Concorrência no contencioso reduz qualidade do serviço
Quando comecei a me interessar por política, o que ocorreu quando ingressei no colegial (atualmente segundo grau), vivíamos no Brasil sob a ditadura militar, enquanto no leste europeu reinava a URSS — União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
As virtudes do regime soviético eram diariamente enaltecidas na escola, quer por alunos engajados no movimento estudantil, quer por professores. Algo que me chamava a atenção era a alusão à inexistência de propriedade privada dos meios de produção, ou seja, as empresas pertenciam ao Estado, que por sua vez pertencia ao povo; portanto, inexistia a figura do patrão: todos trabalhavam para o Estado, que a todos remunerava de forma equânime. Todavia, a crítica capitalista era contundente: tudo não passava de uma grande farsa, onde o Estado fingia que pagava aos operários e esses fingiam que trabalhavam.
Vivemos hoje, no Direito, uma época de grandes números, principalmente devido ao fenômeno da concentração de empresas. Essas cresceram muito e seus números se agigantaram. Assim, temos empresas com 50.000 processos em determinada área do Direito, mais 30.000 em outra e assim por diante.
Muitos escritórios de advocacia, de seu turno, também se modificaram e cresceram para poder atender a esse novo tipo de cliente. Assim, vemos hoje inúmeros escritórios com mais de 100 advogados, estruturados exclusivamente para atender a essa massa de processos das empresas.
A concorrência entre os escritórios que se adaptaram para atuar com contencioso de massa também se acirrou sobremaneira. E, aparentemente, as empresas acham que estão tirando bom proveito disso.
A contratação de honorários junto a muitos desses escritórios se dá por um valor fixo por mês, por processo. O escritório, ao aceitar os processos, os recebe como uma mercadoria e, em sua maioria, sem qualquer análise prévia dos mesmos, enquanto que as empresas, de seu turno, miram apenas no custo por mês, por processo.
Já se escuta aqui e acolá que o escritório X aceitou receber R$ 10,00 ao mês por processo, outro R$ 8,00 e assim por diante. Todavia, não existe mágica: esse aviltamento dos honorários pagos aos escritórios tem como contrapartida advogados trabalhando em péssimas condições, constantes perdas de prazo com o consequente aumento do custo do seguro profissional, advogados processando escritórios para exigir direitos trabalhistas desrespeitados, altíssima rotatividade de profissionais e, mais recentemente, escritórios quebrando, quer em decorrência do atraso no pagamento dos honorários pela empresa, quer porque os honorários recebidos não são suficientes para fazer frente aos custos.
Por óbvio que se criou um discurso para justificar essa sistemática de contratação de escritórios, na qual o que importa é o preço. Com efeito, alegam as empresas que na Justiça do Trabalho, por exemplo, o empregado sempre tem razão; então, para que pagar por um profissional bem qualificado se o resultado será sempre o mesmo? Os escritórios, por seu turno, em face desse discurso, também se sentem desobrigados de mostrar bons resultados; em gíria futebolística poderíamos dizer que estão todos “cumprindo tabela”. O que importa unicamente é não perder prazo; o Direito mesmo é colocado de lado.
A situação chega a ser risível em algumas audiências, quer em Juizados Especiais, quer na Justiça do Trabalho: profissionais que se sentam à mesa de audiências sem jamais terem tido qualquer contato com o processo da empresa cujos interesses estão lá para defender.
Pois bem, os tempos são outros, o regime soviético ruiu e as empresas das antigas repúblicas soviéticas passaram para a propriedade privada. Todavia, dia desses, ouvi de um colega advogado um comentário curioso sobre a forma de contratação de escritórios para lidar com contencioso de massa, similar a uma das críticas que se fazia ao regime soviético. Disse ele:
— Pois é, em muitas dessas contratações, as empresas fingem que pagam e os escritórios fingem que trabalham.
Comentários