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Duelo da desigualdade define desfecho da CPMI da Terra
Enquanto o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Investigação (CPMI) da Terra estava sendo apresentado no Senado, na manhã da última terça-feira (22), as atenções da maior parte da imprensa e do mercado financeiro se voltavam para mais um depoimento do ministro Antonio Palocci (Fazenda) na Câmara, para as sessões simultâneas das CPIs dos Bingos e dos Correios e para a votação de mais um recurso relativo ao pedido de cassação do deputado José Dirceu (PT-SP).
A coincidência mereceu comentário do relator da CPI, deputado João Alfredo (PSOL-CE). Antes de dar início à leitura oficial dos principais pontos de seu parecer, ele fez questão de ressaltar as características de cada compromisso. De acordo com ele, as outras concorridas reuniões apresentavam características “mais ligadas à conjuntura política”, ao passo que a CPMI da Terra se debruçava sobre “problemas estruturais”. Com esse comentário, o relator procurou sublinhar a necessidade de ampliação do espaço para o debate do impressionante quadro de desigualdade social retratado pela comissão.
Essa mesma desigualdade – que, traduzida em representantes eleitos, divide a comissão praticamente no meio entre ruralistas e defensores das causa dos sem-terra – deve marcar a votação do relatório, na próxima quinta-feira (24), depois do pedido coletivo de vistas apresentado pelos deputados Jamil Murad (PCdoB-SP) e Abelardo Lupion (PFL-PR).
Instalada “com o objetivo de realizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores (...), assim como os movimentos de proprietários de terras (...)” e identificar “caminhos para sua solução”, a CPMI da Terra corre o risco de ser fragmentada por cerca de 30 emendas já prometidas pelos ruralistas. O próprio presidente da comissão, senador Álvaro Dias (PSDB-PR), prevê mudanças no sentido de incluir e/ou extrair novas recomendações e reforçar a responsabilização do poder público.
Alguns números ajudam a compreender a relevância e a densidade do relatório final, da forma como ele foi apresentado. Foram mais de 40 reuniões em quase dois anos de trabalho. Aproximadamente 75 mil páginas de documentos passaram pelo crivo dos parlamentares e 125 pessoas foram oficialmente ouvidas pela comissão, que promoveu apurações em nove unidades federativas do Brasil.
Esse profundo mergulho no universo do sistema rural brasileiro foi condensado num único calhamaço de cerca de 800 páginas e confere especial destaque para o combate ao trabalho escravo. Revela o tamanho e a forma do abismo social no Brasil, país que comporta dois mundos completamente distintos.
Milhão x bilhão O relatório toma como base, logo de início, o Cadastro Nacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para dar contornos quantitativos do nível de concentração fundiária. “De acordo com dados desse Cadastro, 1,6% dos proprietários com imóveis acima de mil hectares detêm 46,8% da área total existente no País, ao passo que as propriedades com área de até 10 hectares representam 32,9% do total de imóveis, mas possuem apenas 1,6% da área total”, destaca o relator.
A despeito dos quase inacreditáveis índices de concentração de terra no Brasil, a comparação entre as cifras e os privilégios ofertados às organizações camponesas, de um lado, e às entidades ruralistas, de outro, é ainda mais chocante. Acusadas de desvio e malversação de recursos públicos ainda durante a CPI, três organizações de trabalhadores e trabalhadoras sem terra - a Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca), a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab) e o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra) – receberam nos últimos dez anos, em convênios com o governo federal, um total de R$ 41,758 milhões.
No mesmo período, cinco entidades ligadas aos chamados “ruralistas” - a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) – amealharam juntas R$ 1,052 bilhão, por meio de convênios e repasses de valores arrecadados pelo Ministério da Previdência Social a título de contribuições mensal compulsória.
Normas x realidade A pedido da CPMI da Terra, o Tribunal de Contas da União (TCU) examinou convênios tanto das organizações camponesas como das entidades ruralistas com o governo federal. Em ambos os casos, as análises do TCU apontaram indícios de irregularidades. O relator ressaltou em seu parecer, porém, que os relatórios produzidos pelos analistas de controle externo e enviados à comissão ainda são de natureza preliminar. “Os trabalhos dos analistas do Tribunal serão considerados como subsídios de análise, pois, no estágio atual eles não espelham a posição institucional do Órgão, visto que ainda não cumpriram os trâmites internos necessários. São apontamentos dos técnicos que desempenham as tarefas preliminares do processo, que pode sofrer muitas alterações ou mesmo não serem acatados”, explica Alfredo no relatório. “O próprio Presidente do TCU [Ministro Adylson Motta], nas três correspondências encaminhadas à esta Comissão, ressalta que os relatórios das Secretarias de Controle Externo são preliminares (grifo do relator) e que a matéria ainda não foi apreciada conclusivamente pelo Tribunal, razão pela qual são de caráter reservado”, complementa, em outro trecho do texto final.
