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Nacional
Quinta - 28 de Fevereiro de 2013 às 08:41
Por: Felipe Truda

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Marcelo Mendes Arigony, 40 anos, está perto de concluir o maior e mais difícil desafio de seus quase 14 anos de carreira na Polícia Civil. Titular da Delegacia Regional de Santa Maria, ele é o homem à frente das investigações sobre a tragédia na boate Kiss, atingida por um incêndio que vitimou 239 pessoas no dia 27 de janeiro.

A investigação que apura as causas e os possíveis responsáveis pelo desastre que dilacerou famílias e enlutou o Brasil está perto de ser concluída. O prazo de envio do inquérito à Justiça se esgota no domingo, 3 de março. Mas a polícia não descarta pedir a prorrogação. Ainda não estão prontos os laudos da perícia, que devem comprovar a tese da polícia de que houve homicídio doloso qualificado no caso. 

O documento já soma quase 4 mil páginas e o volume pode dobrar. Trata-se “do maior inquérito da história” da Polícia Civil gaúcha, nas palavras do próprio Arigony. Além do resultado de inúmeras perícias, de papéis e provas apreendidas, nele consta o depoimento de mais de 500 pessoas. São testemunhos de sobreviventes, de bombeiros que participaram do resgate, de autoridades e responsáveis pela fiscalização e concessão de alvarás no município, entre outros envolvidos direta ou indiretamente no caso. 

Natural de Santa Maria, Arigony tem envolvimento pessoal na tragédia. A prima dele, Sabrina Mendes, de 18 anos, foi à Kiss naquela noite e não saiu de lá com vida. Mas por pouco o desastre não passou ainda mais perto da vida do delegado. A filha dele, Ana Luiza, também poderia estar dentro da Kiss quando o incêndio selou o destino de mais de duas centenas de jovens naquela madrugada.

Na quinta-feira anterior à tragédia, a jovem completou 18 anos. A família discutiu se comemoraria na sexta-feira ou no sábado. A opção foi pelo primeiro dia e, após um churrasco na casa de Arigony, ela foi com os amigos na Absinto (cujo proprietário é Mauro Hoffmann, também sócio da Kiss). No dia seguinte, a única opção noturna seria a Kiss.

Por conta da proximidade com os fatos investigados, houve dúvidas sobre a capacidade do delegado de conduzir o inquérito de forma imparcial. Ele chegou a se emocionar quando se dirigia a um grupo de estudantes, que clamavam por justiça em um protesto na porta da Delegacia Regional, na terça-feira seguinte ao incêndio.  

O delegado também foi alvo de críticas por postar no Facebook uma foto de um show pirotécnico dentro da Kiss, com a frase “tirem suas próprias conclusões”. A publicação foi retirada da página horas depois. Em entrevista coletiva nos dias seguintes, ele afirmou que seria o primeiro a se declarar impedido de conduzir as investigações sobre a tragédia na Kiss caso assim se sentisse.  

Na madrugada do dia 27 de janeiro, Arigony aproveitava os últimos dias de férias quando foi acordado com a notícia do incêndio na Kiss. Preocupou-se imediatamente com a filha, mas se tranquilizou ao falar com ela por telefone e se dirigiu à porta da boate em seguida. Chegou lá por volta das 5h. Desde então, ele dorme de três a cinco horas por dia e não tem mais vida social. Rotina que ainda pode se prolongar por até um mês, na parte final das investigações, como ele detalha na entrevista a seguir.

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Inquérito policial boate Kiss Santa Maria Arigony (Foto: Polícia Civil/Divulgação)Delegado Arigony (C) conta com a ajuda de
dezenas de policiais para investigar incêndio
na boate Kiss (Foto: Polícia Civil/Divulgação)

