Mortes pela Covid
Médica: “Normalizamos a tragédia; não podemos compactuar com isso” Especialista apontou que uso de máscara e distanciamento ainda é a melhor solução para pandemia
O Brasil vive hoje o pior momento da pandemia do novo coronavírus, a Covid-19, desde seu início. Mato Grosso, por exemplo, figura como o terceiro em maior taxa de mortalidade do País, com 237 óbitos por 100 mil habitantes, atrás apenas do Amazonas e Rondônia, conforme divulgado pelo Ministério da Saúde.
Nesse cenário, a médica infectologista Márcia Hueb, pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), apontou que a maior parte da culpa é do Governo Federal. No entanto, não eximiu a responsabilidade da população também pelo quadro grave.
Para ela, a população afrouxou os cuidados de biossegurança – como distanciamento e uso de máscara – usando um argumento fútil: o cansaço.
“Eu costumo dizer que no Brasil temos todos os dias três boeings caindo e normalizamos isso. Isso porque já tivemos mais que quatro mil mortes. Nós estamos normalizando a tragédia. Não podemos compactuar com isso”, disse ao MidiaNews.
Talvez tenhamos banalizado ou normalizado no pior momento da pandemia e com o argumento fútil, que é o do cansaço. Dizem: ‘Estou cansado da situação’. Mas o vírus não está cansado. Ele continua e mais ativo
“Talvez tenhamos banalizado ou normalizado no pior momento da pandemia e com o argumento fútil, que é o do cansaço. Dizem: ‘Estou cansado da situação’. Mas o vírus não está cansado”, acrescentou.
Na entrevista, Márcia ainda comentou sobre a lentidão da vacinação, políticas do presidente Jair Bolsonaro e a esperança para o fim da pandemia.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews - Mato Grosso está entre os Estados com pior índices de vacinação do País. Por outro lado, nosso Estado vizinho, Mato Grosso do Sul, tem um dos melhore cenários do País. Onde estamos errando?
Márcia Hueb – Nós recebemos um quantitativo menor, proporcionalmente falando. É claro que vamos ter menos, porque somos um Estado pouco populoso, mas comparando com Mato Grosso do Sul que tem população menor que a nossa, nós não fomos muito privilegiados.
A segunda questão é que houve alguns atrasos na vacinação, pois a operacionalização não foi tão boa, mesmo considerando esse pequeno quantitativo. Nós tivemos um atraso de alguns dias para cada lote que chegava a Cuiabá e iria para as diferentes cidades no interior. Acredito que as nossas distâncias muito grandes contem contra a gente.
E por último, há ainda a questão de que em Cuiabá foi adotada uma estratégia de vacinação centralizada que acabou levando a uma lentidão maior ainda. Agora, existe outra proposta em que a vacina seja ofertada em outros locais e isso permitirá uma agilização.
Para dar um exemplo, no início, quando houve a vacinação dos profissionais de saúde, em Cuiabá foi feita em um único posto, que era no Centro de Eventos do pantanal. Outros municípios optaram ir às unidades de saúde e vacinar cada dia em um hospital. Isso, do ponto de vista operacional, cria uma condição mais adequada e uma agilidade, pois não precisa deslocar um profissional que hoje já está sobrecarregado.
MidiaNews – Entre as alegações feitas por Cuiabá para justificar a centralização da vacinação está o acondicionamento da vacina, que, segundo a Prefeitura, seria muito difícil. Isso de fato é tão complicado?
MidiaNews
Médica critica centralização da vacinação: "Quando você não tem estrutura, você cria estrutura. A verdade é essa."
Márcia Hueb – Não. Não é uma condição impeditiva. Uma vacina que tem conservação em temperatura de refrigeração comum – de geladeira – é muito fácil de ser acondicionada. E quando você não tem estrutura, se cria. A verdade é essa.
É possível acondicionar as doses em uma caixa térmica e levar a qualquer local – essa seria uma forma. Mas se eles quisessem designar alguns postos, basta preparar. Todos tiveram tempo para isso.
Estamos em um País que se vacina há muitos anos, que consegue vacinar milhões de pessoas em um dia. Você acha que diante de uma pandemia - e todos aguardando tão ansiosamente a imunização - nós não poderíamos ter nos preparado para ter meia dúzia de postos diferentes para vacinação? Claro que podemos.
