Coisas do quotidiano
Apesar da evolução do conceito de cidade, ainda vivemos em alguns aspectos seu lado província, onde todos se conhecem pelo nome, e onde a fofoca e o paroquialismo predominam.
Trago três exemplos desse contraste da cidade moderna x burgo em nosso quotidiano de hoje em Cuiabá.
O primeiro é o caso do requerimento de visita íntima feito pelo detento João Arcanjo Ribeiro, o Comendador. O fato foi imediatamente transformado em bizarro espetáculo, com a exposição da intimidade do preso, e também da sua “esposa” aqui fora. Apareceram especialistas em tudo para sustentar a tese de que a visita íntima se constituiria num privilégio sem tamanho. Não adiantou o contrato de união estável, válido para todo tipo de outra circunstância, já que há uma predisposição na opinião pública de condenar o comendador por tudo, negando-lhe, inclusive, aquilo a que tenha, eventualmente, direito líquido e certo.
É verdade que eu deveria estar me ocupando dos cidadãos de bem, diria a consciência do senso comum. Mas é essa “consciência” do senso comum - uma falsa consciência na verdade, por estar eivada de preconceitos e deformações -, em geral a maior responsável pelas tiranias e distorções da realidade.
O segundo é o triste caso daquela criança supostamente assassinada pela própria mãe no CPA. O senso comum fez várias vítimas, além da criança. O sistema de saúde do município foi a primeira. Depois, os filhos da babá e a própria. Até que finalmente houve a confissão da mãe. Apesar de que, à luz do direito, a simples confissão não a torna culpada de nada. Essa proclamação de culpa cabe a um tribunal. Mas o igualmente triste e lamentável na nossa cidade-província foi a nossa sanha de encontrar um culpado a qualquer custo, mesmo que isso tornasse vítimas pessoas inocentes.
Finalmente, vejo outdoors espalhados pela cidade com o seguinte enunciado: a crise no sistema de saúde de Cuiabá não é culpa dos médicos.
Ora, o médico é essencial ao sistema de saúde. Sem ele, não haveria sistema de saúde. É dele, portanto, a maior parte da responsabilidade, sim. Sobretudo levando-se em conta sua condição de líder nato do sistema, cabendo-lhe, em primeira e última instância, o bem estar do paciente.
Não digo que é sua culpa. É preciso distinguir culpa de responsabilidade. A política de saúde é falha, se é que há de fato uma “política” de saúde. Os recursos, em muitos casos, são insuficientes. Mas, é fato também que o descompromisso com a saúde pública grassa em todo o sistema, do atendente, que atende mal, ao médico, que também tapeia o sistema, fechando a porta do consultório da rede pública para dormir de madrugada, enquanto as pessoas carentes aguardam nas filas ao relento; ou se utilizando do SUS apenas como porta de entrada para seus hospitais e consultórios particulares.
Logo, não dá para negar a responsabilidade dos médicos quanto ao estado da saúde pública. E, nesse sentido, foi providencial a campanha de outdoors, ao menos para chamar a atenção da sociedade para definir o grau de responsabilidade de cada agente do sistema, de cada dirigente público, e também a dos cidadãos.
Se bem que acho que no fundo isso já seria pedir demais. Talvez o melhor mesmo fosse colocarmos vidros cada vez mais escuros em nossos carros, ou nos fingir de cegos, para os que andam a pé, para não enxergar determinadas cenas do cotidiano citadino moderno, já que voltar aos burgos, simplesmente, não é mais possível. KLEBER LIMA é jornalista pós-graduado em marketing. E-mail:
kleberlima@terra.com.br.
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