Ligação entre microcefalia e vírus zika ainda desafia cientistas
A correlação entre os casos de infecção por vírus zika e o aumento de casos de microcefalia é grande no Brasil, e cientistas trabalham já assumindo que um fenômeno é causa do outro. O mecanismo biológico por trás dessa relação, porém, ainda desafia os pesquisadores do ICB (Instituto de Ciências Biomédicas), da USP, que desde o mês passado trabalham em esquema de força-tarefa para estudar o vírus.
O problema é que a hipótese mais simples para explicar essa causalidade -- a possibilidade de o vírus ser capaz de atravessar a placenta e atacar o sistema nervoso de todos os fetos com que entra em contato -- deixa lacunas. Por que, por exemplo, o vírus não parece estar aumentando a incidência de microcefalia no Oeste da África, seu continente de origem? E por que os casos de microcefalia parecem ter um epicentro em Pernambuco, no Brasil?
Cientistas já sabem que a variante do zika em circulação no país passou pela Ásia antes de chegar até a América do Sul, e que durante o caminho uma mutação no DNA do patógeno pode tê-lo deixado diferente da versão original africana. Mas uma explicação sobre por que o zika provoca microcefalia em alguns casos, mas não em outros, pode ser mais complexa.
Cientistas do ICB (Instituto de Ciências Biomédicas), da USP, já estão realizando experimentos com camundongos para saber se o problema neurológico que tem sido visto em bebês é causado diretamente pelo vírus ou por algum tipo de reação do sistema imune – os mecanismos de defesa do organismo contra micróbios invasores.
Se for isso, aquilo que estaria atacando o cérebro e o sistema nervoso de fetos e causando microcefalia não seria o vírus em si, mas células do sistema imune que buscam destruir tecidos infectados pelo patógeno. Os mecanismos de defesa celular da mãe, então, estariam atacando o próprio bebê.
Essa possibilidade abre mais alternativas para explicar por que algumas regiões manifestam muitos casos de microcefalia ligados ao zika, enquanto outras têm o vírus e parecem não ter um aumento no nascimento de crianças com o problema.
Cientistas do Senegal treinam brasileiros
A resposta para o problema, porém, não está apenas em estudos sobre a biologia dos vírus e das vítimas, mas no contexto da epidemia que vem se espalhando pelo mundo. Para avaliar isso, o ICB abriga deste quinta-feira (7) uma equipe de pesquisadores do Instituto Pasteur de Dakar, no Senegal, onde a epidemia do zika é mais antiga, na tentativa de avaliar o problema. Os cientistas têm experiência na elaboração de diagnóstico para o vírus e vão ajudar a treinar colegas da USP nas próximas duas semanas.
Segundo o virologista Amadou Alpha Sall, líder da equipe senegalesa, é possível que uma reação imune nociva, caso exista, esteja ligada não só ao zika. Ela se deveria também à sua interação com os vários tipos de vírus da dengue, que são seus parentes próximos evolutivamente.
Possível interação com dengue
Quando um paciente é infectado por dengue pela segunda vez, por exemplo, existe o risco de ocorrência da chamada dengue hemorrágica, que causa sangramentos internos. Essa manifestação clínica da doença é caracterizada por uma reação tão violenta de células imunes contra células invadidas pelo vírus que prejudica o próprio organismo da pessoa.
É possível, dizem os cientistas, que o zika esteja provocando uma reação imune desse tipo, mas com efeito mais notável em fetos do que nas gestantes que contraem o vírus. E essa resposta mais violenta ao vírus poderia estar sendo “preparada” pelo organismo depois de contato dos pacientes o com o vírus da dengue. Como o zika aparentemente tem uma capacidade maior de penetrar a placenta e uma preferência por atacar o sistema imune, a maior vítima na hora da complicação seriam os embriões e fetos.
“Se isso for verdade, as áreas onde existe essa circulação de vários tipos de vírus ao mesmo tempo são aquelas onde a relação entre o zika e a microcefalia transpareceria mais”, afirmou Amadou, em entrevista coletiva na USP. “Na Polinésia Francesa e em Pernambuco vemos vários vírus circulando ao mesmo tempo.”
Estudos ainda são necessários
Tudo isso, contudo, ainda está no terreno das hipóteses, e só experimentos e estudos epidemiológicos com os que o ICB começou a fazer trarão a resposta. Camundongos inoculados com o vírus estão sendo monitorados pela equipe do cientista Jean Pierre Peron, do ICB, e dentro de poucas semanas pode ser que alguma pista surja sobre o problema.
Se a reação imune está por trás da microcefalia, pode ser que o mistério na distribuição de casos de microcefalia ligados ao zika esteja relacionado também ao histórico de dengue dos lugares onde ele se verifica. Evidentemente, o fato de o Oeste da África não ter se deparado ainda com o problema pode estar relacionado simplesmente à menor infraestrutura médica para monitorar problemas congênitos. Mas pode ser, por outro lado, que a ausência de dengue de certas variantes na região tenha livrado o local de potenciais interações maléficas com o zika.
Polinésia Francesa também tem zika e microcefalia
Já se sabe, de qualquer forma, que relação entre o zika e a microcefalia não é exclusividade do Brasil. O virologista Paolo Zanotto, do ICB, que lidera uma rede de 32 laboratórios que estão pesquisando o zika agora, já começou a ser notificado de outros casos. Médicos atuantes na Polinésia Francesa, no Pacífico, descobriram que os casos de microcefalia também tiveram alta ali, mas só depois de a ligação ser apontada no Brasil.
“No Taiti, foram registrados 12 casos de mães de crianças com microcefalia, e quatro delas testaram positivo para o zika”, afirmou. A ligação só foi feita no fim do ano passado, porém, depois que o problema em Pernambuco começou a atingir grandes proporções. Em uma população pequena como a da Polinésia, desvios estatísticos na incidência de doenças são mais comuns, e doze casos de microcefalia não chamaram a atenção das autoridades. O Brasil, em contrapartida, já registra mais de 3 mil – uma ordem de grandeza acima do normal –, e em números absolutos o número também chama mais à atenção.
Ainda aberto a muitas hipóteses para entender a ligação entre zika e microcefalia, o cientista afirma que até mesmo a biologia intestinal dos mosquitos pode estar por trás da distribuição regional dos casos de microcefalia. A constituição genética do Aedes aegypti varia conforme o local onde o mosquito é encontrado, e a fauna de micróbios no intestino do mosquito também. Zanotto menciona o trabalho de colegas em Sergipe, onde uma população de mosquito tem uma microbiota particularmente boa para a proliferação do vírus da dengue. Não existem, porém, ainda estudos sobre isso em outros estados.
Surto de zika no verão
Não está descartada nem a hipótese de que o vírus não tenha relação com a microcefalia, afirmam os cientistas, ainda que isso seja improvável a esta altura.
Enquanto uma explicação biológica não surge, porém, o melhor é que autoridades de saúde pública atuem como se o vírus zika seja a causa direta da microcefalia, por um princípio de precaução.
“Vamos assumir que existe uma relação causal e vamos atuar como se ela existisse”, diz Zanotto. Segundo ele, São Paulo e outros estados com grande incidência de dengue também precisam estar preparados para ver o número de casos de zika e de microcefalia subir de março a maio, quando o Aedes se prolifera mais no Sudeste. “A gente está se preparando como se fosse acontecer um surto maciço no verão.”
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