G1 - Em que pé está a investigação hoje? Qual é o rumo que a polícia está seguindo?
Marcelo Arigony
 - Estamos com 30 dias de inquérito policial, temos quatro pessoas presas por prisão temporária decretada por cinco dias, prorrogada por mais 30. Esse prazo está se escoando e termina no dia 3. Nós temos duas questões a serem investigadas basicamente. São três núcleos, mas com duas questões. A primeira é como isso aconteceu, por que essas pessoas não conseguiram sair de lá e por que morreram. Isto está bem esclarecido. No terceiro dia, nas coletivas que fizemos aqui, apontamos diversas circunstâncias: uma pessoa utilizou um aparato pirotécnico que era para uso externo e ela fez uso interno, e acabou pegando fogo em uma espuma que não deveria estar lá e é inflamável, e que gera um gás altamente tóxico que é o cianeto. Além disso havia muita gente dentro da boate, provavelmente mais do que a lotação que deveria ter, isso ainda não confirmamos, pretendemos confirmar. Os primeiros extintores que foram utilizados não funcionaram. Estamos checando a questão dos extintores. A porta não deu a vazão que deveria dar para que as pessoas saíssem. Talvez precisássemos de portas maiores. Estamos checando isso. A sinalização de emergência foi ineficiente e havia barreiras de ferro que praticamente impossibilitaram que as pessoas saíssem. Esse conjunto de circunstâncias levou à morte daquelas pessoas. Isto está claro para nós. Depende ainda das perícias. Nenhum laudo ainda chegou, mas os laudos vão chegar e coroar o que dissemos. A questão do momento é a dos alvarás, por que aquela boate funcionava dessa maneira, quem forneceu os alvarás, como foram fornecidos, como era a concessão. Os atores sociais envolvidos são o poder público e os bombeiros. Este caso será um paradigma que vai revolucionar a indústria de entretenimento de multidões. Haverá avanços legislativos, a concessão de alvarás será feita de forma mais rigorosa e a fiscalização será mais criteriosa.

G1 - As pessoas que estão presas serão as únicas a serem responsabilizadas dentro da primeira parte da investigação?
Arigony - 
Não necessariamente. Temos este núcleo bem esclarecido, mas eu não consigo terminar sem a perícia, que vai confirmar aquilo que eu disse. Estivemos no Instituto-Geral de Perícias e, embora não tenhamos um laudo oficial que confirme o que eu disse, temos uma sinalização muito otimista. Pelo que eu vi, está tudo em consonância absoluta com o panorama probatório formado nos autos. Tudo o que dissemos até agora não desborda em nada do que será o objeto da conclusão do inquérito policial. É importante deixar claro que em nenhum momento estamos investigando pessoas. O fato de essas pessoas estarem presas não indica culpa. São prisões por conveniência, por absoluta imprescindibilidade para a investigação. Vamos chegar daqui a um tempo com o fato absolutamente esclarecido. É óbvio que disso responsabilidades virão.

G1 - Em uma possível prorrogação do inquérito, eles podem ser soltos ou será pedida a prisão preventiva?
Arigony - 
Vamos deliberar até sexta-feira. O prazo se escoa no domingo. Vamos usar esta semana que nós temos e na sexta-feira eu e os demais delegados vamos nos reunir para verificar. Se houver necessidade de prisão, vamos lançar mão de outro tipo de prisão provisória. Existem cinco tipos e, se houver necessidade, representaremos por prisão preventiva. Não está descartado, mas não está definido neste momento.

G1 - Os depoimentos dos empresários e dos integrantes da banda são contraditórios, tanto que advogado do Kiko pede que sejam feitas acareações...
Arigony - 
Serão feitas. Os indivíduos que estão presos serão ouvidos novamente, e algumas pessoas que já foram ouvidas o serão novamente, buscando esclarecer os pontos controversos. Inclusive vamos fazer acareações entre eles. Quanto mais avançada estiver a investigação, melhor. Já temos 500 pessoas ouvidas neste inquérito. Quanto mais pessoas eu tiver ouvidas, mais eu tenho o fato esclarecido para possibilitar que eu aproveite melhor este segundo depoimento destes indivíduos, aí sim terei os pontos mais controversos. Por exemplo, no caso do Kiko (Elissandro Spohr, sócio da boate), quem colocou a espuma, porque colocou a espuma, se havia engenheiros...

G1 - Além dos depoimentos, reconstituições e pesquisas, que outros métodos foram utilizados pela polícia para tentar desvendar o caso?
Arigony - 
Estamos oficiando, pedindo documentos a diversos órgãos. Em alguns ofícios, demandamos algumas quebras de sigilo via Justiça. Chegamos a trazer um scanner do Canadá, que reproduziu a boate para montar uma maquete digital. Procuramos sempre alargar o leque, conversar com químicos, engenheiros, com o Crea (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia), para nos ajudar a entender isso e formular uma conclusão responsável.

