Cultura do Machismo
"Muitas vítimas têm a liberdade cerceada para continuarem vivas" Titular da Delegacia da Mulher fala sobre cultura do machismo e a da importância da Lei Maria da Penha
À frente da Delegacia da Mulher de Cuiabá, a delegada Jozirlethe Criveletto atende inúmeras vítimas de violência doméstica todos os dias.
A delegada é uma defensora da Lei Maria da Penha, mas afirma que por causa da morosidade da legislação e da falta de uma estrutura na rede de proteção, muitas vezes a mulher tem medo de denunciar seu companheiro.
“Não tem como uma vítima denunciar e ver no mesmo dia o autor sendo punido. Ela vai ter toda uma peregrinação, vai passar por toda uma etapa, muitas vezes com esse autor em liberdade”, diz a delegada. "Muitas vezes, ela se vê na situação de ter a liberdade cerceada para que consiga continuar viva".
Jozirlethe refuta a ideia de que o álcool e as drogas sejam os motivadores da violência. Para ela, o agressor em geral tem a cultura machista e usa o álcool e as drogas para criar coragem na hora de cometer a agressão.
Na verdade, o autor pode escolher não agredir. E ele muitas vezes usa a droga justamente para fazer o que quer, como justificativa
“Na verdade, o autor pode escolher não agredir. E ele muitas vezes usa a droga justamente para fazer o que quer, como justificativa”, afirma a delegada. “E, muitas vezes, a vítima acredita que a culpa é do álcool e da droga, e não do companheiro, do que ele pensa e do que ele traz consigo em relação à figura dela”.
Jozirlethe conversou com o MidiaNews nesta semana e explicou como é o trabalho da Delegacia. Entre outros temas, falou da dependência financeira das agredidas, da legislação penal e discorreu sobre a teoria que poderia explicar o maior número de ocorrências contra as mulheres às quartas-feiras e domingos.
Confira a entrevista na íntegra:
MidiaNews – Quais são os principais motivos que levam as vítimas a procurar a Delegacia da Mulher? A procura é apenas quando o caso chega às vias de fato?
Jozirlethe Criveletto – Antes, o que nós observávamos eram mulheres que nos procuravam depois dos primeiros sinais de violência física. Então, não havia muitas vítimas que procuravam a Delegacia para denunciar uma injúria, por exemplo.
Hoje, e acreditamos que seja por conta do conhecimento que essas mulheres adquiriram, inclusive por parte da mídia - que tem difundido muito a questão da importância da denúncia e do enfrentamento -, aumentou muito o número das denuncias referentes a casos de injúria, difamação e de ameaça. Às vezes, não existe aquela ameaça contundente de "eu vou te matar", mas ela tem medo pelos sinais que percebe dentro de casa e de como ele a trata.
Tem aumentado o número dessas mulheres, que hoje têm conhecimento da Lei Maria da Penha, que conhecem qual o procedimento e o que deve se fazer para enfrentar essa violência. Em decorrência disso, hoje temos motivações que são o início desse tipo de violência. Então, são mulheres que procuram a delegacia para denunciar um crime de injúria. Contam, por exemplo, que já estão em um relacionamento há anos, nunca tiveram problema nenhum, e de repente esse esposo passou a ofendê-la.
Então, esse tipo de histórico tem maior demanda dentro da delegacia a partir do momento em que você começa a falar para comunidade que as mulheres têm o direito de denunciar, que elas não têm o direito de ter a autoestima diminuída. E aí você aumenta o grau de mulheres que buscam esse atendimento ainda no início do ciclo de violência.
MidiaNews – Além de injúrias e ameaças, por exemplo, quais outros aspectos podem caracterizar um relacionamento abusivo?
Jozirlethe Criveletto – Quando nós falamos em relacionamento abusivo, não necessariamente estamos falando de um relacionamento em que exista crime. Precisamos entender que um relacionamento abusivo pode redundar em um crime, em uma tipificação criminal.
Esses sinais são fáceis de a vítima notar. Quando ela começa a analisar aquele companheiro e perceber que ele tem muito ciúmes, possessividade... Não é um crime, mas pode ser sinal de um abuso. Nesse caso, ela pode estar vivenciando uma opressão, porque ela deixa de ter a liberdade, deixa de fazer atividades, deixa de frequentar lugares por conta do ciúme, se sente constrangida por aquele companheiro... Esse relacionamento tem uma carga de opressão, mas não quer dizer que exista ainda o cometimento de um crime por parte dele.
