Talento Reconhecido
Influente na MPB, cuiabana foi referência nos anos 70 e lança CD Artista aclamada pelos críticos, Lucina formou dupla com Luli, com quem quebrou barreiras musicais e comportamentais
Entre batuques de tambor, fortes acordes de violão e uma voz poderosa, a cantora e compositora Lucina ostenta 50 anos de carreira musical. Mas apesar de nascida em Cuiabá - e de ser neta de Estevão de Medonça e sobrinha de Rubens de Mendonça -, ela é praticamente uma desconhecida na cidade.
Lucina Helena Carvalho e Silva, de 68 anos, nasceu na Capital, mas deixou a cidade ainda bebê. Ela fez fama ao formar a dupla Luli e Lucina, em meados dos anos 70.
A dupla marcou época pela irreverência e quebra de padrão musical que marcava a época.
É também uma importante compostitora, tendo sido gravada por nomes como Ney Matogrosso e Zélia Duncan, Olívia Byington e Rolando Boldrin.
A artista foi criada em Belém (PA), terra de seu pai. Entretanto, toda a família do lado de sua mãe é cuiabana de “chapa e cruz”.
“Minha mãe ficou aí [Cuiabá] até se casar, com 20 e poucos anos. Meu pai era de Belém. Eles se conheceram em Cuiabá”, conta a artista em entrevista concedida ao MidiaNews por telefone.
Mesmo tendo se mudado ainda bebê, Lucina conta que sempre voltava para a terra natal para visitar sua avó, por quem tinha um grande apego. Segundo ela, a avó teve um papel fundamental na sua construção como artista.
“A minha avó foi uma influência fortíssima. Ela tocava piano, acordeom, pintava, dava aula de tudo em Cuiabá. É uma pessoa por quem eu tinha um carinho muito grande e me influenciou bastante”.
No entanto, ela diz não ter mais vínculo familiar com os parentes e isso a impediu de manter uma relação mais forte com Cuiabá.
“Só tenho primos distantes, ninguém que seja realmente muito próximo. Todo mundo já faleceu. São outras gerações”, lamenta a compositora.
A última visita da cantora a Mato Grosso foi em 2012, como parte de um projeto de uma série de shows ao longo do Rio Cuiabá e Paraguai. Em uma viagem de 20 dias pelo Pantanal, Lucina se apresentou em diversas cidades ribeirinhas.
Apesar das raízes e da importância para a MPB, seu talento não é reconhecido na Capital. Lucina acredita que isso acontece por ela não ser vinculada a nenhuma gravadora.
Ela explica que, assim como em outras cidades do Brasil, o público ouvinte de Cuiabá é gerenciado por uma mídia.
“Como eu sou, sempre fui, uma artista alternativa, a minha mídia é muito pequena. As pessoas precisam ter uma ligação especial para chegar à minha música”, afirma.
Luli e Lucina nos anos 70, quando estouraram na música brasileira
Timbres e temperos
Ainda muito nova, com apenas 16 anos, Lucina se tornou profissional. Ela cantava em um grupo da escola, mas todo o processo foi natural. Aos 14, a cantora se apaixonou por música e passou a aprender a tocar violão.
“Um dia eu descobri que eu sabia fazer música. Tive uma trajetória muito natural, não fui aquela criança que ficava sonhando em ser artista”, relembra a cantora, que se mudou de Belém para o Rio de Janeiro ainda na década de 60.
Após ganhar um concurso, seu grupo musical passou a fazer sucesso. Assim os artistas fizeram diversas viagens pelo Brasil e muito dinheiro.
Ao voltar dos shows, Lucina diz que começou a se sentir perdida e decidiu parar de cantar e focar na faculdade.
Certa vez, ainda no início da década de 70 - já morando no Rio de Janeiro -, participou de um projeto acadêmico em que ficou responsável por entrevistar compositores de todos os tipos.
“Me levaram na casa da Luli. Fui entrevistá-la para o projeto. E em um mês a gente já tinha 20 músicas. Deu um ataque criativo”, relembra Lucina.