O Brasil, se tivesse tido as vacinas necessárias, estaria sem nenhum esforço vacinando 5 milhões de pessoas por dia. Com algum esforço, 10 milhões por dia. Nós chegamos a vacinar 18 milhões pessoas em um dia. Mas não usamos nosso conhecimento e a estrutura que temos do SUS (Sistema Único de Saúde).
MidiaNews - Nesse ritmo de vacinação, quando Mato Grosso conseguirá frear a disseminação vírus?
Márcia Hueb – Em algum momento teremos o resultado que a gente tanto espera, que é ter uma imunidade coletiva. Mas isso deve se dar a partir de 70% da população imunizada. Se nós considerarmos esse ritmo de vacinação, quando muito, no meio do ano que vem. Mas a gente espera andar mais rápido e vacinar um grande quantitativo de pessoas até o fim do ano. Antes disso eu não acredito.
Nós temos cinco vacinas autorizadas pela Anvisa (BioNTech, AstraZeneca, CoronaVac, Janssen e Covishield). Anteriormente, tínhamos apenas a CoronaVac e AstraZeneca. Quanto a essas duas, temos uma expectativa de produção mais rápida. Isso poruqe, a Fiocruz, que até agora contribuiu com a parcela pequena, deve entrar com uma produção em larga escala, para conseguirmos ter 50 milhões a 100 milhões de doses ainda esse ano. A CoronaVac – que é a mais usada no Brasil – tem uma expectativa de até 50 milhões de doses.
MidiaNews - O governador Mauro Mendes anunciou que quer adquirir a vacina russa Sputnik V, mas ainda não há liberação da Anvisa. Qual a importância da aquisição desses imunizantes?
Márcia Hueb – Nós temos uma expectativa muito boa em relação a aprovação da Sputnik V. Por uma razão: ela tem uma tecnologia semelhante à vacina da AstraZeneca. O resultado que se tem notícia da Russia é de que é uma vacina eficaz e segura. Eu acho que em algum momento ela será autorizada.
A Anvisa não foi no mérito de que a vacina não seria boa, mas sim considerou que nem tudo que foi solicitado para a análise foi ofertado. Então, a Sputnik V falhou em não trazer todos os documentos que são necessários. É uma questão de regularização de documentos. Acredito que a partir disso, ela venha a ser autorizada para o uso.
MidiaNews - Na semana passada, a Câmara de Deputados aprovou o projeto de lei que permite à iniciativa privada comprar vacinas para a imunização de empregados, desde que seja doada a mesma quantidade ao Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, a proposta será enviada para análise do Senado. A senhora é favorável a compra por parte da inicitiva privada?
Victor Ostetti/MidiaNews
"A gente espera andar mais rápido e vacinar um grande quantitativo de pessoas até o fim do ano. Antes disso eu não acredito".
Márcia Hueb – Esse é o primeiro passo para aqueles que querem a vacina fora do SUS. Não sei se isso vai passar (no Senado), espero que não. Não podemos aumentar as desigualdades que temos nesse País. Estamos em uma pandemia que expõe a todos e temos que considerar que somos iguais perante a essa grande adversidade, a maior que já vivemos.
As nossas necessidades são as mesmas. Não falo do ponto de vista socioeconômico, porque a gente sabe que é diferente. Mas a Saúde Pública deve considerar todos os seus cidadãos como pessoas iguais.
A priorização deve ter critério técnico, não pode ser baseada naquele que pode ou não comprar. Caso o empresariado se oferecer para a compra, e esta destinada à distribuição pelo SUS, considero promissor. Porque o governo brasileiro deveria ter feito e não fez. Essa vacinas seriam destinadas aos grupos prioritários e depois sim, esse empresariado poderia ter doses para ofertar a seus colaboradores. O Estado tem como negociar, sim, mas tem que usar com critérios técnicos.
MidiaNews - Após três meses do início da vacinação, ainda há pessoas resistentes a eficácia das vacinas. Essa disseminação de fake news pode reduzir a procura pelo imunizante?
Márcia Hueb – Sim. Pode haver um impacto no resultado que gostaríamos de ter, que é a imunidade coletiva. A gente espera que a quantidade de negacionistas não seja tão grande ao ponto de ter um impacto e reduzir a imunidade coletiva. Por isso, nunca consideramos que haverá a imunização de 100% de todos àqueles que desejamos. É considerado a imunização de 80% a 90%, na melhor das hipóteses.