Até que chegue ao ponto - e invariavelmente chega ao ponto - dele começar a fazer chantagens, a coagir, a dizer que se não obedecê-lo pode ter consequências, é essa consequência que configura um crime. Então, um relacionamento abusivo é facilmente levado para a tipificação de crime.
Você começa com uma pessoa que tem muito ciúme de você, que passa a proibir você de fazer certas coisas. E de repente passa a te agredir com um tapa, a te xingar, a dizer que se você não fizer o que ele mandou, ele pode te agredir... E de repente você esta dentro do ciclo da violência e percebe que esse ciclo tem fases. E a última fase desse ciclo é o feminicídio.
MidiaNews – A Polícia identifica uma mudança de comportamento das vítimas? Como é feita a repressão desse tipo de violência?
Jozirlethe Criveletto - Eu não vejo que os louros da vitória sejam apenas da Segurança Pública ou da Delegacia da Mulher. Quando você trabalha com o enfrentamento da violência contra a mulher, você percebe o engajamento de toda a sociedade – das instituições e segmentos que trabalham com a violência contra a mulher.
E já foi provado que a existência de uma rede de enfretamento à violência – que realmente funcione – é o que dá o enfoque que a gente precisa para chegar e empoderar essa vítima para que ela sinta a segurança de denunciar.
Ela pode até usar a Delegacia da Mulher como porta de entrada para esse enfrentamento, mas todo o trabalho em rede faz o papel de fornecer a segurança para que a vítima denuncie.
Uma vítima que sente que se procurar uma delegacia e denunciar nada vai ser feito, ou de repente, denunciar e achar que não vai dar em nada, não vai procurar a delegacia.
Então, quando ela começa a perceber que ela procurou, buscou, denunciou e que teve resultado, ela se sente mais segura, protegida, empoderada... E mais que isso, ela transfere o sentimento de segurança para outras mulheres.
Aqui nós temos casos de mulher que me contaram: "Doutora, vim porque uma vizinha passou por isso e me encorajou a procurar a Delegacia da Mulher. Porque ela veio aqui e resolveu o caso dela, e me falou para vir aqui também". Quer dizer: são mulheres empoderando outras mulheres. É a própria sociedade que faz isso hoje, e não só a Delegacia da Mulher.
MidiaNews - Mas a existência de “delegacias móveis”, que patrulham principalmente bairros com alto índice de violência contra a mulher, também fez a diferença?
Jozirlethe Criveletto - Sim. Eu particularmente gosto muito desse projeto da delegacia móvel, que existe há alguns anos. O intuito é levar a delegacia até a vítima que não pode se deslocar.
E ao longo dos anos percebemos que, muitas vezes, essas mulheres entravam na delegacia móvel não para registrar uma ocorrência e pedir uma medida protetiva, mas para buscar informação. Isso para você ter uma ideia de como as mulheres ainda estão carentes de informação.
Muitas vezes a gente imagina que a informação por meio da televisão e internet estão em todas as casas. Mas muitas mulheres buscam informações a respeito do processo. Elas querem saber o que acontece depois que registram uma ocorrência, como funciona todo o processo, e quando que ele [o suspeito] vai ser punido. Ou melhor, se questionam: ele vai ser punido?
As mulheres têm sede desse conhecimento. Então, hoje a gente percebe que quando nós levamos o trabalho da viatura móvel para os bairros, nem sempre nós temos grande demanda de registro de ocorrência, mas temos muitas demandas de orientação.
MidiaNews – Aumentou a procura, então?
Jozirlethe Criveletto – Você percebe que é positivo o trabalho, quando você tem o resultado nas pessoas que procuram você na delegacia e dizem: "Eu fiquei sabendo porque a viatura móvel foi no meu bairro e eu conversei com o policial e com a delegada. E ela me instruiu a fazer o procedimento, e hoje eu vim à delegacia". Na verdade, nós semeamos e depois vem a colheita – que é quando a mulher precisa e sabe o caminho a percorrer.
MidiaNews – Existe um perfil dos homens que agridem suas companheiras?
Jozirlethe Criveletto – Em 2017, a Delegacia da Mulher lançou o primeiro anuário devido a esse tipo de questionamento. Na realidade, falando amplamente da violência contra mulher e da violência doméstica, é sempre destacado que não existe um perfil de agressor.
