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Terça - 01 de Junho de 2004 às 15:17
Por: João Bernardo Caldeira

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Caetano Veloso é um trapaceador. Instiga. Deixa no ar. Escorrega. Usa e abusa do direito de retorcer as palavras até o duplo, o triplo sentido. Por mais que goste de um bom esconde-esconde, zombeteiro e malemolente, tem de ser levado a sério. De seu disco, escorre uma tese de mestrado. Sobre a canção americana, a bossa nova, o rock, o imperialismo, a vanguarda, o cafona, o chique. Dialoga com signos diversos, distantes, díspares, nem sempre legíveis.

Composto basicamente por standards americanos, A Foreign Sound, pela primeira vez com tamanha veemência em sua carreira, discorre sobre a história da música. Não brasileira, mas mundial. Ou alguém aí tem alguma dificuldade em concordar quando ele diz (em entrevista coletiva para a imprensa) que a música americana é paradigma para todo o Ocidente?

"Ivan Lins é música. Nirvana é lixo", joga a falsa pista, se auto-citando no encarte do disco que traz Come as You Are do... Nirvana. Quem disse que não se pode gostar de lixo? Rock é gostoso por ser marginal, vira-lata, feio, tosco, mal feito, três acordes. Bob Dylan, por sua vez - mais um no mosaico onde entram Cole Porter, Irvin Berlin, Stevie Wonder e Paul Anka -, entra apenas para fornecer a frase que dá título ao disco, tirada de It's Alright, Ma (I'm only bleeding).

E o título é tudo. Caetano grava música americana, no Brasil, percorrendo a mesma estrada que passou, só que no sentido inverso, quando fez o disco Estrangeiro, de músicas brasileiras registradas lá fora. Feelings é tão brega, mas tão brega, que quase podemos ouvir os risos irônicos de Caetano ao regravar uma música feita por um brasileiro de codinome Morris Albert. O coitado, ainda por cima, perdeu um processo de plágio para um francês. A leitura respeitosamente brega, fiel à original, zomba do fato dos americanos terem assumido Feelings como um clássico americano.

Feelings não é brasileira, nem americana. É forasteira, de lugar nenhum, tal como se afirma o próprio Caetano. Ele sai do Brasil. De si mesmo. Desgarrado, se debate. Cita os arranjos bossanovistas, que, vá lá, influenciaram parcamente a música americana. Mas lembra que o oposto é muito mais verdadeiro, tupiniquins sempre seremos, quase americanos. Na porta. Do lado de fora.

Os donos da festa não precisam que um brasileiro venha lhes dizer como gravar suas próprias músicas. Os brasileiros também não precisam ver seus 'american dreams' desfiados estranhamente um a um (cadê a beleza apolínea de um Rod Stewart?, se ressentem). Errante, Caetano ri, faz graça, mas também padece. Não é pura provocação quando diz que acha que não fez grande coisa na música. Mira no Tio Sam, pequenino, mulato, brasileiro reles. Mas não se entrega, terceiro mundista teimoso, ranhento como Glauber Rocha, que tem sua trilha para Deus e o Diabo na Terra do Sol citada numa faixa. Ele se levanta, o dedo em riste, e diz, com um sorrisinho impenetrável no canto da boca: "Eu tudo posso".




Fonte: Terra

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