SP registra 1 estupro de vulnerável a cada 5 horas Levantamento mostra que 943 denúncias foram apresentadas entre janeiro e junho deste ano. Crimes costumam ser reportados muitos anos depois
Maria conheceu o inferno aos 9 anos, em 1973. Foi quando o marido da irmã, dezoito anos mais velho, passou a tocar seus órgãos genitais nos pequenos momentos de distração da família. A rotina de abusos se estenderia por sete anos. Ao longo do tempo, o cunhado de Maria a obrigou a dividir com ele a cama. Nas noites de agonia, a menina não apenas era tocada, como forçada a masturbar seu algoz. Aos 16 anos, ele invadiu o quarto dela e tentou forçar a garota a fazer sexo. Maria fugiu e nunca mais se arriscou a ficar no mesmo cômodo que o cunhado. Era a única forma de se defender, uma vez que os pais nunca acreditaram em seus relatos sobre os abusos – e a irmã, que assistia a tudo da própria cama, agia como cúmplice do marido. Quando mais velha, ela se mudou de São Paulo e foi viver na Bahia. Passados mais de 40 anos, dramas como os de Maria se repetem com frequência alarmante: somente entre janeiro e junho deste ano, 943 crianças ou adultos sem condições de se defender (seja por deficiência ou por estarem alcoolizados, por exemplo) foram estuprados no Estado de São Paulo.
Em 2009, houve duas grandes mudanças no Código Penal no que diz respeito a crimes sexuais. Até então, era considerado estupro apenas a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça contra a mulher. Qualquer outro ato libidinoso entrava na classificação de atentado violento ao pudor. A partir daquele ano, o que era atentado violento ao pudor passou a integrar a figura jurídica do estupro. Também há sete anos foi criada a tipificação do estupro de vulnerável, detalhada pelo 1º parágrafo do artigo 217-A do Código Penal. O texto estabelece que é estupro o ato libidinoso praticado contra crianças ou “alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. É o caso, por exemplo, da garota vítima de um estupro coletivo no Rio de Janeiro em maio deste ano.
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Das quase 1.000 denúncias apresentadas à Justiça pelo MP paulista, apenas três tiveram origem em um flagrante. A promotora Valéria Scarance, coordenadora estadual do Núcleo de Gênero e responsável pelo levantamento, afirma que isso ocorre porque o abusador, muitas vezes, não deixa vestígios. Assim como fazia o cunhado de Maria, esse tipo de estuprador evita a penetração. “Na maioria dos casos, os abusadores não querem ter conjunção carnal justamente para não deixar provas físicas”, explica Valéria. “A grande maioria dos casos chega anos depois de o abuso ter ocorrido”, completa.
Foi assim com Maria. Apenas em 2001 ela tomou coragem para denunciar os abusos que sofreu durante a infância. Com um relatório feito por um psiquiatra e uma carta da irmã mais velha em que ela admitia os abusos do marido, a vítima levou o caso ao conhecimento do Conselho Regional de Medicina (CRM), já que o cunhado se tornou pediatra. A denúncia, porém, foi arquivada. Seu agressor também nunca foi levado à Justiça porque o crime já estava prescrito quando Maria decidiu denunciá-lo. Somente em 2012 a legislação brasileira estabeleceu que o prazo de 20 anos de prescrição para estupro de vulneráveis começa a contar quando a vítima completa 18 anos.
O número de denúncias apresentadas pelo MP de São Paulo por abusos contra vulneráveis é quase três vezes maior do que o total de acusações por estupros contra os que não se encaixam nessa tipificação. Para a promotora Valéria, as vítimas adultas costumam se manter em silêncio, o que ajuda a explicar a diferença. Também contribui para o quadro o fato de que, em casos de estupro de vulnerável, a vítima não precisa iniciar o processo de queixa. O inquérito é aberto independentemente da vontade do agredido. E o MP pode oferecer denúncia ainda que a vítima não queira processar o estuprador.
Valéria explica que as notificações de crimes do tipo contra crianças chegam à polícia graças a terceiros, em quem os pequenos confiam para relatar o abuso. “As mulheres se calam por medo do julgamento. No caso dos adultos, ao invés de julgar o histórico dos agressores, a sociedade se preocupa em levantar o histórico da vítima. Já em relação à criança, esse fator intimidador não existe, pois o crime em si já causa repugnância. Ninguém vai achar que uma criança seduziu o abusador”, avalia a promotora. No caso de Maria, a família acabou por fechar os olhos às agressões para não provocar danos à imagem do abusador, um promissor estudante de medicina.
A psiquiatra Dalka Ferrari, do Centro de Referência às Vitimas de Violência em São Paulo, explica que há várias formas de uma criança expressar o abuso. Segundo ela, a vítima elege uma pessoa de sua confiança, que considere protetora, para contar o que está acontecendo, ou apresenta sinais como sono, falta de atenção, enjoo, vômito, falta de apetite, além de assaduras, machucados e outros resquícios da agressão sexual. Dalka também explica que há casos em que a criança ou o adolescente começa a se masturbar compulsivamente. “Os abusos despertam a sexualidade” diz. Até hoje as sequelas psicológicas acompanham Maria, que aos 52 anos anos chora sempre que toca no assunto. “O problema do abuso é que enlouquece seus valores. Eu comecei a ter crises de choro e uma angústia muito séria aos 16 anos porque eu namorava e estava na fase de querer ter relações sexuais. Mas entrava em pânico, chorava e não sabia por que. A angústia era tão grande que eu terminei o relacionamento”, conta.
Embora o levantamento do MP paulista não faça distinção entre estupros de crianças ou de adultos que não apresentem resistência, um estudo de 2014 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) dá a dimensão do problema no país: mais da metade dos casos de estupro no Brasil (50,7%) têm como vítimas meninas de até 13 anos. Em 8% dos casos, elas apresentam transtorno físico ou mental. Já o agressor é, na maior parte das vezes, homem: pai, padrasto, amigo ou conhecido da vítima. Um retrato da memória de Maria: “Meu abusador era uma pessoa carinhosa, que me ensinava biologia, me levava para velejar, me dava presente de Natal”.
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