Vítimas de trabalho escravo acionam Justiça em MT
Depois de acionarem a Justiça por iniciativa própria, dez trabalhadores rurais reduzidos a condições análogas à de escravos na fazenda Serra Verde, em Bom Jesus do Araguaia (MT), vão receber as verbas trabalhistas a que têm direito, além de indenizações individuais por dano moral. Foi o que decidiu o juiz João Humberto Cesário, da Vara do Trabalho de São Félix do Araguaia (MT), no último dia 10 de agosto. Outros dois que faziam parte do mesmo grupo, mas que não compareceram ao julgamento, tiveram suas ações arquivadas.
Na opinião do magistrado, o caso é emblemático, já que a iniciativa de buscar a reparação das irregularidades cometidas pelo empregador partiu das próprias vítimas. "É a primeira vez que me deparo com o próprio trabalhador ajuizando a ação individualmente, sem o Ministério Público", afirma.
Após fugirem da fazenda, para onde foram atraídos por um aliciador de mão-de-obra que os contratara para o serviço de roço de pasto, os trabalhadores lavraram um boletim de ocorrência na cidade de Água Boa (MT). Durante o período em que ficaram na Serra Verde, eles passaram a noite sob barracas de lona preta e foram obrigados a consumir a mesma água do córrego onde os animais saciavam a sede. As jornadas não eram inferiores a doze horas por dia e não havia locais apropriados para que eles fizessem suas necessidades fisiológicas. Um deles, que teve parte do dedo da mão decepada enquanto manipulava uma foice, não recebeu qualquer tipo de auxílio médico e continuou a desempenhar suas funções, apesar de ferido.
Na delegacia, os trabalhadores foram orientados a entrar com ação na Justiça do Trabalho contra o proprietário da fazenda, e acabaram contratando um advogado particular em São Félix do Araguaia. Em geral, os casos de trabalho escravo vêm à tona depois de fiscalizações realizadas de surpresa pelos grupos móveis do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e a tarefa de acionar a Justiça cabe ao Ministério Público do Trabalho - órgão que funciona como espécie de "advogado da sociedade", e que só pode representar uma coletividade de trabalhadores, nunca alguém individualmente.
Durante a audiência, o dono da Serra Verde, Joaquim Barbosa de Brito, defendeu-se dizendo que havia efetuado o pagamento dos trabalhadores, mas não apresentou nenhum documento que atestasse a veracidade de seu depoimento. "Mas não basta ele alegar que pagou, tem que comprovar. A somatória de fatos levou a concluir que houve trabalho escravo", explica João Humberto. O fazendeiro ainda pode recorrer a uma instância superior, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT), em Cuiabá, capital do estado.
Ele foi condenado a quitar todos os débitos trabalhistas e a pagar uma indenização por danos morais, no valor de R$ 10 mil reais, a nove dos reclamantes. O trabalhador que teve parte do dedo decepado foi contemplado com uma indenização no valor de R$ 20 mil. "Na própria sentença, determinei que o Ministério Público do Trabalho fosse noticiado para que ele ajuizasse outro tipo de ação, pela qual pode postular a reparação de eventuais danos morais coletivos, causados à sociedade", completa João Humberto.
Na opinião de Carla Leal, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação Nacional de Magistrados do Trabalho (Anamatra), o caso pode ser considerado um "avanço, fruto do que vem sendo feito no combate ao trabalho escravo no país", uma vez que "as próprias vitimas já começam a buscar justiça". De acordo com ela, que também é juíza do trabalho e professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), o desconhecimento das formas de acesso ao Poder Judiciário, além do receio de represálias, são os principais fatores que inibem os trabalhadores.
Há pouco mais de um ano na região de São Félix do Araguaia, o juiz João Humberto vem participando de um projeto, em parceria com sindicatos e entidades da sociedade civil, para conscientizar os trabalhadores rurais sobre seus direitos por meio de reuniões e palestras. "Esse caso pode ser resultado desse esforço", comemora.
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