O movimento anti-vacina já vem de algum tempo. Ele vem nessa onda do negacionismo que só foi acentuada pela pandemia. A pandemia trouxe todos os temas da saúde para conversas do dia a dia e todos passaram a ter uma opinião. Mas opinião é muito diferente do que faz um profissional de Saúde, que se baseia em conhecimento cientifico.
E esse cidadão foi muito estimulado de forma oficial. E por que eu digo isso? Porque se o gestor não for bem intencionado, sabe que se ofertar alguma coisa que não tem ação, mas que dá a impressão de que ele está agindo, pode fazer com que a população se sinta assistida.
MidiaNews – Pode dar um exemplo?
Márcia Hueb – É muito difícil para um gestor dizer o que muitos não querem ouvir. Por exemplo, que nesse momento as medidas de distanciamento, que incluem o isolamento e as restrições da convivência, são as únicas medidas eficazes para resolver a questão da transmissão.
É mais fácil oferecer às pessoas o “Kit Covid”- que não funciona. Ele não evita a doença, não evita o agravamento da doença. O que evita é o atendimento adequado
É mais fácil oferecer às pessoas o “Kit Covid”- que não funciona. Ele não evita a doença, não evita o agravamento da doença. O que evita é o atendimento adequado, na hora certa - que eu não gosto nem chamar de precoce.
O chamado "Kit Covid" não produz o resultado que seria de não hospitalização, mas é mais fácil dizer que sim. Então, as pessoas vão ficando cada dia mais confusas e se questionam: "qual medicamento funciona?". E a mesma coisa acontece com a vacina. “Eu vou tomar uma vacina que veio da China?”.
As pessoas não sabem que a vacina não veio da China, mas sim os insumos para as vacinas é que vieram da Índia da China. Esses países têm participação da maior parte das vacinas que usamos. Só que agora na pandemia, teve uma "coisa" de se discutir de onde vem.
Esse é um momento que houve uma exacerbação do movimento que já existia, que é o anti-vacina e o negacionismo. Eu, como profissional da área, trabalho para que as pessoas entendam que as vacinas aprovadas pela Anvisa são seguras e é a saída que temos a médio a longo prazo para a pandemia.
MidiaNews – Nesse quesito, se refere especificamente as políticas do presidente Jair Bolsonaro ou a atuação dos governadores e prefeito?
Márcia Hueb – O Governo Federal é o maior responsável pelas poucas vacinas, pelos vários medicamentos que não funcionam, por não termos uma condução adequada da pandemia e por essa explosão de casos e mortes. Hoje, restam poucas dúvidas que as políticas adotas foram completamente equivocadas.
Isso deixou os Estado desassistidos e em uma situação muito difícil. Eu não me refiro a receber ou não recursos, mas ao posicionamento dos governadores. Todos os governadores em algum momento tiveram que se opor ao Governo Federal mesmo que politicamente fossem partidários.
Os governadores e prefeitos também ficaram em posição muito difícil. Porque existe uma mensagem oficial da União que diz: “A situação não é essa; a doença não é tão séria; a mídia é que faz ter muitos casos; nós temos que conviver com o vírus”. Há uma mensagem que diz que nem a máscara facial é necessária.
Os governadores e prefeitos tiveram que começar um trabalho de descontruir essa prática e esse discurso, o que torna difícil a vida deles.
Eu entendo que no começo governadores e prefeitos agiram de uma forma um pouco lenta, tentando não se contrapor ao Governo Federal, e por isso eles têm a sua parcela de responsabilidade. E alguns tantos, a partir de um momento, acordaram e viram que ficariam no meio do caos se não se colocassem em oposição a União.
O Governo Federal é o maior responsável pelas poucas vacinas, pelos vários medicamentos que não funcionam, por não termos uma condução adequada da pandemia e por essa explosão de casos e mortes
MidiaNews – E como a senhora analisa as medidas tomadas hoje pelas prefeituras do Estado? São brandas ou na medida necessária?