Você vai encontrar agressores com grau de escolaridade elevadíssimo, e vai ter um agressor que não tem escolaridade. Ou seja, o fato da pessoa ter um nível de escolaridade maior não a inibe de ter resquícios machistas. E a gente sabe que a violência contra a mulher vem de uma cultura machista, de uma cultura de possessividade, de objetificação do corpo da mulher, da integridade física da mulher. Tem pessoas que, por mais que estudem, não conseguem se desfazer da cultura machista.
O perfil que nós temos hoje – e colocamos no anuário – é de homens que possuem segundo grau, ensino superior, idade mais destacada entre esses suspeitos. Então, não se pode dizer que todos sejam sempre com baixo grau de escolaridade.
Por exemplo, o nível de escolaridade que mais foi destacado no ano de 2017 mostra que eles tinham nível de 2º grau. Isso significa que nós não tratamos apenas de agressores que não têm conhecimento ou oportunidade de estarem em uma escola, estudando sobre respeito e direitos humanos.
MidiaNews – Neste anuário também foi traçado o perfil das vítimas. A dependência econômica ainda é um fator que as reprime?
Jozirlethe Criveletto – O anuário mostrou que a maioria da população de mulheres que busca atendimento na delegacia se encontrava desempregada. Ou seja, dentre todas as profissões destacadas, o maior número era de pessoas desempregadas.
É lógico que, quando fazemos uma análise, a motivação da dependência financeira pode ser de grande grau nesse sentido.
MidiaNews – Há algum argumento comum usado pelos agressoes para tentar justificar seus atos?
Jozirlethe Criveletto - A maioria dos agressores nega os fatos nos interrogatórios. A partir do momento em que ele resolve negar e explicar, ele pode criar outra situação. Geralmente, o argumento que eles possuem é que a culpa é da vítima.
Por exemplo, em uma situação de agressão, cuja vítima possui vestígios de lesão, e esse agressor nega os fatos, ele diz que a vítima esbarrou, caiu sozinha, ou diz que teve que contê-la porque, na verdade, ela é quem o estava agredindo.
MidiaNews – Muitos problemas vivenciados entre casais surgem por questões econômicas. A crise financeira que o País vem atravessando contribui para o aumento de casos de violência doméstica? Há alguma relação?
A maioria dos agressores nega os fatos nos interrogatórios. A partir do momento em que ele resolve negar e explicar, ele pode criar outra situação
Jozirlethe Criveletto – Não temos estatísticas para isso. Passamos a compilar dados do perfil das vítimas há três anos, mas não temos como provar que esse perfil de mulheres desempregadas seja em decorrência de uma situação econômica desfavorável no País.
O que podemos dizer, pela experiência que temos, é que de dois anos para cá – além da questão da cultura machista - cresceram muito os casos de mulheres relatando que a violência aumentou, pois o companheiro encontra-se desempregado.
Então, vem o desemprego, em decorrência disso, elas relatam que esse companheiro passa a usar mais álcool ou drogas – então também temos uma incidência grande de suspeitos usuários de drogas. E, em decorrência disso, [ocorre] a questão da desestrutura familiar. Aí, também temos as incidências em relação aos filhos, que podem também passar a delinquir.
As mulheres ainda reportam a questão da dificuldade na criação dos filhos. No decorrer dos últimos anos, houve um aumento no número de mulheres que relatam esse tipo de situação dentro de casa.
MidiaNews – O anuário mostra um grande número de incidentes às quartas-feiras, dias em que comumente há jogos de futebol transmitidos pela televisão. A gente pode fazer a relação entre futebol e violência doméstica?
Jozirlethe Criveletto – Eu sempre digo que eu não posso dizer categoricamente que é o jogo, porque não há um estudo objetivo sobre isso, mas faço uma análise subjetiva. É interessante notar que em outras capitais do País, nós temos notícia de que às quartas e aos domingos há a maior incidência de casos - e são dias em que temos jogos de futebol.
O que eu posso dizer é que não há, hoje, outro fator externo que não seja o jogo de futebol. E não em decorrência do jogo em si, mas sim pelo costume do povo brasileiro em fazer essa festa em torno do jogo, das comemorações serem regadas a muita bebida alcoólica... Quando nessas reuniões estão presente o álcool e a droga, a propensão de você ter ali o infortúnio é maior.
MidiaNews – O álcool é um dos fatores principais dessas agressões?