Curiosamente, a desigualdade social aparece inclusive nas modalidades das supostas irregularidades, segundo as análises não-conclusivas do TCU. Foram apontados fortes indícios de superfaturamento em contrato no valor de R$ 199.017,00 da SRB com o Ministério da Agricultura para a publicação de um informativo. No caso das organizações camponesas, o Tribunal não deixou passar em branco o problema dos saques na boca do caixa praticados pela Anca e pela Concrab. Esse procedimento, segundo os relatórios preliminares, fere instrução normativa da Secretaria do Tesouro Nacional sobre movimentação dos recursos de convênios para garantir o controle na aplicação de dinheiro público.
Segundo a confederação, as atividades previstas nos convênios são realizadas, em sua grande maioria, em assentamentos ou locais de difícil acesso, “distantes, neste sentido, dos centros urbanos e, por conseqüência, das agências bancárias” e o público que participa dessas mesmas atividades “é constituído de trabalhadores rurais que moram no campo, sendo, em muitos casos, analfabetos, os quais não detém certidão de nascimento, carteira de identidade, inscrição no cadastro de pessoas físicas e, por conseqüência, entre outros fatores decorrentes, não participam do sistema de crédito bancário, fato que impossibilita o acesso às linhas de financiamento”.
O documento da Concrab acrescenta ainda “que muitos dos participantes vêm sem recurso algum para o evento e que o único valor que vão ter para comprar as passagens de retorno e pagar a alimentação é o percebido no evento”. Portanto, a entidade sustenta a total inviabilidade do pagamento das eventuais despesas das atividades por ordem de pagamento à vista, a fim de que seja depositado em conta bancária. “Os elementos apresentados conduzem a duas afirmações: a) que sustentar postura diversa, neste ponto, demonstra um completo desconhecimento da realidade do campo; b) que a legislação que regula a matéria dos convênios, em especial, a Instrução Normativa 01/97, não dialoga com a realidade rural brasileira”, coloca.
A coincidência mereceu comentário do relator da CPI, deputado João Alfredo (PSOL-CE). Antes de dar início à leitura oficial dos principais pontos de seu parecer, ele fez questão de ressaltar as características de cada compromisso. De acordo com ele, as outras concorridas reuniões apresentavam características “mais ligadas à conjuntura política”, ao passo que a CPMI da Terra se debruçava sobre “problemas estruturais”. Com esse comentário, o relator procurou sublinhar a necessidade de ampliação do espaço para o debate do impressionante quadro de desigualdade social retratado pela comissão.
Essa mesma desigualdade – que, traduzida em representantes eleitos, divide a comissão praticamente no meio entre ruralistas e defensores das causa dos sem-terra – deve marcar a votação do relatório, na próxima quinta-feira (24), depois do pedido coletivo de vistas apresentado pelos deputados Jamil Murad (PCdoB-SP) e Abelardo Lupion (PFL-PR).
Instalada “com o objetivo de realizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores (...), assim como os movimentos de proprietários de terras (...)” e identificar “caminhos para sua solução”, a CPMI da Terra corre o risco de ser fragmentada por cerca de 30 emendas já prometidas pelos ruralistas. O próprio presidente da comissão, senador Álvaro Dias (PSDB-PR), prevê mudanças no sentido de incluir e/ou extrair novas recomendações e reforçar a responsabilização do poder público.
Alguns números ajudam a compreender a relevância e a densidade do relatório final, da forma como ele foi apresentado. Foram mais de 40 reuniões em quase dois anos de trabalho. Aproximadamente 75 mil páginas de documentos passaram pelo crivo dos parlamentares e 125 pessoas foram oficialmente ouvidas pela comissão, que promoveu apurações em nove unidades federativas do Brasil.
Esse profundo mergulho no universo do sistema rural brasileiro foi condensado num único calhamaço de cerca de 800 páginas e confere especial destaque para o combate ao trabalho escravo. Revela o tamanho e a forma do abismo social no Brasil, país que comporta dois mundos completamente distintos.
