Seleção tem histórico positivo contra africanos em Copas do Mundo
Romário passa pelo zagueiro Raymond Kalla para marcar o primeiro gol na vitória de 3 a 0 sobre Camarões, na fase de grupos da Copa de 1994. Brasil venceu todos os jogos contra equipes africanas em Mundiais - Cezar Loureiro / Arquivo O Globo
TERESÓPOLIS — Além das marcas do açoite e de uma ferida que não fecha, o couro também deixa a possibilidade do alívio. Esticado sobre os tambores ou em torno de uma câmara de ar, serve para elevar corpo e espírito de quem ainda precisa atenuar o sofrimento fazendo música e jogando bola. Desde o tráfico de escravos que os dois lados do Oceano Atlântico compartilham ritos, ritmos, dores e alegrias, salvo no campo esportivo. Em seis jogos contra times africanos em Copas, a seleção brasileira venceu todos. Já eliminado, cabe a Camarões tentar acabar com a festa na casa grande do futebol mundial.
Com listras verticais amarela, vermelha e verde, a bandeira do próximo adversário do Brasil funciona como um sinal de trânsito que orienta o caminho para o hexa. Depois da parada contra o México, basta olhar em volta para acreditar que a seleção vai seguir em frente sem problemas.
Diante de um rival desagregado por problemas internos, pela suspensão do volante Song e pelos problemas físicos do artilheiro Eto’o, basta um empate para assegurar a classificação independentemente do resultado de México x Croácia. Em caso de vitória mexicana, o Brasil pode até perder. Nesta possibilidade, a classificação viria com a segunda vaga do grupo, mas quem veste a camisa amarela busca sempre o primeiro lugar.
— Falar de Holanda e Chile seria um desrespeito a Camarões. Vamos tentar a vitória para ficar em primeiro. Camarões é uma seleção forte, independentemente de estar eliminada. Vai mostrar seu melhor, vai querer ganhar — disse o goleiro Júlio César, testemunha das peças que o futebol costuma pregar. — Camarões já ganhou da gente na Copa das Confederações de 2003, com gol do Eto’o. Eu estava no banco.
ZAIRE FOI A PRIMEIRA VÍTIMA
Na ocasião, a euforia africana se transformou em drama devido ao ataque cardíaco que matou Marc Foé durante a semifinal contra a Colômbia. Na decisão, a derrota para a França confirmou a vocação para o sofrimento que se estende a todo o continente quando o mundo se reúne em torno da Copa do Mundo. A primeira vez que uma zebra africana cruzou o caminho do Brasil foi na Copa de 1974, quando o time de Zagallo penou para conseguir os três gols de vantagem que o levaram à segunda fase após vitória por 3 a 0 sobre o Zaire, atual República Democrática do Congo.
Em 1986, uma Argélia que vinha de vitória sobre a Alemanha na Copa anterior resistiu bravamente a um Brasil que só conseguiu vencer por 1 a 0, com gol no segundo tempo. Respeitada por ter sido a primeira seleção africana a ter chegado, em 1990, às quartas de final de um Mundial, fato que só se repetiu na última edição, com Gana, Camarões chegou a Copa dos Estados Unidos disposta a fazer valer o apelido de Leões Indomáveis, mas se tornou presa fácil para o Brasil, que venceu por 3 a 0 na segunda rodada.
Quatro anos depois, a vitória por 3 a 0 sobre Marrocos celebrou o primeiro dos 15 gols de Ronaldo, que fizeram dele o maior artilheiro em Copas do Mundo. O último foi marcado na vitória sobre Gana, pelo mesmo placar, em 2006. Descontada a vitória magra sobre a Argélia, o padrão de marcar três vezes por jogo contra africanos se repetiu na Copa de 2010, quando o Brasil bateu a Costa do Marfim por 3 a 1.
Não fosse pelo gol de Drogba, quem usa o que passou como referência para o porvir poderia dar a fatura como liquidada. Se os africanos não marcarem gol, como aconteceu em cinco dos seis confrontos em Copas, o Brasil está classificado. No lugar da frieza dos números, quem acredita na mística e na narrativa fabulosa do futebol é capaz de ver o fantasma uruguaio ser evocado pelos rituais de magia africanos. Assim como na final de 1950, o Brasil joga pelo empate e ninguém ousa imaginar uma derrota dentro de casa.
Fora das Copas, Camarões já se mostrou um rival mais indigesto ao vencer o torneio olímpico, em Sydney-2000, eliminando o Brasil nas quartas de final. Quatro anos antes, a Nigéria mostrou sua força naquela faixa de idade que separa os meninos dos homens, ao deixar a seleção sub-23 de Zagallo na beira do caminho que levou o time das Águias Negras à primeira medalha de ouro do continente africano no futebol.
Quebrado o feitiço produzido pelo espírito olímpico, aves de rapina e ferozes felinos se transformam em zebras que correm sem rumo pelas Copas do Mundo. O homem africano já cruzava o planeta bem antes da criação do futebol. Quando os cinco continentes ainda formavam um grande bloco, conforme sustenta a teoria da Pangeia, o atual território de Camarões estava colado ao nordeste brasileiro.
REINADO DE PELÉ REDIME A TODOS
Ao longo de milhões de anos, a separação progressiva criou os mares por onde os portugueses chegaram em 1472 ao “Rio dos Camarões", que reestabeleceria a ligação ancestral. Apesar da abundância dos crustáceos, a exploração dos escravos levava para o outro lado do Atlântico a mesma dor que une brasileiros e africanos. Embora negros e pardos representem 51% da população brasileira, não se vê essa proporção entre os profissionais mais bem sucedidos em suas respectivas áreas, salvo no futebol e no samba.
Com as marcas da vergonha ainda presentes, o couro curtido pela opressão é o mesmo que celebra a liberdade. Mesmo que Camarões e as demais seleções do continente ainda não tenham frequentado os grandes salões da Copa do Mundo, o reinado de Pelé e a hegemonia verde e amarela redime a todos. No movimento das câmeras durante a execução do Hino Nacional, está na cara dos jogadores que a África canta e chora junto com o povo brasileiro.
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