Jozirlethe Criveletto – Nós sempre dizemos que o álcool e a droga não são motivações, são gatilhos, porque, na verdade, o autor pode escolher não agredir. E ele muitas vezes usa a droga justamente para fazer o que quer, como justificativa.
Primeiro, ele pode usar o álcool pensando: “Assim eu crio coragem, vou e cometo a violência que eu quero cometer, mas que em sã consciência eu não tenho coragem de fazer”. Então, essa “coragem” – que não seria coragem, e sim uma total covardia – na cabeça do individuo é precursora da violência que ele vai cometer. Aí ele usa, depois, o mesmo álcool ou droga, como justificativa para ele ter cometido.
E, muitas vezes, a vítima acredita que a culpa é do álcool e da droga, e não do companheiro, do que ele pensa e do que ele traz consigo em relação à figura dela. Muitas vítimas acabam perdoando esse autor, dando uma segunda, terceira, quarta chances... Porque elas entendem que existe ali uma doença. Acreditam que aquela pessoa está acometida de uma doença [alcoolismo ou dependência química] e naquele momento em que ele a agrediu, não tinha consciência do que estava praticando. E essa, também, é uma das razões pela qual a vítima estaria no ciclo de violência.
MidiaNews – Feita a denúncia, a vítima pode pedir a retirada da queixa após o registro, como ocorria anos atrás?
Jozirlethe Criveletto – A Lei Maria da Penha veio com uma diferenciação: a autoridade policial não pode mais arquivar o caso. Assim que a vítima faz uma denúncia, representa por uma ameaça, e volta à delegacia dizendo que deseja retirar essa denúncia, o delegado não pode mais arquivar. Então, tem que ser marcada uma audiência na Vara de Violência Doméstica para que aquela vítima compareça e se retrate perante o juiz.
A Lei Maria da Penha inaugura essa definição de que a retratação dever ser feita perante o juiz, não mais perante a autoridade policial.
Agora, vamos esclarecer: a mulher pode vir à delegacia, requerer uma medida protetiva e não representar contra aquele autor. Passado algum tempo, se aquela situação persiste, e ela resolve que vai representar, ela pode buscar a delegacia e dizer: “Eu quero me retratar daquela declaração, e quero representar contra o autor”. Isso é muito importante explicar.
Muitas vezes a vítima pensa: “Eu fui à delegacia, registrei ocorrência, fui ouvida e disse que não gostaria de representar. Mas agora, ele está me ameaçando muito mais”. Essa mulher tem seis meses para representar daquele fato.
MidiaNews – E após esses seis meses?
Jozirlethe Criveletto – Ao passar desses seis meses, se ocorrerem novos fatos, ela pode se dirigir a delegacia e abrir outro procedimento relativos aos novos fatos. Então, a cada fato, esse tempo se renova. Isso em casos que se prescreve mediante apresentação da vítima, como os casos de ameaça, injúria, difamação, constrangimento ilegal.
Agora, caso ela represente e retome o relacionamento e diga "eu não quero mais nem a medida protetiva, porque eu já estou me relacionando com ele novamente’", ela tem que procurar a Vara de Violência Doméstica para comunicar que não tem mais interesse naquele procedimento.
MidiaNews – As medidas protetivas são imediatas?
Jozirlethe Criveletto – Sim. Nós temos um grande avanço com o sistema PJE [Processo Judicial Eletrônico]. O sistema do Judiciário nos permite encaminhar, enquanto Delegacia da Mulher, o procedimento da vítima no mesmo dia. Protocolamos e esse procedimento é recebido pelo juiz ou juíza de forma online.
Antes, nós tínhamos o protocolo do Fórum, e passava-se dias para chegar à mão do juiz para ele deferir. Hoje, é questão de minutos.
MidiaNews – A senhora sente que houve uma diminuição no temor das vítimas em pedir as medidas protetivas?
Jozirlethe Criveletto – Se nós fazermos um parâmetro de dois ou três anos, percebemos que diminuíram os casos de mulheres não desejam representar, que apenas querem medida protetiva. Mas se você me perguntar: existem casos? Existem ainda vários casos.
MidiaNews – O que motiva as vítimas a não representarem judicialmente contra os agressores?
Jozirlethe Criveletto – Segundo o que as vítimas narram, os casos vão desde uma retomada de relacionamento, que muitas vezes dão certo, até situações em que ocorre um novo crime, quando o autor faz nova ameaça à vítima.