Milhão x bilhão O relatório toma como base, logo de início, o Cadastro Nacional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para dar contornos quantitativos do nível de concentração fundiária. “De acordo com dados desse Cadastro, 1,6% dos proprietários com imóveis acima de mil hectares detêm 46,8% da área total existente no País, ao passo que as propriedades com área de até 10 hectares representam 32,9% do total de imóveis, mas possuem apenas 1,6% da área total”, destaca o relator.
A despeito dos quase inacreditáveis índices de concentração de terra no Brasil, a comparação entre as cifras e os privilégios ofertados às organizações camponesas, de um lado, e às entidades ruralistas, de outro, é ainda mais chocante. Acusadas de desvio e malversação de recursos públicos ainda durante a CPI, três organizações de trabalhadores e trabalhadoras sem terra - a Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca), a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil (Concrab) e o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (Iterra) – receberam nos últimos dez anos, em convênios com o governo federal, um total de R$ 41,758 milhões.
No mesmo período, cinco entidades ligadas aos chamados “ruralistas” - a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), a Sociedade Rural Brasileira (SRB), a Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) – amealharam juntas R$ 1,052 bilhão, por meio de convênios e repasses de valores arrecadados pelo Ministério da Previdência Social a título de contribuições mensal compulsória.
Normas x realidade A pedido da CPMI da Terra, o Tribunal de Contas da União (TCU) examinou convênios tanto das organizações camponesas como das entidades ruralistas com o governo federal. Em ambos os casos, as análises do TCU apontaram indícios de irregularidades. O relator ressaltou em seu parecer, porém, que os relatórios produzidos pelos analistas de controle externo e enviados à comissão ainda são de natureza preliminar. “Os trabalhos dos analistas do Tribunal serão considerados como subsídios de análise, pois, no estágio atual eles não espelham a posição institucional do Órgão, visto que ainda não cumpriram os trâmites internos necessários. São apontamentos dos técnicos que desempenham as tarefas preliminares do processo, que pode sofrer muitas alterações ou mesmo não serem acatados”, explica Alfredo no relatório. “O próprio Presidente do TCU [Ministro Adylson Motta], nas três correspondências encaminhadas à esta Comissão, ressalta que os relatórios das Secretarias de Controle Externo são preliminares (grifo do relator) e que a matéria ainda não foi apreciada conclusivamente pelo Tribunal, razão pela qual são de caráter reservado”, complementa, em outro trecho do texto final.
Curiosamente, a desigualdade social aparece inclusive nas modalidades das supostas irregularidades, segundo as análises não-conclusivas do TCU. Foram apontados fortes indícios de superfaturamento em contrato no valor de R$ 199.017,00 da SRB com o Ministério da Agricultura para a publicação de um informativo. No caso das organizações camponesas, o Tribunal não deixou passar em branco o problema dos saques na boca do caixa praticados pela Anca e pela Concrab. Esse procedimento, segundo os relatórios preliminares, fere instrução normativa da Secretaria do Tesouro Nacional sobre movimentação dos recursos de convênios para garantir o controle na aplicação de dinheiro público.
Segundo a confederação, as atividades previstas nos convênios são realizadas, em sua grande maioria, em assentamentos ou locais de difícil acesso, “distantes, neste sentido, dos centros urbanos e, por conseqüência, das agências bancárias” e o público que participa dessas mesmas atividades “é constituído de trabalhadores rurais que moram no campo, sendo, em muitos casos, analfabetos, os quais não detém certidão de nascimento, carteira de identidade, inscrição no cadastro de pessoas físicas e, por conseqüência, entre outros fatores decorrentes, não participam do sistema de crédito bancário, fato que impossibilita o acesso às linhas de financiamento”.
O documento da Concrab acrescenta ainda “que muitos dos participantes vêm sem recurso algum para o evento e que o único valor que vão ter para comprar as passagens de retorno e pagar a alimentação é o percebido no evento”. Portanto, a entidade sustenta a total inviabilidade do pagamento das eventuais despesas das atividades por ordem de pagamento à vista, a fim de que seja depositado em conta bancária. “Os elementos apresentados conduzem a duas afirmações: a) que sustentar postura diversa, neste ponto, demonstra um completo desconhecimento da realidade do campo; b) que a legislação que regula a matéria dos convênios, em especial, a Instrução Normativa 01/97, não dialoga com a realidade rural brasileira”, coloca.
Fonte:
Agência Carta Maior
URL Fonte: https://reporternews.com.br/noticia/333709/visualizar/
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