'Cápsula da USP' contra câncer não foi testada clinicamente; entenda
Pacientes de câncer e seus familiares têm entrado na justiça para conseguir acesso a uma cápsula produzida pelo Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP) por acreditarem que ela age contra o câncer. Sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a cápsula de fosfoetanolamina sintética só continua sendo produzida pelo instituto por causa das demandas judiciais.
A substância, que começou a ser sintetizada por um pesquisador do IQSC no final da década de 1980, não passou pelas etapas de pesquisa necessárias para o desenvolvimento de um medicamento, portanto não existem evidências científicas de que o produto seja eficaz no combate ao câncer ou seguro para o consumo humano.
5 perguntas e respostas sobre o caso da FOSFOETANOLAMINA
1) O que é? Uma substância que passou a ser produzida em laboratório por um pesquisador da USP, hoje aposentado, que acredita que ela seja capaz de tratar câncer.
2) Qual é a polêmica? Pessoas com câncer têm entrado na Justiça para obter o produto da USP, mas ele não passou pelos testes legalmente exigidos. A USP tem atendido a demanda somente porque é obrigada judicialmente.
3) Mas ela funciona contra o câncer? Cientificamente, não há como afirmar, porque os testes necessários não foram feitos. Ela tem sido distribuída para diferentes tipos de câncer, mas sem seguir evidências científicas de que isso seja adequado.
4) Por que os testes não foram adiante? O pesquisador alega que pediu ajuda à Anvisa para desenvolver os testes necessários, mas houve 'má vontade' da agência. A entidade, por sua vez, afirma que nunca houve um pedido de autorização para pesquisa clínica. Houve ainda um contato com a Fiocruz, porém o pesquisador diz que a instituição exigia que a patente do método de sintese da substância fosse passada para a fundação, o que não teria sido aceito por ele. Já a Fiocruz afirma que não realizou o pedido da patente.
5) Que mal pode fazer usar esse produto? Como seus efeitos são desconhecidos, não há como excluir efeitos colaterais. O próprio pesquisador que descobriu como sintetizá-la admite que não sabe dizer que dosagem seria adequada para o tratamento de câncer.
Início da produção
O químico Gilberto Orivaldo Chierice, professor aposentado do IQSC, começou a estudar a substância na década de 1980 e passou a trabalhar com a hipótese de que ela teria uma ação anticancerígena. Ele desenvolveu, então, um método próprio para sintetizar a substância em laboratório.
O processo para se testar a segurança e as possíveis propriedades terapêuticas de um componente é longo e envolve várias etapas de pesquisa, que não foram cumpridas no caso da fosfoetanolamina sintética.
Etapas de pesquisa
Primeiro, a substância que é candidata a se tornar um medicamento deve ser testada em modelos mais simples, como uma célula, explica a cientista Vilma Regina Martins, superintendente de Ensino e Pesquisa do A.C.Camargo Cancer Center.
Depois, o produto deve passar por um estudo em animais, que busca verificar se a droga é capaz de, por exemplo, controlar o tumor em um organismo vivo. Nesta fase, são feitos testes em roedores e em não-roedores. A etapa também é capaz de determinar se a substância tem uma atividade muito tóxica ou se é segura para o uso.
Caso todos os resultados sejam favoráveis, na próxima fase começam os testes clínicos, em seres humanos. Na pesquisa clínica de fase 1, avalia-se a segurança e a toxicidade do produto em humanos, gralmente voluntários saudáveis.
Na fase 2, feita em um número maior de pacientes, começa-se a testar a eficácia da droga contra a doença em questão. A fase 3 envolve um número muito maior de pacientes. Geralmente, é feita em vários centros em diferentes países. Somente depois disso é que o produto pode ser submetido à agência reguladora (a Anvisa, no caso do Brasil) para que o pedido de registro seja avaliado.
Cada uma dessas fases tem de ser aprovada pelos órgãos competentes, como o Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), a Comissão de Ética em Pesquisa (Conep) e a Anvisa. “Todos os tipos de tratamentos têm de ter fundo científico: isso é que é medicina com base em evidência. Qualquer coisa diferente disso é charlatanismo, não é ciência.”, diz Vilma.
No caso da fosfoetanolamina sintética, o único teste pelo qual a substância passou logo quando começou a ser sintetizada pelo IQSC, segundo Chierice, foi o da dose letal, que verifica a quantidade da substância capaz de matar metade de uma população de animais de teste. Chiarice diz que a substância não provocou a morte de nenhuma cobaia e ele concluiu que seria seguro testá-la em humanos.
Depois disso, ainda segundo o pesquisador, as cápsulas começaram a ser administradas a pacientes com câncer do Hospital Amaral Carvalho, de Jaú, com quem o IQSC mantinha um convênio por causa de um outro projeto. De acordo com Chiarice, a droga foi administrada mediante a assinatura de um termo de responsabilidade por parte dos pacientes, muitos em estágio terminal da doença.
