'Batalha de vagas' espanta calouros de repúblicas federais de Ouro Preto Moradias da universidade local são gratuitas, mas há vagas sobrando. Alunos antigos têm direito de decidir quais calouros podem permanecer.
As repúblicas estudantis, mantidas pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), em Minas Gerais, enfrentam dificuldade para preencher as vagas disponíveis em seus casarões históricos, apesar de serem gratuitas. Segundo os estudantes, os calouros - chamados pelos universitários de "bixos" - não estariam dispostos a passar pela tradicional "batalha de vagas", período de avaliação que demanda cuidar de serviços de limpeza, cozinha e compras.
De acordo com a Ufop, o perfil socioeconômico não é critério de seleção para morar nas repúblicas, que pertencem à União. A aprovação dos veteranos ao desempenho no período de três meses de testes determinam a permanência do calouro.
Uma aluna que não quer se identificar relata que foi "vetada" - termo usado quando o "bixo" é dispensado pelos moradores antigos - por não ter se "adequado" ao estilo de vida da república. “Eu saí de lá sem entender ao certo o porquê. Eu cheguei a um ponto em que eu me sentia insegura, receio de viver a minha própria vida. Acho que elas perceberam isso, que eu não estava me sentindo à vontade”, conta.
A universitária afirma que os serviços da casa não foram o problema. "É até engrandecedor para quem não sabe nem fritar um ovo." O problema, segundo ela, eram a participação que a casa exigia dela, preparativos para receber ex-alunas e presença em viagens e festas que as veteranas programavam.
"A geração que estava lá não aprovou que eu ficasse, sendo que é um direito meu, eu sou aluna da universidade. Se eu quisesse bater o pé e falar ‘eu quero ficar’ e aí? Agora, eu vou enfrentá-las pra morar com elas? É complicado”, diz.
As 59 repúblicas federais oferecem 792 vagas, menos de 1/5 do número total dos estudantes do campus da cidade, cerca de 5 mil pessoas. Porém, as casas têm tido dificuldade para preencher todos os quartos. Segundo a Ufop, há 158 vagas disponíveis, um déficit de quase 20%, mas há locais em que a defasagem chega a 50%.
Afinidade
A universidade defende o critério. "A gente não enxerga [a república] como política para pessoas de baixa renda. A gente vê a república como parte da formação socioafetiva, cidadã do aluno. Isso, talvez, quem precise mais sejam os filhos únicos de pais abastados, que precisam ter esta noção. Por isso que a gente entende que a escolha por afinidade faz parte desse processo educativo. O que a gente tem obrigação é coibir abuso de qualquer tipo”, diz o coordenador de gestão de pessoas e assessor da reitoria para assuntos de repúblicas federais da Ufop, André Lana.
Além de vagas nas 59 repúblicas, para alunos de baixa renda há a opção de 96 vagas em apartamentos para quatro pessoas, 64 quartos individuais com banheiros, além de bolsas para os interessados em morar nas repúblicas particulares.
Trotes
Em 2010, o Ministério Público Federal (MPF) pressionou a Ufop para que o único critério para seleção fosse a situação socioeconômica dos estudantes. Como os imóveis são da União, a “batalha de vagas” chegou a ser vista pelo órgão como improbidade administrativa. Depois de vários debates, o MPF cedeu quanto ao processo de seleção, mas proibiu os trotes, que eram praticados nas repúblicas federais desde sua origem, há quase 100 anos.
'Lembrança' em república de Ouro Preto de trotes com calouros das repúblicas; prática foi proibida (Foto: Thais Pimentel/G1)
Antes da intervenção, era comum encontrar pelas ladeiras históricas “bixos” usando placas nos pescoços, com seus apelidos – recebidos dentro das casas – escritos nelas. Eles também eram obrigados a circular pela cidade e pelo campus vestido de mulher.
