Jurisdição constitucional em microestados europeus
Ao estudarmos o sistema constitucional no Direito Comparado, normalmente voltamos nossa atenção às grandes democracias. A jurisdição constitucional da Alemanha e dos Estados Unidos, por exemplo, são amplamente divulgadas como referência mundial em estudos e decisões. Estamos acostumados a observar nações mais conhecidas, esquecendo-nos de que há diversos arranjos constitucionais, inclusive nos menores países do mundo, os denominados microestados.
Os microestados são países com população, territórios e recursos naturais escassos. Na Europa, enquadram-se nessa descrição Mônaco, Andorra, Liechtenstein, Malta, Vaticano e San Marino[1]. Com tais peculiaridades, cada uma dessas micronações também está, como nós, voltada ao Direito Comparado — não como forma de aprimorar o Direito local, mas, muitas vezes, por questão de praticidade e de necessidade.
É usual que os microestados tenham suporte de países vizinhos, com os quais têm algum vínculo histórico e cultural. É o caso de Mônaco, monarquia constitucional situada ao sul da França, que recebe apoio francês em várias áreas essenciais à sua soberania — como em assuntos ligados à defesa nacional, já que não possui Marinha, nem Aeronáutica.
O mesmo ocorre no âmbito jurídico. A Suprema Corte monegasca, considerada, pelo seu país, a corte constitucional mais antiga do mundo, foi estabelecida pela Constituição de 1911, cujo texto foi elaborado por renomados juristas franceses, Louis Renault, André Weiss, Jules Roche. A Constituição vigente, datada de 1962, dispõe sobre a competência da Suprema Corte, junto com a Lei 2.984, de 1963.
O tribunal máximo de Mônaco tem jurisdição administrativa e constitucional. Na esfera constitucional, é responsável por verificar a conformidade do regimento interno do órgão legislativo monegasco, o Conselho Regional, com dispositivos constitucionais, e apreciar os recursos de anulação, que podem ser interpostos em hipóteses de violação de direitos e garantias constitucionais.
A Corte é composta por cinco membros efetivos e por dois substitutos, indicados pelo príncipe após proposta dos principais órgãos do país. Os eleitos devem ter pelo menos 40 anos de idade e são selecionados “dentre juristas com particular competência”. Na prática, os juízes da Suprema Corte são professores de Direito Público de instituições francesas ou juízes aposentados do Conseil Constitutionnel da França.
Bastante influência francesa também recebe Andorra, microestado localizado nos Pirineus e único país a adotar o catalão como língua oficial. O país é uma diarquia constitucional governada por dois copríncipes: o francês e o episcopal.
Essa questão remonta ao século IX, época em que a região foi defendida e dominada pelo conde de Urgell, nobre espanhol que a anexou ao Condado de Urgell. Dois séculos seguintes, o conde, impossibilitado de governar a região sozinho, pediu ajuda a um outro nobre espanhol, que, por herança, acabou passando seu domínio ao conde de Foix, francês. Começou uma disputa que apenas foi encerrada com tratado assinado em 1278, que determinou o governo conjunto. Essa fórmula, com algumas alterações, é a base do governo adotado hoje, em que o coprincipado francês é exercido pelo presidente da França e o denominado copríncipe episcopal é o bispo de Urgell, diocese localizada na Espanha.
A Corte, estabelecida com base na Constituição de 1993, é formada por quatro membros, os Magistrats Constitucionals, cada um indicado por cada copríncipe e dois pelo Conselho Geral dentre pessoas com reconhecida experiência jurídica e com mais de 25 anos de idade. O mandato dura oito anos, sem possibilidade de renovação. Em 2011, chegou ao fim o exercício de Didier Maus, conhecido jurista francês e indicado pelo copríncipe da França.
É a própria Corte Constitucional de Andorra que determina o procedimento de seus julgados. Ela é competente para apreciar ações de inconstitucionalidade contra leis, decretos e regulamentos do Conselho Geral; pedidos de declaração de inconstitucionalidade de leis e tratados; casos de proteção constitucional e conflitos entre órgãos constitucionais.Os debates e as votações são secretos e em 2011 o Tribunal recebeu 43 causas e resolveu 47.
Liechtenstein, microestado cravado nos Alpes entre Suíça e Áustria, também recebe bastante influência dos vizinhos. Com base na antiga Constituição de 1862, as últimas instâncias do Judiciário nacionais seriam exercidas por tribunais suíços e austríacos.
Criado pelo novo texto constitucional de 1924, o Staatsgerichtshof de Liechtenstein — “a coroa da Constituição” —écomposto por cinco membros efetivos e por cinco suplentes que possuem mandato de cinco anos. No país, é dito que o Tribunal é a primeira corte europeia com amplas competências para realizar o controle abstrato e o concentrado de constitucionalidade, décadas à frente de seu famoso similar alemão, o Bundesverfassungsgericht.
