Juíza afirma que lei veio para pacificar os lares
“A Lei Maria da Penha não veio para desfazer as famílias e nem implementar o divórcio. Ela veio para tirar a violência dos lares. Se por vezes nós precisamos afastar o agressor, é pela necessidade, mas esse não é o objetivo da lei”, afirma a juíza Ana Cristina Silva Mendes, da 10ª Vara Criminal e da 1ª Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Cuiabá. A magistrada, que tem grande experiência na área e atua há muitos em processos de violência contra a mulher na capital mato-grossense, foi convidada para falar sobre os 10 anos da Lei Maria da Penha, em uma entrevista especial dividida em duas partes.
Quais são os casos mais comuns que chegam às varas de violência doméstica?
Os processos são referentes a todos os tipos de violência mencionados na Lei Maria da Penha, seja violência física, moral, patrimonial ou sexual. Uns com maior incidência e outros com menos frequência. Os crimes mais comuns são a ameaça e a lesão corporal. Mas não é raro termos casos de furto, invasão de domicílio, sequestro com cárcere privado, estupro, injúria e difamação.
Por que é tão difícil para a mulher romper o ciclo de violência?
Em via de regra, a dependência emocional é o principal motivo. Não é a dependência financeira, apesar de haver casos assim também. É possível amar alguém que judie de você? Sim, é possível. Existem mulheres que amam demais, incondicionalmente os agressores, e por isso não conseguem mensurar a dor que esses homens lhes causam. Elas apenas sabem que, se denunciá-los, causarão neles uma dor. É bem paradoxal: o que eu faço pra ele pode doer muito mais do que o que ele faz para mim. Isso é o que a gente chama de amar demais. Por isso elas não denunciam e, muitas vezes quando o fazem, não conseguem prosseguir.
Como se inicia um processo pela Lei Maria da Penha?
A mulher violentada deve acionar imediatamente a autoridade policial. Normalmente a Polícia Militar é chamada pelo 190 para atender a ocorrência. Logo depois a vítima é encaminhada para a delegacia especializada ou para o Centro Integrado de Segurança e Cidadania (CISCs) para confeccionar o boletim de ocorrência. Dali ela já sai com o pedido de medidas protetivas. Se o fato acontecer no fim de semana, a ocorrência é registrada e o pedido de medidas protetivas é feito no próximo dia útil. Esse pedido vai para o juiz, que defere e logo o acusado é intimado. Se a polícia chega no momento em que o crime está ocorrendo, o acusado pode ser autuado em flagrante delito, ser preso em alguns casos e levado à audiência de custódia. Uma vez instaurado o boletim de ocorrência, colhem-se as provas na delegacia e remete-se ao Ministério Público, que poderá ou não oferecer denúncia. Quando oferecida, vem para o juiz e então passa a tramitar a instrução processual da ação penal. No fim, pode haver ou não uma sentença condenatória.
A vítima pode retirar a queixa e interromper o processo?
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu casos de lesão corporal de natureza leve como uma ação pública incondicionada, como uma ação do Ministério Público. Constatada a lesão corporal e registrada a ocorrência, a ação passa a ser pública. O mesmo ocorre com a contravenção penal de vias de fato, que é aquela agressão que não deixa marca, como o puxão de cabelo ou o empurrão, a ação também é pública incondicionada. Já quando falamos em ameaça, por exemplo, a ação é pública condicionada, depende da representação da mulher. Temos jurisprudência consolidada de que só o fato de a mulher procurar a delegacia para registrar uma ocorrência já constitui uma representação para o prosseguimento da ação. Mas ainda assim os termos são colhidos na delegacia. Neste caso, ela pode se retratar até o recebimento da denúncia. Depois que a denúncia é recebida, não mais. Normalmente a ação é interrompida na conciliação das medidas protetivas, quando a vítima alega que está tudo bem e que não quer prosseguir com o processo. Por último, a injúria é um exemplo de ação privada em que a mulher tem que apresentar a queixa crime no prazo de seis meses e, quando não apresenta, ocorre a decadência.
Como a senhora avalia a aplicação da lei nesses 10 anos? Houve alguma evolução?