Marcia Hueb – Exatamente pela dificuldade de enfrentamento e por não ter um respaldo central acho que as medidas estão muito brandas. As medidas adotadas em Cuiabá ou em qualquer outra cidade do Estado, teriam sido adequadas em janeiro. Lá foi quando os casos começaram a subir como reflexo das festas de fim de ano. Naquele momento era uma tendência, e é no momento de tendência é que você age.
Depois que o caos já está instalado e é colocado uma medida branda, o impacto é muito pequeno. Faz com que a queda de casos e mortes seja muito lenta. E é preciso dizer que em breve, nós – e outros estados – vamos aparecer com número de casos e mortes em estabilidade.
A estabilidade, a partir de um número elevadíssimo, de casos é péssima, porque nós vamos continuar em um patamar alto de casos e óbitos. Eu costumo dizer o seguinte: no Brasil nós temos todos os dias três boeings caindo e normalizamos isso. Isso porque já tivemos mais que quatro mil e pensamos: "Então se está em três mil estabilizado, está bom".
Nós estamos normalizando a tragédia. Nós não podemos compactuar com isso.
MidiaNews – Qual a parcela de culpa que a população tem no agravamento da pandemia? Perdemos o medo do vírus?
Márcia Hueb – Talvez tenhamos banalizado ou normalizado no pior momento da pandemia e com o argumento fútil, que é o do cansaço. Dizem: “Estou cansado da situação”. Mas o vírus não está cansado. Ele continua e mais ativo, porque o vírus faz as suas mutações e se adapta mais a nós.
O vírus que vem pela primeira vez de um animal para o homem está adaptado parcialmente. Ele vai fazendo suas mutações para se adaptar melhor e transmitir mais fácil.
Agora, quando dizer: “Eu não tenho dinheiro para sobreviver”, não é um argumento fútil e tem que ser enfrentado. Não existe se falar em restrição e lockdown sem se falar em proteção social.
Mas se estamos em nossa casa, em condição de praticar o home office, de ter uma fonte de renda ainda que reduzida, dizer que está cansado é um argumento fútil. Não é sequer um argumento.
Nós temos que valorizar a vida do outro. Cada vez que a gente se coloca em risco, colocamos também muitas pessoas em risco
Nós temos que valorizar a vida do outro. Cada vez que a gente se coloca em risco, colocamos também muitas pessoas em risco. Às vezes, as pessoas que querem se colocar em risco ocupam uma vaga em uma unidade hospitalar que poderia ser destinada a outra pessoa que fez tudo para se proteger. Vemos hoje isso acontecendo.
Há uma culpa de parcela da sociedade, sim. Nós devemos enfrentar isso e fazer uma reflexão: como vamos sair dessa situação? O que temos por obrigação fazer cada um dentro das suas possibilidades? Devemos fazer o melhor que podemos.
MidiaNews – É possível chegar a um cenário mais caótico que o que vivemos ou há uma luz no fim do túnel?
Marcia Hueb – A luz está onde sempre esteve. Nós já adquirimos conhecimentos para conseguirmos conduzir e enfrentar melhor esses casos, apesar de ser uma doença que surpreende a cada dia. Mas aquilo que aprendemos sobre as necessidades de restrições para que haja uma redução da transmissão do vírus continua igual.
A luz no fim do fim do túnel não sabemos onde está. Mas a luz para que possamos andar para o fim do túnel, até chegar ao fim, aponta para as medidas de restrição ao convívio, associada ao uso de máscara sempre que estiver próximo a outra pessoa que não more na sua casa. Continuamos com a higiene das mãos e não colocar as mãos no rosto. Essas são medidas para que caminhemos e cheguemos vivos ao final desse túnel.
O final seria termos um número tão grande de pessoas vacinadas, ao menos 70%, que o vírus não encontra para onde se transmitir e vai reduzindo, reduzindo, reduzindo... Até que se torne um vírus de transmissão esporádica ou um vírus que não mais se transmite, e até desaparecer. Ou se tornar um vírus como o da Influenza, que cada ano tem um número pequeno de casos, porque a maioria estará imunizada. Mas para chegarmos ao final, temos que saber agir.
MidiaNews – E o cenário pode piorar?
Marcia Hueb – Pode. Infelizmente pode. Podemos ter situações tão dramáticas, como não ter onde colocar pessoas que morrem. Vimos isso no mundo e não queremos aqui no Brasil. Precisamos ter responsabilidade.
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