O hospital especializado em câncer, porém, afirmou em e-mail ao G1 que não há nenhum registro sobre a utilização da cápsula por pacientes da instituição.
'Bola de neve'
Chiarice diz que, apesar da falta de documentação sobre o efeito da fosfoetanolamina nesses pacientes, “algumas pessoas tiveram melhora” e a existência de uma “cápsula da USP” para tratar câncer começou a ser divulgada. Mesmo depois de o hospital deixar de administrar o produto aos pacientes, alguns familiares continuaram indo até o IQSC para pedir novas doses e o instituto se manteve produzindo para atender a essa demanda.
“O paciente melhorava e recomendava para o vizinho. No início, a gente nunca controlou isso, não éramos médicos. Eles diziam: 'Queria levar para a minha prima porque deve fazer bem'. Nossa atitude não era policiar isso”, diz o pesquisador.
O próprio cientista admite que não sabe qual é a dose adequada da substância. “Em que dose as pessoas tomavam? A mesma que o hospital dava. Não tínhamos como clinicar ou recomendar, não éramos médicos, não tínhamos escopo para dizer isso. Eles já vinham com a orientação do vizinho, de um colega. É dificílimo de controlar. Isso criou uma bola de neve e, em 2013, estávamos produzindo mais de 50 mil cápsulas por mês.”
Anvisa: não houve pedido para pesquisa clínica
A Anvisa afirma, em nota, que nunca houve um pedido de autorização para pesquisa clínica para avaliar a eficácia da fosfoetanolamina sintética contra o câncer, tampouco um pedido para registro do produto como medicamento.
Chiarice acusa a Anvisa de “má vontade” por não tê-lo ajudado a desenvolver os testes pré-clínicos e clínicos necessários para a avaliação da substância. A Anvisa esclarece que não é papel da agência desenvolver pesquisas e medicamentos. "É preciso destacar que a Anvisa só avalia pesquisas clínicas ou requerimentos de registro de medicamentos e demais produtos se houver solicitação do interessado. Ou seja, a Agência não realiza análises sem motivação objetiva", afirmou a instituição por e-mail.
A agência observa ainda que "a venda ou distribuição de qualquer medicamento sem registro ou fora do contexto de uma pesquisa clínica aprovada caracteriza uma ilegalidade".
Mais recentemente, uma parceria entre Chiarice e o Instituto Butantan levou à publicação de cinco artigos em revistas científicas sobre a ação anticancerígena da fosfoetanolamina sintética em culturas de células e em animais. Porém não houve prosseguimento dos testes para viabilizar um estudo em humanos.
Houve ainda um contato com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em novembro de 2013 para o prosseguimento dos testes, mas nenhum acordo foi firmado. Segundo Chiarice, a instituição exigia que a patente do método de sintese da substância fosse passada para a Fiocruz, o que não teria sido aceito pelo pesquisador. Já a Fiocruz afirma que não realizou o pedido da patente, apenas informou que para uma possível produção pública de cápsulas da substância, após a realização dos estudos necessários, o licenciamento da substância poderia ser passado a um laboratório oficial.
Demandas judiciais
Depois da aposentadoria de Chiarice do IQSC, em 2013, o instituto interrompeu a produção da cápsula. Em nota, o instituto afirma que constatou que, como não havia licença e registro necessários para a produção da substância para fins medicamentosos, essa distribuição estava ferindo a legislação federal.
Vários pacientes, porém, estão conseguindo na Justiça o direito de receberem a substância, por isso o IQSC continua produzindo e fornecendo o produto para atender às demandas judiciais.
"Cabe ressaltar que o IQSC não dispõe de dados sobre a eficácia da fosfoetanolamina no tratamento dos diferentes tipos de câncer em seres humanos – até porque não temos conhecimento da existência de controle clínico das pessoas que consumiram a substância – e não dispõe de médico para orientar e prescrever a utilização da referida substância", afirmou o instituto.
Risco aos pacientes
Para o pesquisador João B. Calixto, coordenador do Centro de Inovação e Ensaios Pré-clínicos (CIEnP), uma entidade privada de pesquisas que presta serviços a empresas farmacêuticas, a situação é atípica e pode colocar em risco os pacientes. “Provavelmente, no passado, situações como essa aconteciam com mais frequência, mas há muito tempo existem leis cada vez mais rígidas que têm como principal preocupação a segurança do paciente”, afirma. “O que se tem nesse caso é apenas uma molécula que não foi sintetizada por causa do alvo, mas meio ao acaso. Hoje, a indústria não faz uma molécula ao acaso, mas baseada no alvo que ela quer atacar.”
Enquanto isso, centenas de pacientes continuam procurando Chierice para pedir as “cápsulas da USP” por acreditarem que ela é capaz de curar o câncer. Não há qualquer registro sobre quantas pessoas já recorreram à substância e nem sobre o efeito que a cápsula teve no organismo dos pacientes.
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