Assim foi formada uma das mais influentes duplas da MPB em meados dos anos 70. Luli e Lucina gravaram sete álbuns e possuem mais de 800 composições.
No tempo em que estiveram juntas, viajaram por todo o País e participaram de eventos no exterior. Elas foram consideradas ícones da produção independente no Brasil.
“Eu e a Luli fomos as primeiras mulheres a gravar independente no Brasil. A gente começou um movimento muito forte de liberação dos artistas em relação às gravadoras”, afirma.
Outra característica musical das duas é a habilidade nos tambores, tanto que passaram a produzir elas próprias o instrumento. As performances das duas no palco era algo hipnotizante de se ver, segundo os críticos.
Relacionamento a três
A parceria durou 25 anos, o que resultou num documentário dirigido pelo cineasta Rafael Saar. O longa “Yorimatã”, espécie de palavra talismã, foi lançado há três anos e chegou a ganhar prêmios em festivais.
No documentário, as cantoras são vistas em uma fazenda falando sobre música e amor. Suas letras falam sobre natureza, tema que conduz o modo de pensar da dupla libertária e pacífica. A história de Luli e Lucina é a constatação concreta da prática e vivência do amor livre.
Quando conheceu Lucina, Luli era casada com o fotógrafo Luiz Fernando da Fonseca. A identificação musical das duas foi tão grande que acabou se estendendo também para a vida pessoal. E eles acabaram iniciando um relacionamento a três, em plena ditadura militar.
“A gente mudou para o mato. A gente foi para um lugar pertinho de Mangaratiba [RJ] que não tinha nem cidade. Ali era a gente, o morro e o mar. Tudo na nossa frente. E era uma vida hipponga”, diz Lucina sobre o começo da vida do trisal.
O LP "Luli & Lucinha" (1978) foi uma das primeiras produções fonográficas independentes no Brasil. O disco podia ser comprado pelo Correio. A turnê de lançamento foi feita em uma Kombi adaptada, com cenário e luz de Luiz Fernando.
Lucina conta que chegou a receber diversas propostas de entrevista sobre a tribo, na época, mas todas foram recusadas. Longe do conservadorismo, os três puderam criar seus filhos e preservar as crianças de situações “estranhas”.
“Nossos filhos são irmãos, somos uma tribo e pronto. Ninguém tem nada a ver com isso. Isso apareceu claramente no filme”.
Durante sete anos, o trisal morou no sítio até se mudar para São Paulo, onde Luli e Lucina foram lançadas no Teatro Lira Paulistana – reduto modernista experimental.
O filme mescla as vidas privada e pública destas duas mulheres, explicando como sua ideologia não militante pode constituir um gesto político. Segundo a cantora, até hoje a noção de uma família composta por duas mulheres e um homem incomoda.
“Acho mais fácil ter preconceito a partir de agora, onde a gente está entrando em um fundamentalismo. Eu fiz a minha vida, mas não fiz baseada nisso”, revela a artista.
Do trisal, hoje resta apenas Lucina. Luís Fernando morreu de câncer em 1990. Luli - autora de sucessos como "O Vira", música gravada pelos Secos & Molhados - foi-se em setembro deste ano, em decorrência de um quadro crônico de asma agravado por uma pneumonia.
Acervo Pessoal
Aos 50 anos de carreira, Lucina tem sete álbuns solo
Carreira sólida
O último projeto de Lucina se chama "Canto de Árvore", um disco recém-lançado e que recebeu críticas positivas.
“É o trabalho que mais me deu visibilidade até agora. Fiz um trabalho dizendo aquilo que eu estava querendo dizer aqui e agora”.
“É um CD muito contemporâneo no sentido de estar muito atualizado com tudo que a gente está vivendo e tem uma sonoridade bastante original”.
Com esse novo trabalho, Lucina tem feito shows com a banda pelo País, tudo de forma independente. Cuiabá, porém, ainda não está no roteiro.
Veja uma apresentação da artista:
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