"Não sei se sobrevivo aos ataques do meu filho autista"
“Meu filho caçula quebrou todos os vidros da nossa casa. Ele começou pela porta da frente. Depois, foram os vidros do bufê da sala, das prateleiras da estante e a tela da televisão. Tentei segurá-lo antes da quebradeira, mas, aos 63 anos, não consigo mais detê-lo. Ele me jogou no chão. Caí ao lado da porta da entrada e fui coberta pelos cacos. Meu marido tentou acalmá-lo e terminou levando três pontos na cabeça. Consegui me levantar e pedi ajuda para os vizinhos, que há anos acompanham o drama da nossa família. Há seis anos vivemos a mesma incerteza, se sobreviveremos a mais um ataque de fúria. Não sei qual é o meu maior medo: se é ele se matar ou nos matar.
Maurício passou por três clínicas de internação. Meu marido ganha dois salários mínimos, então, recorremos ao Sistema Público de Saúde. Da última clínica, Maurício saiu em 9 de dezembro. Por que ele saiu? A clínica foi fechada por maus-tratos e o médico de lá deu alta para o Maurício. Com medo de que ele se machuque como das outras vezes, entramos com um processo na Justiça para conseguir a internação em outro lugar. O juiz Fabio Calheiros Nascimento, da 1ª Vara Cível de São Roque (SP), onde moramos, entende que, se o médico da última clínica não pediu a transferência, então o Maurício tem condições de ficar em casa. Segundo o entendimento do juiz, não há riscos de mantermos o Mauricio aqui conosco. Decidir internar um filho não é fácil, mas o meu filho precisa. Você acha que não gostaria de tê-lo comigo se isso fosse possível? De conviver com ele como qualquer outra família? Mas não é.Maurício é autista e se tornou agressivo há seis anos.
Pouco se fala de adultos autistas, em especial os que se tornam violentos na fase adulta. Maurício, que vai completar 36 anos, entrou nessa triste estatística. Quando criança, não falava – disse a primeira palavra aos 20 anos: pão. Passava os dias batendo uma colher em latas de tinta vazia que o pai trazia. Cada dia ele destruía uma. Para mim, ele não suportava o silêncio. Também tinha o hábito de morder os dedos por horas. Aos 12 anos, recebeu o diagnóstico de autista. Aos 16, começou a demonstrar agressividade. Quando uma crise vinha, o que era raro, eu corria e segurava o Maurício. Ficava com ele até crise passar. Assim fizemos até 2009, quando a violência ficou incontrolável.
Não gerei o Maurício. Ele chegou à minha casa pelas mãos de uma conhecida. Veio enrolado num cobertor com uma carta. A mãe biológica era viciada em drogas e o abandonou recém-nascido. Ele tinha cicatrizes nas pernas e na cabeça, provavelmente por maus-tratos da mãe, que queimava agulha no fogo e punha no bebê. Nunca encontrei essa mulher. Queria olhar nos olhos dela e perguntar se ela sabe como estragou a vida do meu filho. Porque o Maurício é meu. Levei o bebê ao médico que cuidava das minhas filhas. O médico disse: ‘Miriam, você é doida? Entrega essa criança.’ Um ano depois, peguei a guarda definitiva dele.
De 9 de dezembro de 2014 a 1º de janeiro deste ano, levamos o Maurício nove vezes ao hospital para tomar uma injeção calmante. Sem isso, a crise não vai embora, mesmo com todos os comprimidos que ele toma. Maurício quebrou três vezes os vidros da minha casa toda, tentou virar o armário da sala, destruiu duas vezes o box do banheiro. O único lugar que ele nunca quebrou nada é na cozinha. Só entra quando está com sede. Autistas são loucos por água. No ano passado, ele deu um murro no próprio rosto. Saiu muito sangue.
Tento fotografar tudo porque a advogada diz que pode servir como prova. Mas tem hora, no desespero, que você nem pensa em filmar. Para o juiz, as fotos e os vídeos não provam que o Maurício precisa ser internado. Fizemos boletins de ocorrência todas as vezes que fomos ao hospital, também sem valor legal. Eu e meu marido sermos feridos nas crises também não prova nada. Laudo pericial não tem valor. Para o juiz, não tem validade porque meu filho é incapaz. O testemunho de vizinhos, disse o juiz, também não serve. O juiz tem razão de questionar. Se todo mundo chegar com uma foto na mão pedindo vaga para internar o filho, imagine o que seria. Mas eu não tenho uma foto. Tenho uma vida. Depois de duas tentativas na Justiça sem sucesso com o mesmo juiz, entramos com um terceiro processo. Desta vez, ele pediu um laudo pericial do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo para saber se meu filho é autista mesmo. Não sei por que não pediu antes. Esse laudo decidirá o destino do Maurício. Quando nosso caso será chamado é outra incógnita. Nossa advogada diz que pode levar meses porque existe uma fila bem grande.
Pago uma advogado para acompanhar. Pago pouco, mas pago. É uma conhecida minha que viu o Maurício crescer e se solidarizou com a gente. Tentei ajuda gratuita na Ordem dos Advogados do Brasil. A advogada que me atendeu num posto disse que faltavam alguns documentos para a ficha de cadastro. Ela disse: ‘ele não tem título de eleitor.’ Mostrei pra ela a certidão de incapaz e falei: ‘Ele não vota, não lê nem escreve’. Ela respondeu: ‘ A senhora vai, tira (o documento) e volta’. Fiquei tão brava que saí de lá chorando.
Já fui discriminada várias vezes. Uma vez, por uma funcionária de um centro para pessoas com deficiência. Ela me disse: ‘Você jamais poderia contar que seu filho bateu em você.’ Sou hipertensa. Já tive um derrame e um infarto. Não consigo andar atrás dele como antes. Em outra ocasião, uma médica da saúde mental disse que eu deveria esquecer um pouco o Maurício e sair, tingir o cabelo, cuidar de mim. Tenha dó. Também já me disseram que quero interná-lo porque ele não meu é filho legítimo, acredita? Nunca desejei internar um filho. Queria ficar com ele até o fim, mas não consigo."
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