Rede de "coiotes" controla tráfico Esquema se consolidou na Amazônia ocidental, entre Peru, Brasil e Bolívia
A cena, numa rua de terra vazia, quase ninguém vê: um grupo de 11 haitianos desce as escadas que levam a quartos precariamente construídos em cima de um bar, na periferia de Puerto Maldonado, no Peru, e rapidamente embarca numa van. O discreto fluxo é parte da rota de imigração ilegal para o Brasil.
No carro contratado por um "coiote", eles são orientados a deixar as janelas como estão, tampadas pelas cortinas. Por segurança, pede o motorista peruano, é melhor que ninguém os veja no trajeto.
Sentado na última fileira, Deny, 35, um dos 11, tentava conter o nervosismo calculando o que faltava: eram os momentos finais de uma saga que começara havia mais de uma semana, no Haiti.
Quatro horas depois, ele e os demais se somariam aos milhares de estrangeiros que entraram no Brasil por meio dos grupos que controlam o tráfico internacional de imigrantes na fronteira.
A Folha acompanhou, há duas semanas, o esquema que se consolidou livremente na fronteira da Amazônia ocidental, entre Peru, Brasil e Bolívia, e que é responsável por enviar semanalmente ao país uma média de 400 imigrantes ilegais, a imensa maioria haitianos e africanos.
A rede funciona graças a um endêmico sistema de corrupção que conta com o beneplácito de integrantes da Polícia Nacional peruana.
Desde 2011, segundo dados dos governos federal e do Acre, mais de 25 mil imigrantes entraram no Brasil pela região. A rota na estrada Interoceânica, que liga o Atlântico (Brasil) ao Pacífico (Peru), tornou-se a principal porta de imigrantes ilegais no país.
Poucos são os que conseguem fugir dos grupos criminosos, que chegam a cobrar até US$ 4.000 (R$ 8.880) pelo trajeto do Haiti até o Brasil -para os haitianos, esse valor representa meses de trabalho de toda uma família, que espera do imigrante um retorno financeiro futuro.
A prática é similar ao tráfico de imigrantes entre o México e os EUA. Outra semelhança é o corredor de trânsito de cocaína. A principal diferença, contudo, é a violência, imensamente superior na fronteira mexicana.
Pessoas como Deny, que buscam o Brasil atrás de "dias melhores", são obrigadas a usar os serviços de "coiotes" e muitas vezes acabam roubadas, extorquidas e mantidas em condições subumanas.
Alguns têm o passaporte retido por não pagar o exigido pela travessia. Há até relatos de mulheres forçadas a pagar dívidas com o próprio corpo.
Propina
Puerto Maldonado, a 233 km da fronteira brasileira, é o último e mais perigoso ponto da travessia, dizem os imigrantes. Sem direitos e praticamente invisíveis na cidade de 38 mil habitantes, os estrangeiros negros são mantidos pelos "coiotes" em albergues até a viagem ao Brasil.
Sem se identificar como tal, a reportagem se hospedou em um dos hotéis usados pela rede de "coiotes" e flagrou imigrantes mantidos em cárcere privado em quartos que mais parecem celas, com trancas do lado de fora.
A Folha também viu a atuação de policiais peruanos, que colaboram para o tráfico de imigrantes. Após negociação com o motorista, e identificando-se, a reportagem viajou na van que levou Deny e os demais haitianos até Assis Brasil, no Acre.
Para poder seguir até a fronteira, o motorista pagou propina para a polícia em duas das quatro paradas em postos de inspeção no Peru.
Como haitianos e africanos atravessam o país em situação irregular, sem visto, os policiais ameaçam deportá-los.
"Em uma parada, um dos chefes da polícia disse: 'Faço o que quero, posso mandar alguém para trás ou fazê-lo prosseguir. Se quiser continuar, terá de pagar'", contou o haitiano Jeremie Dozina, que chegou ao Brasil no dia 14, após dez dias de viagem. O trajeto, além de longo, é muitas vezes marcado por fome e falta de higiene pessoal.
Prostrado na fronteira e sem dinheiro para comer ou pagar um ônibus até Rio Branco, onde há um abrigo para os imigrantes, Dozina diz ter deixado ao menos R$ 660 com "coiotes" e policiais peruanos.
O tráfico de imigrantes começa no Haiti e na República Dominicana, país vizinho e de onde eles voam até o Equador. De lá, iniciam a viagem terrestre até o Brasil. De Quito até o Acre, cortando o Peru, são 3.477 km.
Para os africanos que começaram a usar a rota no ano passado, o trajeto é o mesmo desde o Equador, onde eles chegam em voos da Espanha.
Apesar de o esquema funcionar abertamente no Peru desde 2011, autoridades locais do Ministério Público e da Polícia Nacional afirmaram à Folha que não há investigação, pois não houve denúncia até o momento.
A Polícia Federal brasileira tem ciência do esquema no Peru, mas diz que nada pode fazer. No lado brasileiro, policiais informaram que estão cadastrando os taxistas que levam os imigrantes da fronteira até Rio Branco, forma de tentar coibir abusos e roubos.
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