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Cidades/Geral
Segunda - 06 de Fevereiro de 2006 às 13:56

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No abandono do anonimato, portadores do HIV que vivem na Casa da Mãe Joana - único abrigo filantrópico em Mato Grosso que atende a soropositivos em tratamento - quase sempre não têm ninguém por eles. E três anos depois do desvio de R$ 150 mil dos cofres da unidade ter se tornado público, a Casa ainda não conseguiu prestar contas aos governos federal, estadual e municipal, que cortaram todos os aportes que antes repassavam, alegando impedimento legal, penalizando os pacientes. O Ministério Público, órgão responsável por fiscalizar entidades filantrópicas, ainda não arquivou a última denúncia que recebeu contra a instituição, em 27 de julho de 2005, mas demonstra desconhecer com detalhes o que está ocorrendo debaixo deste teto.

"Uma pessoa suspeitou de uma irregularidade, foi visitar a Casa e ofereceram a ela uma máquina esterelizadora por R$ 15 mil, mas verificamos e não encontramos nada que justificasse um inquérito", avalia o promotor de Patrimônio Público, Roberto Turim.

Em meio à crise de credibilidade que afastou doadores, o presidente da Casa, João Bosco Monteiro, que não falou com a imprensa durante a semana, fez um acordo com a empresa de telemarketing, HC Produtos Alimentícios, que oferece por telefone sacos de lixo, produtos de limpeza e panos de prato em nome da Casa, mas repassa apenas 10% do que arrecada à ela, embora sobreviva apenas usando o nome da instituição. O proprietário da empresa, Hugo de Lima Aleixas, se diz amigo do presidente da Casa. Visivelmente irritado, não quis mostrar o contrato assinado entre as partes. No escritório o qual diz ser uma extensão da Casa, no bairro Lixeira, informou apenas que abriu a firma em 1º de dezembro. Não revelou quanto tem conseguido vender em nome da Casa, por meio de 15 assistentes de telemarketing que contratou para trabalhar em horário comercial, nem quanto já transferiu ao abrigo. A Casa precisa de ajuda, porém a pessoa chamada a ser solidária por telefone não é informada sobre este acordo de "pai para filho" e pensa estar doando na integralidade à instituição.

Por trás disso tudo, vão levando a vida cerca de 30 pacientes, de Mato Grosso e de outros estados. Apesar da perda de proteínas que sofrem com a ingestão dos antiretrovirais, o que comem no café da manhã é pão vencido, que "um rapaz pega nos supermercados", sem manteiga, café e leite. No almoço, arroz, feijão e carcaça que um frigorífico doou. Faltam verduras e frutas. Quando alguém passa mal, não pode mais contar com a ambulância que tinha na Casa. De tanto uso estragou. Na emergência, quem está presente no momento participa de uma "vaquinha" para por gasolina em uma Brasília azul, dos anos 70, que é do administrador e um dos fundadores da Casa, Paulo Rogério Rodrigues. "Tem um funcionário da policlínica aqui perto que também ajuda. Fora ele, mais ninguém".

É de Paulo a argumentação de que o acordo feito com a empresa de telemarketing pode não ser tão interessante, mas, no momento de desespero, pelo menos 10% já é alguma coisa. Ele diz ainda que os pacientes ajudam na manutenção da casa, recolhendo garrafas peti e outros produtos de reciclagem, além de fazerem palestras em instituições de ensino. "Pedimos só que cada aluno leve um quilo de alimento não perecível".

As poucas lâmpadas que funcionam no local foram recolhidas no antigo prédio do fórum, que está desativado. "Senão a gente estava no escuro", reclama um baiano, de 39 anos, negro, que se soube soropositivo há 4 anos, quando morava no interior de Mato Grosso, na zona rural. "Começaram a aparecer umas feridas no meu braço e como eu sou um homem precavido fiz um check-up: deu positivo".

Outro problema aparece quando chove. A madeira usada na reforma feita com o recurso da campanha do supermercado Modelo em 2000 - que vendeu camisetas em suas lojas -estava verde e vergou em vários pontos da casa. "A gente tem que sair da cama, porque molha tudo e, se tiver alguém acamado, tem que carregar no colo para outro lugar", relata outra hóspede, uma mulher, 27, ex-prostituta, que também vivia no interior de MT, em Rondonópolis. Ela assegura ter contraído Aids no trabalho com o sexo, que assumiu antes mesmo dos 17 anos.

Todos os sete funcionários que restaram na Casa - eram 18 - estão com o salário atrasado.

A assessoria jurídica do município, Ana Lídia Souza Marques, explica que havia um convênio entre a Prefeitura e a Casa, prevendo o pagamento de energia elétrica, carne e folha de pessoal. "Luz e carne estão fora da finalidade pública da Saúde. Tivemos que cortar", argumenta ela. "O pessoal podemos ceder, médicos, enfermeiros, oferecemos isso ao presidente da Casa, que negou. Ele quer a contratação dos seus funcionários e isso não será possível", finaliza ela, afirmando que, além de estar em falta com a prestação de contas antiga, do tempo do desvio, falta também à Casa da Mãe Joana papelada da atual gestão, como a apresentação do CNPJ, cadastro de pessoa jurídica, documento que atesta a existência legal de uma empresa. "Senão a gente não sabe de quem vai cobrar responsabilidade".

Passar por cima destas obrigações legais é, para o secretário Adjunto de Saúde do Estado, o médico ortopedista Antônio Augusto de Carvalho, "passar a mão na cabeça da instituição". O apoiamento que, segundo ele, o Estado pode oferecer aos soropositivos da Casa é através de consultas médicas, exames e medicamentos, inclusive para doenças oportunistas. Ou seja, o mesmo que qualquer cidadão comum tem direito legal de receber na saúde pública.

Indagado sobre a omissão do Estado, que não tem um teto para abrigar pacientes HIV em tratamento na Capital, ele diz que "isso não é uma obrigação da saúde pública, mas um problema social e portanto da sociedade como um todo".

Por fim ele avalia que as secretarias de assistência social do município e Estado é que deveriam intervir.

HIV positivo há 15 anos, Leiry Rodrigues, da ONG Corações Amigos, que existe para defender os direitos dos portadores do HIV, faz duras criticas à Casa. "Nós sempre dissemos que aquilo ali é um antro, mas não nos deram ouvidos. A Casa tem que fechar enquanto instituição filantrópica e o Estado deve assumir esta responsabilidade", cobra.

A casa da Mãe Joana mudou de nome tentando fugir da falta de credibilidade, mas Casa da Solidariedade não pegou. A instituição, que já completou 13 anos, tem fama em outros estados, já que nem todos contam com este tipo de serviço gratuito. Os hóspedes bem sabem o quanto este teto é importante e necessário. Pelo menos 4 mil já passaram por ali.




Fonte: Gazeta Digital

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