O “vento”, prática em que o quarto do “bixo” era revirado e suas roupas escondidas em outra república da cidade, também era comum. O trote tinha o objetivo de fazer com que o calouro percebesse que havia cometido alguma falha durante a “batalha” (não cumprimento das tarefas, falta de cuidado com a casa ou desrespeito com os veteranos).
Em 2013, um novo estatuto que rege as repúblicas federais passou a vigorar. Sobre a prática, o documento diz “trotes que atentem contra a dignidade e igualdade e realizações de tarefas excessivas e não igualitárias estão proibidos”.
Vagas de sobra
A República Consulado, fundada em 1936, uma das mais tradicionais de Ouro Preto, tem oficialmente dez vagas, mas abriga apenas seis pessoas. Segundo os moradores, a casa já chegou a receber 12 estudantes. “Tem muita gente que não quer passar por isso aqui ["batalha"] e acha que isso aqui é uma arrogância", disse Felipe Cruz, um dos moradores mais antigos da casa
“Eles preferem ficar numa casa que é R$ 1.500 o aluguel do que morar aqui. Porque aqui eles sabem que vão ter uma responsabilidade. Eu posso imaginar que isso é uma das coisas. Porque a gente cobra mesmo. Eu não vou deixar ninguém morar aqui que não seja uma pessoa responsável", afirma Cruz.
Na Consulado, diariamente, os calouros são responsáveis por limpar as fezes do cachorro e dar ração e água; fazer o café, buscar o pão e atender o telefone.
O estudante afirma que não há trote na casa, mas diz que os calouros precisam ser tratados com firmeza: "Se a gente está aqui é porque a gente aceitou passar por isso. Mas na maioria das vezes acredito que é um jeito legal do bixo aprender a se tocar sobre o que ele está fazendo na casa, sobre os compromissos dele".
Moradores da República Federal Penitenciária (Foto: Thais Pimentel/G1)
Reputação
“Esses mitos, todo esse folclore [sobre os trotes] que se constrói, prejudicam sim. No próprio momento da matrícula, a gente está conversando com os pais, orientando. Eu te falo com muita tranquilidade. Conheço, frequento, acompanho. E sei que tem muito mito nessa história. A gente tem feito um trabalho educativo e está dando resultado”, explica André Lana, da Ufop.
Gabriel é um exemplo de calouros que ainda aceitam participar da "batalha". O aluno, que veio de Vilha Velha (ES) para estudar engenharia de controle e automação, pretende morar na República Penitenciária. "Eu conversei com um morador daqui, aí eu vim pra conhecer com os meus pais. Eles gostaram daqui, do ambiente, do pessoal e eu acabei vindo pra cá”, conta o agora “bixo”, que ainda não recebeu um apelido, nome pelo qual será conhecido durante toda a sua vida acadêmica na cidade.
O estudante, que teve a cabeça raspada, garante que não há trotes na casa. “Eu estava preocupado de como seria porque tinham uns boatos aí e eu vi que aqui não é assim”, defende Gabriel. “De início eu queria no meio do ano mudar de curso e ir pro Rio, mas já mudei de ideia. Quero ficar aqui mesmo”, diz.
Para o presidente da Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto (Refop), Raphael Costa, a reputação das repúblicas vem melhorando gradativamente. Segundo ele, desde 2013 não há denúncias de trotes nas repúblicas federais. Mas não tem como garantir que as 59 casas têm cumprido a determinação. “Eu converso com todos os ‘bixos’ no início do 1º período e aviso ‘se tiver acontecendo questão de trote podem me ligar'", conta.
Os calouros ainda podem fazer denúncias através da Ufop ou diretamente no MPF. “Às vezes têm queixa que a gente não caracteriza como trote, por exemplo, ‘estão obrigando meu filho a lavar louça todo dia’. A gente explica para o pai que isso não é trote. 'Mas por que só ele lava?' Porque a casa tem uma divisão de hierarquia. Um lava roupa, outro cuida do quarto, outro cuida da prestação de contas”, afirma Lana.
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