G1 - Quais as principais dificuldades encontradas pelo senhor para concluir o inquérito?
Arigony - 
Esclarecer o fato é fácil, conhecendo a circunstâncias. Difícil é a questão das fiscalizações, se foi fiscalizado ou se foi mal fiscalizado. Também enfrentamos uma pressão muito grande lá no início. Até hoje, mas no início foi absurda. A imprensa tinha repórteres investigando até mais do que nós. Tínhamos 20 investigadores e a imprensa tinha 100 nos trazendo fatos novos. Em um primeiro momento, fomos a reboque de vocês (jornalistas).

Inquérito policial boate Kiss Santa Maria (Foto: Polícia Civil/Divulgação)Inquérito policial já tem quase 4 mil páginas e número ainda pode dobrar (Foto: Polícia Civil/Divulgação)

G1 - Esse caso certamente é um dos principais que o senhor já investigou...
Arigony - 
Este caso é o maior inquérito da história da Polícia Civil e espero que seja o maior que a polícia vai ver. O que pode ser maior que a morte de quase 240 pessoas, 500 feridos e todas as repercussões disso?

G1 - Em qual momento você percebeu a relevância do caso?
Arigony - 
Primeiro, ficamos anestesiados com a situação. Perdi a noção de tempo naquela madrugada. Cheguei lá (na boate Kiss) por volta das 5h. Entrei e contei uns 40 corpos, mas não sabia que se avançasse chegaria até o resto do banheiro. Foi horrível. Fizemos um gabinete de gerenciamento de crise e deliberamos por levar os corpos para o Centro Desportivo Municipal (CDM). Ali foram 24 horas trabalhando naquela situação. Quando identificamos o último corpo, levamos ao DML, todos foram descansar. Os 30 atores sociais que estavam lá, como Exército, Brigada Militar, Bombeiros... O trabalho deles tinha terminado e o nosso estava começando. Aí a imprensa caiu aqui. Chegou Al-Jazira, jornalistas chineses, CNN... Esse foi o momento em que deu para parar e pensar que Santa Maria estava no mundo por conta disso.

G1 - Quais as principais particularidades em relação a outros casos?
Arigony - 
É um inquérito  que envolve o clamor social de uma cidade inteira. Envolve a dor de uma cidade inteira. Não há um lugar em que você vá que não tenha alguém que não tenha perdido um parente. Às vezes muito próximo, às vezes mais distante. Que perdeu um amigo, um aluno... A cidade inteira está consternada.

G1 - O que mais chocou o senhor nessa investigação?
Arigony - 
Foi o primeiro dia. Foram 230 vítimas naquele local. Lidamos com isso em 24 horas. Tínhamos de levar ao Centro Desportivo Municipal (CDM). Tivemos de organizar e conter os familiares que queriam ver seus filhos vivos, fazer com que eles entrassem de 10 em 10 em um ambiente onde havia 230 mortos, para os pais reconhecerem os filhos. Foi muito difícil.

G1 - Muito material foi recolhido. Há um filtro em relação ao que será apurado?
Arigony - Estamos compartimentando isso. Tantos depoimentos são sobre a porta, tantos são sobre o forro, etc. Estamos tentando organizar e compartimentar isso para aproveitar de forma organizada. Estamos compilando estes depoimentos para termos um extrato. Normalmente uma prova testemunhal é frágil, mas neste caso são tantos dizendo a mesma coisa que ela se torna um panorama probatório praticamente indelével, muito firme.

G1 - Você e o Sandro Meinerz estão à frente da investigação, e o Marcos Vianna também participa. Quais as atribuições de vocês?
Arigony - 
O Marcos estava entrando em férias, não estava na cidade. Eu fui acionado, fui ao local e coordenei no primeiro momento. O Sandro estava indo para a Operação Verão, mas ele é o delegado da Defrec (Delegacia Especializada de Furtos, Roubos, Entorpecentes e Capturas), a mais importante da cidade. Chamamos todos os delegados e agentes que estavam disponíveis no primeiro dia. Na sequência, precisamos montar uma equipe. Optamos por cancelar a ida do Sandro para a Operação Verão e eu pedi a ele que ele me ajudasse. O Sandro é o braço direito. A delegada Luiza Santos Sousa é responsável pela parte dos depoimentos, que é muito importante, e o delegado Gabriel Zanella, que eu trouxe de Júlio de Castilhos e designei para fazer o inquérito. Ele é o delegado da parte documental, também muito importante. O Marcos Vianna cancelou as férias e está mais na parte de auxílio, de assessoria.

