Poços no Piauí desperdiçam água que poderia abastecer 50 cidades A vazão de um dos poços chega a ser de 700 mil litros de água por hora. Cenário de desperdício acontece a 300 km de cidades castigadas pela seca.
Enquanto o governo federal anuncia que 56 cidades do Nordeste estão em "colapso hídrico", poços jorram água que acaba desperdiçada no Piauí, estado com um terço do território no polígono da seca. Obras poderiam ser feitas para abastecer mais de 50 cidades, mas o projeto não saiu do papel.
Em Cristino Castro, a água de um poço tem uma vazão de 700 mil litros por hora e chega a atingir uma altura de até 20 metros. Em um dia inteiro, a vazão seria suficiente para abastecer uma cidade com 140 mil habitantes, conforme os padrões da Organização Mundial de Saúde (OMS). A população de Cristino Castro é de 10 mil.
O município fica no Vale do Rio Gurguéia, na Bacia Sedimentar do Rio Parnaíba – a terceira maior reserva de água subterrânea do Brasil. Na região, muitas vezes basta atingir o lençol freático para a água subir sem necessidade de bombas. Isso acontece porque esses aquíferos estão selados e cheios de água.
“Imagina que sobre um colchão cheio de água você coloca uma tábua e sobe em cima dela. Se você furar o colchão, ela vai jorrar e, quanto mais pressão ou peso se colocar em cima dele, maior será o jorro”, explica o superintendente regional do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), Francisco Lages.
Alguns poços foram abertos ainda no final da década de 1970 para irrigar plantações de frutas, mas não há mais produção atualmente. Até hoje não foi executada nenhuma obra governamental capaz de captar e distribuir os mais de 266 milhões de litros de água jorrados diariamente dos 350 poços da região do vale.
Água que poderia abastecer famílias de cidades relativamente próximas a Cristino Castro, como Queimada Nova, Jaicós, Betânia do Piauí e Guaribas, todas em situação de emergência por conta da estiagem.
O projeto para utilizar água dos poços e abastecer 51 cidades foi apresentado em 2013. Gastaria menos do que o orçamento do abastecimento emergencial com carros-pipa na região e não seria uma solução paliativa. Mas a ideia não tem nem prazo para começar a virar realidade (leia mais abaixo).
Contrastes
O cenário de contrastes chama ainda mais atenção porque Cristino Castro tem abastecimento precário e a cobertura de esgoto sanitário não existe.
A agricultora aposentada Francisca Maria da Conceição, 65 anos, mora no bairro Mutirão, um dos mais pobres da cidade e localizado a pouco menos de 2 km de um poço que jorra 35 mil litros de água por hora.
Ela usa baldes e bacias para reservar a água. Conceição chegou até a comprar uma máquina lava-roupas, que não foi instalada porque não há água encanada. A agricultora relata que chega a passar até três dias sem ter água e quando tem é em horários irregulares.
O prefeito de Cristino Castro, Valmir Martins Falcão (PSD), reconhece o problema, mas culpa os moradores e o desperdício pela falta de água.
“São duas saídas de água nesse reservatório do bairro: um para a região mais baixa e a outra para a mais alta. Alguns moradores deixam as torneiras ligadas e, com isso, a pressão diminui e a água não consegue chegar a todas as residências. É preciso ter consciência. Fazemos a manutenção, mas é necessário que haja colaboração dos moradores”, disse.
Na zona rural a situação é ainda pior. O aposentado José Guedes, 62 anos, precisa percorrer até 3 km em busca de água ou gastar R$ 20 na compra de um galão com 100 litros. “Aqui é assim: ou compra ou vai para o rio. Eu só queria ter água em casa”, disse o agricultor que não viu a roça de feijão e melancia prosperar este ano.
A água que poderia ser usada em projetos de irrigação e atender as famílias de agricultores não é aproveitada e, de acordo com levantamento feito pelo Sindicato dos Agricultores Rurais de Cristino Castro, aproximadamente 85% do milho, feijão, melancia, abóbora ou fava que foram plantados se perderam devido à escassez de chuva.
“Não há projetos para ter um perímetro irrigado onde as famílias possam cultivar frutas e verduras. É muita água, mas não é aproveitada”, avaliou Eunice Soares, presidente do Sindicato.
A reportagem observou que alguns dos usos da água dos poços é na lavagem de carretas e caminhões, na área de uma churrascaria às margens da rodovia BR-135, e para limpar uma piscina duas vezes por semana no mesmo local.
A Constituição diz que as riquezas minerais do país pertencem à União e não ao proprietário da terra onde elas se encontram. A lei 9.433 que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos deixa claro que é preciso a concessão de outorga de uso para a exploração da água.
Poços jorram água a uma altura de aproximadamente 20 metros (Foto: Patrícia Andrade/G1)
A Superintendência Regional do Serviço Geológico no Piauí apresentou em 2013 o projeto que prevê a Adutora do Sertão do Piauí ao Ministério da Integração Nacional e à Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). Com orçamento preliminar de R$ 842 milhões, a obra inclui a construção de uma adutora para distribuir a água de 37 poços para 51 cidades do semiárido piauiense atendendo uma população de 600 mil habitantes.
A adutora resolveria o problema da seca e custaria R$ 13 milhões a menos do valor aplicado pelo governo federal na medida paliativa para atender as famílias brasileiras em cidades com decreto de emergência. De acordo com dados do Ministério da Integração Nacional, só de janeiro de 2012 a março de 2013, por exemplo, foram gastos R$ 855 milhões na contratação de carros-pipas para atender 807 municípios em todo país.
O projeto prevê que o abastecimento poderia durar 350 anos sem causar dano nenhum ao manancial, diz o superintendente do CPRM Francisco Lages.
Procurada pelo G1, a Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Naturais do estado (Semar) informou que participou com outras secretarias estaduais da apresentação do projeto, mas que ele não foi para frente, sem dar mais informações. O governo do estado afirmou que pretende avaliar mais a fundo o projeto para viabilizar a sua execução, verificar os custos, quanto seria aplicado de verba federal e qual seria a contrapartida do estado.
O G1 também procurou o Ministério da Integração Nacional. Em nota, o órgão informou que o "Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), que visa garantir a segurança hídrica da fronteira seca do Piauí ao abranger a bacia hidrográfica dos rios Canindé/Piauí, está em fase de licitação, respeitando os prazos estabelecidos no edital".
A nota diz ainda que o estudo está sob responsabilidade da Codevasf e faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), conforme o Decreto nº 8.032, de junho de 2013.
Projeto prevê captação da água dos poços para distribuir no semiárido (Foto: Patrícia Andrade/G1)
O Ministério Público Estadual instaurou um inquérito para apurar o desperdício de água em Cristino Castro. O MP entende que há um descontrole no uso da água, perfuração desordenada de poços, fatos que ferem a legislação.
“Nós expedimos recomendações aos empreendimentos privados e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente para que instalasse na região o controle de vazão desses poços, porque o que analisamos é o total uso desregrado da água. Os poços são perfurados, mas não há controle. A água é explorada, mas não está sendo cobrada”, disse Vando da Silva Marques, promotor de Justiça Regional Ambiental.
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