Cercados por solo italiano, encontramos mais dois microestados: San Marino e Vaticano. Este, por conhecido motivo, tem características únicas, mas que não nos impede de fazer algumas considerações sobre seu sistema constitucional. É possível afirmar que o controle exercido no Vaticano é bastante concentrado, no seu sentido literal. A Lei Fundamental, outorgada pelo Papa João Paulo II, em 2001, firma o Sumo Pontífice como soberano e detentor do pleno poder do Legislativo, Executivo e Judiciário. Na prática, o único controle de constitucionalidade que há é o preventivo, já que, de acordo com a Lei Fundamental, projetos aprovados pelo Legislativo (a chamada Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do Vaticano, composta por cardeais indicados pelo Papa) devem ser submetidos à verificação do Pontífice.
Já a “Sereníssima República de San Marino”, nome oficial desse microestado, cuja defesa nacional é feita por uma força de segurança pública composta por 50 pessoas, é a menor república do mundo. San Marino não tem uma Constituição oficial, mas uma série de documentos que remontam aos “Estatutos de 1600”. Em 1974 foi promulgada uma lei com status constitucional, a “Declaração dos Direitos dos Cidadãos e dos Princípios Fundamentais da Ordem Constitucional de San Marino”.
O órgão de defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos é o “Colégio de Garantidores da Constitucionalidade das Leis e dos Procedimentos”, instituído em 2002. Até então, o controle de constitucionalidade das leis era feito pelo Conselho Geral e pelo Grande Conselho, o Parlamento local, que, reunido no “Conselho dos 12”, apreciava a validade de normas por ele mesmo elaboradas.
A corte suprema de San Marino é composta por três juízes titulares e três substitutos, que possuem mandato de quatro anos e são eleitos por membros do Parlamento e escolhidos dentre juristas com mais de 20 anos de experiência. A composição é feita de tal modo que a cada dois anos um terço da corte seja renovada.
O Colégio Constitucional tem a competência para julgar a constitucionalidade de leis e procedimentos a pedido de ao menos 20 conselheiros do Congresso; de cinco conselheiros municipais; de 1,5% dos eleitores ou a pedido de juízes ou das partes envolvidas em um caso julgado em cortes inferiores. Além disso, é responsável pela resolução de conflitos entre órgãos constitucionais, para determinar se referendos podem ser feitos e para realizar “intervenções de censura” nas atividades dos regentes.
Finalmente, Malta, país formado por três ilhas em um ponto considerado estratégico no mediterrâneo, recebeu forte influência britânica. Até 1964 esteve sob domínio do Reino Unido, quando se tornou uma democracia parlamentarista ligada ao Commonwealth. Uma década depois, transformou-se em república, por meio de reforma constitucional.
A Corte Constitucional maltesa foi instituída pela Constituição de 1964, o 11º texto constitucional que o país já teve — o primeiro é de 1813. É composta por apenas três juízes, sendo que um é eleito o presidente da Corte e não há mais o cargo de vice, extinto em reforma recente.
O site do Poder Judiciário de Malta é moderno e bastante explicativo. De acordo com seu texto introdutório, a página se presta a indicar o trabalho dos “42 membros do Judiciário de Malta: 21 juízes e 21 magistrados”. Um número que, sem dúvida, facilita qualquer ação no sentido de demonstrar a transparência desse órgão maltês.
A diferença entre juízes e magistrados é a instância nos quais estão lotados. Os juízes são membros das Cortes Superiores e precisam ter exercido advocacia em Malta por não menos do que 12 anos ou ter trabalhado com ou atuado como magistrado pelo mesmo período. Para ser magistrado, ou seja, ser julgador da primeira instância, deve-se ter experiência de sete anos na área do Direito. Ambos os cargos são nomeados pelo Prime Minister.
Esses exemplos servem para demonstrar, ainda que em linhas gerais, como países com recursos geográficos, materiais e humanos quantitativamente limitados preservam sua ordem jurídico-constitucional.
Os microestados necessitam, muitas vezes, transferir funções essenciais e diretamente vinculadas ao seu poder soberano ao auxílio externo. Moldam sua soberania contando com o auxílio de nações vizinhas. Com arranjos que incluem participação de estrangeiros em seus Tribunais Constitucionais, firmam a jurisdição constitucional como importante meio de proteção dos direitos e garantias constitucionais nacionais.
[1] O artigo foi elaborado com base nas informações disponíveis nos sites oficiais do Poder Judiciário e do Governo dos países mencionados no texto.
Beatriz Bastide Horbach é assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen, Alemanha e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
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