Na violência doméstica, nós lidamos com pessoas que conhecem tudo sobre a vida da vítima
Temos “N” situações. Mas o que mais percebemos são vítimas temerosas. Elas, por si só, sentem medo de denunciar. E, aí, gosto de ressaltar: nós estamos tratando de vítimas em que o agressor dorme com ela, na mesma cama, estão dentro de casa.
Não é alguém que ela encontrou na esquina, que furtou o celular, ou a correntinha do pescoço, e que ela vai chegar no Plantão Metropolitano, vai contar a verdade dos fatos e nunca mais verá aquela pessoa.
Na violência doméstica, nós lidamos com pessoas que conhecem tudo sobre a vida da vítima. Ele sabe a fraqueza da pessoa, sabe onde ela se encontra, quando ela acorda e quando ela dorme. Então, ela está tratando com o autor de um crime que vai conviver com ela assim que ela voltar para casa.
E é isso que muitas vezes a sociedade não pesa, não avalia, e acaba discriminando essa decisão por parte da vítima. E isso acaba fazendo com que as mulheres tenham mais medo de denunciar. Ela pensa: “As pessoas vão me criticar porque eu não denunciei. Mas o que ele vai fazer se eu denunciar, se hoje eu já estou vivendo uma agressão física em minha casa? O que ele vai fazer comigo depois que descobrir que eu denunciei?”.
Nós temos que entender que o processo [judicial] – por mais que tenha evoluído – tem um tempo. Não tem como uma vítima denunciar e ver no mesmo dia o autor sendo punido do caso cometido. Ela vai ter toda uma peregrinação, vai passar por toda uma etapa, muitas vezes com esse autor em liberdade.
Nós temos uma Carta Magna, que é a Constituição, que diz que a liberdade vem sempre em primeiro lugar. Então, para tirar a liberdade de alguém deve-se ter um fundamento muito grande, porque a nossa regra não é a constrição da liberdade. Mas hoje em dia, o que a vítima tem vivenciado? Muitas vezes, ela se vê na situação de ter a liberdade cerceada para que ela consiga continuar viva.
MidiaNews – E o Poder Público oferece alguma proteção?
Jozirlethe Criveletto – O Estado pode oferecer uma proteção. Hoje, oferecemos pela Casa de Amparo [em Cuiabá]. Que é oferecida quando a vítima de violência doméstica chega e diz que ela está sendo ameaçada de morte, e que ela tem firme fundamento de que vai morrer ou sofrer algo contra a sua integridade física. É oferecido a ela o que o poder público possui: a Casa de Amparo.
A vítima que tem sua integridade física violada, e tem medo de voltar para casa, precisa ter a sua liberdade cerceada. Porque ela vai para um lugar em que vai mudar o seu ritmo de vida, ele perde acesso à família, se tem uma profissão, ela tem que parar.. O seu ritmo de vida muda, porque ela tem que ficar em um local para se esconder daquele agressor.
Muitas vezes, é muito difícil para nós, dentro da Delegacia da Mulher, envolver essa vítima de tal forma que dê a ela o suporte e a coragem para que ela represente e denuncie. Porque ela tem na frente dela um leque – não de opções razoáveis –, mas várias situações em que a vida dela será mudada, e não a vida do agressor. Isso também justifica muito a questão de elas não representarem.
MidiaNews – De forma geral, há algo que falta à Lei Maria da Penha para que ela possa ter mais efetividade?
Jozirlethe Criveletto – A Lei Maria da Penha é de ultima geração, é excelente naquilo que ela traz, no objetivo que é colocado. Ela cumpre o papel de acelerar o processo no âmbito da delegacia e da violência doméstica.
Na realidade, o que precisa ainda é que se dê maior efetividade no âmbito de todas as providências que a Lei Maria da Penha garante para vítima. Tem muitas providências que ainda estão inscritas nessa lei e que o próprio Estado não tem condições de estar trabalhando, de estar fazendo e oferecendo para a vítima.
Midianews – Pode dar um exemplo?
Jozirlethe Criveletto – A vítima hoje que busca o amparo na Delegacia da Mulher. Ela chega, faz a denúncia e depois? O que acontece? Ela volta para casa. O que o Estado pode oferecer para essa vítima? Será que o Poder Público pode oferecer um amparo para essa vítima? Uma assistência social para essa mulher? O encaminhamento dessa mulher para cursos, emprego, habitação? Será que o Poder Público tem hoje uma prioridade no atendimento dessas vítimas de violência doméstica que saem da delegacia em relação ao programa de habitação, por exemplo? Por quê? Porque está na lei, que ela tem o direito a esse amparo.
