Abandonado pela mãe, cineasta faz descoberta chocante ao encontrar família na Sérvia
Abandonado pela mãe ao nascer, Oggi Tomic fugiu de um orfanato aos oito anos de idade e foi parar em outro, em Sarajevo (hoje, capital da Bósnia) no início da década de 1990. Em 1992, a cidade foi cercada pelos sérvios. O cerco duraria mais de três anos. Oggi sobreviveu e, aos 15 anos, foi levado para a Inglaterra. Acolhido por uma família, estudou e se formou cineasta. Anos depois, quando fazia um filme sobre sua busca pela mãe desconhecida, Tomic fez uma descoberta chocante: seu tio havia integrado o Exército Sérvio e atirara contra o orfanato onde o sobrinho vivera durante o cerco.
"Fugi de Zenica (cidade do primeiro orfanato) porque não conseguia aguentar os espancamentos e a intimidação", contou ele em entrevista ao programa Outlook do Serviço Mundial da BBC. Decidi que era melhor morar na rua do que naquele lugar."
"Nem sabia que Sarajevo existia, como eu poderia saber essas coisas naquela idade? Apenas corri, junto com um grupo de amigos. Disse a eles, 'se nos pegarem não digam de onde somos senão nos levarão de volta e vai ser o nosso fim'. Eu era o líder do grupo, éramos três."
Oggi e os amigos foram capturados por soldados sérvios e colocados em um ônibus com destino a Sarajevo.
"Não sentimos medo dos soldados. No trajeto, o ônibus parava em postos de checagem e víamos pessoas sendo retiradas. Não pensávamos no assunto, por que pensaríamos? Não tínhamos a menor ideia do que estava acontecendo à nossa volta." (Com o conhecimento que se tem hoje, é possível inferir que os que eram retirados do ônibus corriam perigo de vida e podiam ter sido mortos.)
Uma vez na cidade, o grupo foi parar em um orfanato para jovens delinquentes. "Demorou meses para o serviço social descobrir que eu não devia estar ali. Então, fui relocado para o orfanato de Bjelave, onde vivi até os 15 anos de idade."
"Durante a guerra, o bombardeio sérvio era constante. O orfanato ficava em um prédio alto, amarelo, bem no topo de um morro, então chamava muito a atenção. Éramos alvejados constantemente. Tínhamos de mover os bebês de um lugar para o outro. Embora hoje em dia eu tenha uma opinião diferente sobre orfanatos, acho que Bjelave foi bom para mim."
"Tudo o que eu queria era ter uma infância feliz. Quando todos se escondiam das bombas e dos atiradores, nós saíamos para brincar. Brincávamos nas ruínas, ouvindo os atiradores e as granadas caindo literalmente a alguns metros de onde estávamos. Não tenho a menor ideia de quantos órfãos viviam ali. Entre 80 e 120, talvez? E nenhum morreu. Subíamos no topo do prédio e jogávamos ovos nas pessoas, apenas para provocá-las. Em plena mira dos atiradores."
'Cuidando de nós mesmos'
"Não havia autoridade nenhuma no orfanato porque todos os funcionários tinham sido levados pelo Exército bósnio, como apoio. A cozinha do Exército funcionava lá e de vez em quando nos servia uma refeição quente. Mas, entre uma refeição e outra, éramos deixados sozinhos, tínhamos de cuidar de nós mesmos. Hoje me pergunto, por que havia uma cozinha do Exército num orfanato, entre bebês e crianças?"
"São lembranças felizes. Tive de crescer muito rápido e cuidar de mim mesmo, mas no orfanato fiz amigos para a vida toda. Ainda estamos em contato."
"Aos 15 anos, fui 'adotado', ou fiquei aos cuidados da família George, em Cambridge. Viram um filme da BBC sobre o orfanato."
A entidade beneficente britânica Hope and Homes, que dava assistência às crianças do orfanato, foi procurada pela família, dona de uma prestigiosa escola de inglês. O objetivo era trazer algumas crianças para estudar na escola. Oggi foi um dos selecionados.
"Logo que cheguei à escola, detestei o lugar. Era mais uma instituição, um prédio grande, refeitório grande, um dormitório grande. Arrumei briga já na primeira noite, como fazíamos no orfanato. Mr. George veio, acompanhado pela diretora. Eles disseram: 'Não é assim que fazemos na Inglaterra. Se você fizer isso, vamos te mandar de volta.'"