G1 - É possível saber quantas páginas terá este inquérito?
Arigony - 
Temos agora em torno de 4 mil. Não sabemos ainda. Talvez dobre. Quando vierem os prontuários de atendimento dos 500 feridos do hospital, e se cada um mandar 10 páginas, são 5 mil. Temos 13 volumes de 250 páginas no mínimo hoje. São 500 depoimentos e todas estas páginas de inquérito. Os delegados têm trabalhado muito.

Delegado Marcelo Arigony mostra o celular que foi roubado (Foto: Felipe Truda/G1)Arigony e o também delegado Sandro Meinerz,
que ele considera o seu braço direito na
investigação (Foto: Felipe Truda/G1)

G1 - Você tem tempo para exercer alguma atividade social?
Arigony - 
Nada, desde que este fato aconteceu. Na primeira semana, nós praticamente não dormimos. Dormíamos três horas por noite. A partir da segunda semana passamos a dormir quatro ou cinco horas. E deste então estamos trabalhando incessantemente. Não digo que estou trabalhando 15 horas por dia, mas a equipe está. A roda segue girando. Tenho minhas delegacias para coordenar, tenho a parte administrativa. É uma região de 21 municípios. Não temos mais vida desde o fato e vamos continuar assim talvez por mais uns 15 ou 30 dias até que pelo menos a parte principal deste inquérito, já incluindo a questão do alvarás, seja terminada.

G1 - Qual sua idade e há quantos anos você trabalha na polícia?
Arigony - 
Tenho 40 anos, quase 14 de polícia. Antes eu trabalhei quase 10 anos no Banco do Brasil. Me formei em Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), fui a Porto Alegre e ingressei na Escola de Magistratura e passei no concurso para delegado.

G1 - Você lembrou os tempos de faculdade durante a investigação?
Arigony - 
Lembrei. Inclusive o próprio delegado Sandro era meu colega de faculdade. Temos uma amizade de muito tempo por isso. Trabalhamos juntos há bastante tempo. Sou professor de Direito Penal na Fadisma (Faculdade de Direito de Santa Maria) e perdi alunos. Agora as aulas recomeçaram e estamos passando por um momento difícil na faculdade.

G1 - Quantos alunos seus morreram?
Arigony - 
Dois. Uma era a Andressa Brissow. Ela era da minha turma e eu tinha uma relação pessoal com ela. Tínhamos um núcleo de alunos com quem tínhamos uma relação mais próxima. A Andressa era uma. Também perdi uma prima, filha de um tio meu. Ele mora em Brasília e ela, aqui com a mãe. Ela estava na boate. Todos perdemos alguém nesta cidade.

G1 - O senhor é casado, tem filhos?
Arigony - 
Eu estou solteiro,e tenho uma namorada. Já tive uma companheira e tenho uma filha de 18 anos. Moramos hoje só eu e ela.

G1 - Como é a relação entre ela e a tragédia?
Arigony - 
Houve um fato importante. Minha filha fez 18 anos na quinta-feira. Ela queria fazer uma festa e nós deliberamos se seria na sexta-feira ou no sábado. Optamos por fazer na sexta. Fizemos um churrasco lá em casa e ela colocou uma lista com os nomes dos amigos para a boate. O Absinto funcionava em uma sexta-feira e a Kiss, no sábado. Como foi sexta-feira, ela colocou a lista no Absinto. Foram 35 na lista dela. No outro dia eles estavam cansados e ninguém foi à Kiss. Se a festa fosse no sábado, teria sido lá depois do churrasco. Minha prima chegou a convidar a Ana Luiza para ir no sábado, mas ela não foi. É interessante a casualidade...

Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, deixou 239 mortos na madrugada de domingo, dia 27 de janeiro. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco. De acordo com relatos de sobreviventes e testemunhas, e das informações divulgadas até o momento por investigadores:

- O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso.
- Era comum a utilização de fogos pelo grupo.
- A banda comprou um sinalizador proibido.
- O extintor de incêndio não funcionou.
- Havia mais público do que a capacidade.
- A boate tinha apenas um acesso para a rua.
- O alvará fornecido pelos Bombeiros estava vencido.
- Mais de 180 corpos foram retirados dos banheiros.
- 90% das vítimas fatais tiveram asfixia mecânica.
Equipamentos de gravação estavam no conserto.






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