Tivemos evolução. A lei não mudou, o que mudou foi a nossa visão acerca dela, a aplicabilidade dela. No início havia muita resistência de diversos magistrados na aplicabilidade e na implantação da Lei Maria da Penha. Ela foi muito discutida na sua constitucionalidade, muitos se negavam a aplicá-la. Hoje já está sedimentado pelo Supremo Tribunal Federal essa questão da constitucionalidade da lei, do reconhecimento disso, então isso é uma evolução. Você ver que hoje essa resistência caiu por terra já é um grande avanço.
Atualmente as mulheres denunciam mais?
Sem dúvida as mulheres denunciam muito mais. As primeiras pesquisas do Instituto Patrícia Galvão traziam gráficos que demonstravam que as mulheres geralmente denunciavam após 8 a 10 anos de agressão. Hoje não mais. As mulheres já denunciam no primeiro murro, soco ou empurrão. Denunciam muito mais cedo, não esperam que o ciclo de repita interminavelmente e com mais frequência. Essa conscientização das mulheres também é um avanço quanto à aplicabilidade da lei. A credibilidade da lei foi fundamental para que isso acontecesse.
E os homens, agridem menos?
Não podemos dizer se batem menos ou mais. Acredito que precisaríamos de uma avalição de um psicólogo ou psiquiatra para poder falar melhor do que eu, obviamente, porque são especialistas em análises comportamentais. Eu não diria que eles batem menos, pelo contrário, eu digo que os homens hoje são muitos mais agressivos do que outrora. Porque casamentos permaneciam e duravam uma vida inteira, você via homens idosos e muitos amorosos com suas esposas, sempre firmes, cuidadosos. Hoje os homens são mais agressivos, violentos, seja no campo de futebol, diante da televisão, no trânsito. Por conta de tudo isso, da presença mais intensa do álcool nos lares, das drogas cada vez mais potentes e lesivas, os homens agridem muito mais.
A senhora sente o machismo dentro da sala de audiência?
Sim, a gente tem essa visão muito ampla. Tem homens que são verdadeiros ogros dentro da sala de audiências. Penso que, se comigo ele está querendo falar desse jeito, imagina o que ele é capaz de fazer em casa. Se ali, onde em tese ele deveria ter um pouco de temor, age daquele jeito, imagina em casa. E eu falo isso para eles, digo quando estão faltando com o respeito.
E há casos de agressores arrependidos?
Temos muitos casos de homens que se arrependem e choram muito em audiência. Você percebe o arrependimento, a dor da vergonha. É coisa de princípio, de criação. Eles penam: que vergonha se meu pai me visse aqui, se minha mãe me visse sentado em uma mesa de audiência. Há casos que acontecem uma vez só, que a medida protetiva por si só resolve porque também gerou a vergonha e o arrependimento.
Qual a situação mais comum?
Infelizmente ainda temos menos casos de arrependimento, que são normalmente as agressões ocasionais. É o momento em que o homem age por violenta emoção, quando não quer se separar, há uma traição, ele tem medo de perder a família ou há alguma intransigência de um lado ou de outro. Porém, o mais comum é o caso em que o casal vem de um ciclo de violência, se separou e voltou, enfrentou diversos problemas. Esse tipo de agressor é fácil de identificar, ele tem um perfil muito característico. Normalmente ele afasta a vítima da família e dos amigos, não permite que ela trabalhe ou estude, reduz a autoestima dela dizendo que não é nada e que ele conquistou tudo. É um conjunto de características que levam a nos convencer de que ele é um agressor doméstico.
É possível destacar o estado brasileiro que está mais avançado em relação à proteção da vítima de violência doméstica?
Mato Grosso é o estado com melhor aplicabilidade da Lei Maria da Penha hoje, porque nós observamos a lei na sua integralidade. Nossas varas são híbridas, cíveis e criminais, o que faz com que a vítima não fique peregrinando pelos seus direitos. Ela busca tudo de uma única vez aqui, e o nosso Estado é o único que faz isso, desde o divórcio até a pronúncia em casos de crimes dolosos contra a vida.
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