Oggi se deu conta de que teria de mudar, ou perderia uma oportunidade única em sua vida. "Foi um momento de virada em minha vida. Alguém genuinamente queria que eu tomasse um rumo diferente."
"Não gosto de falar sobre isso, mas várias das crianças que cresceram comigo no orfanato acabaram se envolvendo com drogas ou crime e, infelizmente, várias perderam suas vidas. Poucos de nós conseguiram ter uma carreira."
Busca pela família
Anos mais tarde, já formado em cinema, foi convidado pelo amigo – e também cineasta – Chris Leslie a fazer um filme sobre a experiência das crianças que viveram sob o cerco em Sarajevo. Naquela época, circulavam em jornais de Sarajevo artigos que falavam sobre a busca de Oggi por sua família biológica.
"Eu tinha passado no teste de motorista, tinha aprendido inglês, tinha terminado a universidade... só faltava agora encontrar as pessoas que tinham me colocado nesse planeta."
O roteiro do filme acabou se transformando quando membros da família biológica de Oggi, que ele jamais conhecera, entraram em contato com ele.
"Uma tarde, meu tio entrou em contato pelo Skype. Foi muito difícil, mas eu tinha o apoio de uma família que me ama e que me deu bons conselhos."
"O mais duro foi descobrir que os irmãos da minha mãe, meus tios, tinham participado do mais horrendo bombardeio da História Moderna - tinham participado do cerco a Sarajevo. E tinham orgulho disso. Quando mostrei a eles as imagens da cidade, e do lugar onde cresci, meu tio disse: 'Claro que reconheço esses lugares, eu bombardeava esses prédios e matava as pessoas que passavam por ali.'"
"Perguntei a ele: ’O que teria feito se eu aparecesse na sua mira?’ A resposta foi simples, fria: 'Eu teria feito o meu trabalho.' Pensei: "Como você pode dizer isso? Não importa que eu seja seu sobrinho. Como você pode tirar a vida de alguém - uma criança?' Ter orgulho de atirar em seus vizinhos e bombardear a cidade, isso é algo que não consigo entender."
"Fiquei com raiva, fiquei decepcionado e chocado. Como se vê no documentário, eu saí da sala."
O encontro de Oggi com o tio aconteceu às escondidas – a família tinha medo de que os vizinhos ficassem sabendo. Sua própria mãe, inicialmente, se recusou a vê-lo. Ela nunca contara ao marido sobre o filho que tivera antes de se casar. Finalmente, ela concordou em encontrá-lo.
"Ela estava muito emocionada e triste. Faço um esforço para entender a decisão dela. Mas não tenho a menor simpatia pelos que estavam em volta; seu irmão, seu pai, sua mãe. Eles deveriam tê-la apoiado, para que ela não fosse forçada a me abandonar. Ela disse que sempre quis ter um filho homem e nunca conseguiu. Ela acha que isso é um castigo de Deus."
"Ela não pode (de uma hora para outra) se tornar minha mãe simplesmente por ter me colocado no mundo. O fato é que ela me abandonou – embora não seja culpa dela."
Oggi diz não se arrepender da decisão de sair em busca da família.
"Pode parecer egoísta da minha parte, mas se eu não tivesse feito um filme sobre isso, teria me arrependido. Tive de digerir tanta coisa. Se não houvesse o Chris com uma câmera para capturar tudo aquilo, teria sido impossível lidar com aquilo tudo."
Ele confessa, no entanto, que não conseguiu assistir ao documentário.
"Nunca assisti ao documentário. Não consigo. Eu saio do cinema. Mesmo agora, quando penso no assunto, não aguento. Tive energia suficiente para me encontrar com essas pessoas e encarar os que estavam bombardeando minha cidade e matando os meus amigos, vizinhos e compatriotas bósnios. Também tive coragem suficiente para me encontrar com minha mãe. Mas não consigo assistir ao filme... acho isso ridículo!"
O documentário Finding Family teve sua première em Sarajevo. Na ocasião, Oggi Tomic insistiu para que órfãos de Sarajevo estivessem presentes na plateia.
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