e um pouco mais cedo em outras regiões.

SINA – Vivemos m um país multicultural, onde esses direitos estão inclusive assegurados na Constituição. Porém, o que vemos no dia-a-dia é um enorme desencontro entre os diferentes grupos sociais brasileiros, em especial entre índios e não índios. Como você explica isso?

Rodrigues - Acredito que esse “desencontro” faz parte de uma “gênese” da formação da sociedade brasileira que insiste em ter o etnocentrismo arraigado em suas dinâmicas de relações com os povos indígenas. A construção dessa realidade vem historicamente se consolidando, seja através de práticas evidentes ou por caminhos aparentemente cordiais. Na atualidade, por exemplo, sabemos que as populações urbanas que são “obrigadas” a conviver com indígenas acabam radicalizando em seu etnocentrismo, ou seja, acabam se vendo como modelo social moderno que se contrapõe aos “atrasados bárbaros”. Já as populações de cidades mais distantes dos indígenas acabam romantizando e fazendo um discurso do conceito de “bom selvagem” que distorce a realidade indígena e não contribui para colocá-los como sujeitos com garantias de direitos. Ou seja, implicitamente os primeiros preferem elimina-los e os segundos querem isolá-los na floresta, são faces de uma mesma lógica de apartar grupos considerados impeditivos do desenvolvimento moderno. Acredito que o Estado e suas instituições vêm desenvolvendo ações educativas para diluir isso, mas precisa ser mais efetiva em termos de ensinar nas escolas a realidade indígena além da padronização de índios que é ensinado nos livros didáticos. A antropologia articulada com educadores pode formular programas que objetivam mais ética nas relações e pensamentos sobre as sociedades indígenas. Faltam mais projetos políticos nesse sentido.

SINA – Existe perspectiva para a manutenção da diversidade cultural e sobrevivência dos povos indígenas frente a atual conjuntura no estado de Mato Grosso e no país?

Rodrigues - Sim, acredito nisso e felizmente grande parte da sociedade brasileira acredita, eu acho. Frente a essa diversidade cultural precisamos, como disse na questão anterior, de políticas com horizontes claros de construir uma convivência ética e de respeito ao Outro. O que assistimos é uma arena, na qual indígenas se vêem cada vez mais acuados pelos empreendimentos e isso ameaça sua sobrevivência. Nessa conjuntura as ações de embates se tornam mais evidentes, só no noroeste do Mato Grosso, sabemos de empreendimento madeireiro, garimpeiro, sojicultor, hidrelétrico e agropecuário que atentam diretamente contra a diversidade cultural. Nessa situação o Estado deve agir tanto para uma mediação justa que não lese os indígenas, assim como para mostrar ao país que as sociedades indígenas exigem sobrevivência em meio à complexidade de uma aceleração do crescimento que revela, ironicamente, uma aceleração do atropelamento desses povos. Essa mediação não pode ficar somente na alegação de um acatamento às prescrições jurídicas e sim ultrapassar isso, uma vez que a legislação se mostra frágil em muitas das realidades urbanas, imaginem indígenas então, que possuem formas diversas de pensar o mundo. Mesmo assim, o Brasil e o mundo têm mostrado com vontades de construir legislações nacionais e internacionais com vistas à preservação cultural e respeito à diversidade, tanto de populações etnicamente diferenciadas ocidentais, assim como as indígenas.





Fonte: Revista SINA

Comentários

Deixe seu Comentário

URL Fonte: https://reporternews.com.br/noticia/187708/visualizar/