Então, o que falta é maior efetividade por parte dos segmentos que trabalham com violência doméstica, nesse sentido, de oferece esses serviços que a lei garante.
MidiaNews – E sobre a legislação criminal, no que se refere a violência doméstica, ela tem sido suficiente?
Jozirlethe Criveletto – A Lei Maria da Penha é suficiente. Inclusive, agora, nós tivemos o acréscimo da questão do descumprimento da medida protetiva na própria Lei Maria da Penha. A lei é muito boa, bem escrita, mas precisamos que ela seja efetiva dentro do segmentos que trabalham com a violência doméstica.
MidiaNews – Então o problema não é lei, é o cumprimento dela?
Jozirlethe Criveletto – O problema é o cumprimento da lei em todos os seus artigos e incisos.
MidiaNews – A Delegacia da Mulher trata de crimes cibernéticos contra a mulher?
Jozirlethe Criveletto – Sim. A Delegacia da Mulher tem como atribuição a investigação dos crimes de violência de gênero praticados contra a mulher. E isso não significa apenas a violência doméstica, mas a violência sexual também. E aqueles casos de racismo contra a mulher. Nós temos aqui quatro tipos de pronto atendimento: da medida protetiva; casos que envolve juizado especial; outro para medidas contra violência sexual; e os casos em que muitas vezes não é violência doméstica, mas que ela recebeu uma lesão grave, uma tentativa de homicídio, uma injúria racial.
MidiaNews – Sabe quais são os casos mais frequentes?
Jozirlethe Criveletto – A maior frequência ainda são de casos de lesão corporal e ameaça. Esses são os crimes mais denunciados.
MidiaNews – Existem casos de falsa denúncia?
Jozirlethe Criveletto – Quando você trabalha com uma demanda muito grande de mulheres, eu penso que é normal que se tenha um percentual que possa não narrar aquilo que efetivamente aconteceu. Eu não vou dizer que isso nunca existe, mas é por isso que a gente sempre fala que a Policia Civil está aqui para investigar o crime. Feita uma denúncia, vamos reunir dados a respeito do que foi falado e formatar tudo em dados e diligências.
Há casos em que a vítima conta uma verdade dos fatos e no futuro, ou por meio de diligências ou provas e testemunhas, é verificado que aquela narrativa não corresponde com o que de fato aconteceu. Nesses casos, a mulher responde pelo crime de denunciação caluniosa. Agora, diante da nossa grande demanda – hoje, por ano passam cerca de 4 mil mulheres – é ínfima a quantidade de casos desse tipo.
MidiaNews – Há relatos de violência contra a mulher dentro de relacionamentos homoafetivos?
Nas relações homoafetivas a proporção é menor, mas não podemos dizer que o número é baixo porque a vítima não denuncia, por exemplo
Jozirlethe Criveletto – Sim. Nas relações homoafetivas a proporção é menor, mas não podemos dizer que o número é baixo porque a vítima não denuncia, por exemplo. Porque, assim como nós temos o medo da vítima de um relacionamento heterossexual, de denunciar e aquele autor fazer algo contra ela, isso também ocorre nas relações homoafetivas. E, além dessa questão, há a do preconceito da sociedade em relação a isso; da vítima, pela forma como ela acredita que vai ser tratada quando procura uma delegacia para fazer a denúuncia. Então, perpassa não só pelo fato de que ela deve enfrentar a questão da violência, mas também pela maneira como ela vai ser recebida.
Isso traz uma grande motivação para que certas mulheres não procurem a delegacia. E não acontece só em relação à violência doméstica, mas em relação à agressão sexual, [agressão] no trabalho.. Para essas mulheres denunciarem uma injúria por ser homossexual, por exemplo, para elas procurarem uma delegacia, é muito mais difícil do que uma vítima que não é homossexual e vem e diz: “Olha, eu estou sendo assediada”.
Até acontecem casos em que mulheres homossexuais denunciam o assédio sexual, por exemplo, e só quando você conversa com ela é que ela explica que ela é homossexual, e por isso o constrangimento, por isso a dor. Muitas vezes, elas não colocam isso nem no boletim de ocorrência.
Eu acredito que no caso das relações homoafetivas, além de todo o outro contexto que existe em relação aos héteros, ainda existe essa barreira de procurar a delegacia.
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