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Domingo - 04 de Julho de 2021 às 10:07
Por: Bruna Barbosa/Mídia News

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Caso de Raquel Ninô Curi Kachan (detalhe) é acompanhado pela Defensoria Pública
Caso de Raquel Ninô Curi Kachan (detalhe) é acompanhado pela Defensoria Pública

A vendedora Raquel Ninô Curi Kachan, de 44 anos, não esquece a data em que o ex-marido a agrediu pela primeira vez na frente do filho de um ano, em 16 de dezembro de 2017.

Cinco meses depois, ela seria vítima de uma tentativa de femínicidio. Raquel sobreviveu às seis facadas e hoje tenta salvar outras mulheres que vivem relacionamentos abusivos.

"Se estou aqui viva na minha casa, com meu filho, é porque tenho uma missão de impedir que outras mulheres não passem pelo que passei e, talvez, não tenham a sorte de sobreviver como eu tive. Não aceitem menos do que vocês merecem. Eles fazem uma manipulação psicológia para que nós fiquemos culpadas", diz.

Ela conheceu o ex-marido em janeiro de 2014, quando eram vizinhos. Quando se conheceram, logo começaram a morar juntos e dividir a mesma quitinete.

Raquel conta que, nos primeiros dois anos, o relacionamento foi "maravilhoso". O ex se encaixava na categoria de "marido perfeito" e, juntos, planejaram o primeiro filho.

"Quando estava grávida de oito meses, ele chegou do primeiro trabalho e não me ouviu, foi conversar com o vizinho, tomou umas três latinhas de cerveja e foi trabalhar na ronda noturna, que era das 22h às 2h. Falei para ele não ir, porque não tinha descansado. Resultado: sofreu um acidente".

Ele teve o joelho quebrado em três lugares. Consequentemente, ficou sem trabalhar nos dois empregos.

Quando acordei só vi uma luz branca, pensei: 'pronto, morri'. Quando minha ex-sogra falou comigo, achei que ela tinha morrido também, porque ela estava infartando

Na época, Raquel estava grávida de oito meses. Sem renda, eles aceitaram um convite do pai do ex-marido para morarem em Araputanga (a 242 km de Cuiabá), onde ele trabalharia em um caminhão boiadeiro.

Ela lembra que foi a partir daí que o marido deu sinais de violência e que os episódios de agressão começaram.

"Recebia de R$ 150 a R$ 200 e eu vendo aquela situação, com uma criança de seis meses, não tinha como. Fui trabalhar. Arrumei emprego de vendedora e começaram os problemas. Ele começou a ficar enciumado porque eu estava ganhando mais que ele, colocando comida em casa e pagando as contas".

Além do emprego de vendedora, Raquel logo começou a trabalhar também com consultora da Avon e da Hinode.

Em 16 de dezembro de 2017, ela saiu para encontrar duas amigas do trabalho, na expectativa de cadastrá-las também como consultoras de vendas.

No entanto, o ex-marido não gostou de saber que Raquel iria sair de casa. Naquela noite, quando ela voltou para a residência que ficava no mesmo terreno onde moravam os ex-sogros, ela foi espancada e estrangulada pela primeira vez.

"Minha sorte foi que meu filho começou a gritar e meus sogros desceram. Quando o pai dele gritou, meu ex-marido se distraiu e eu consegui dar um soco no nariz dele e sair. Na hora meu olho inchou, não conseguia nem abrir".

Raquel decidiu não denunciar a agressão e continuou no relacionamento sob a promessa de que o ex-marido não cometeria novas agressões.

"Ele me pedia perdão, trazia na comida na cama, porque eu não conseguia nem levantar. Meu corpo estava todo doído e machucado. Estava com três costelas quebradas, por sorte ele não quebrou o osso do meu rosto. Foi um anjo por cinco meses".

Ciúmes e possessividade

Raquel conta que perdeu todos os empregos que conseguia por causa do marido, que ligava dezenas de vezes durante o expediente para checar onde ela estava. Em março de 2018, o marido estava bêbado e deu uma "rasteira" nela em frente a uma vizinha.

"Estava conversando, mostrando os produtos em uma revista da Avon. Ele me deu uma rasteira e disse: 'Se você não entrar agora, vai dormir na rua'. Eu entrei, ele viu que estava com o celular na mão, jogou na parede e me estrangulou".

Era o segundo aparelho de celular de Raquel quebrado pelo ex-marido. Naquela noite, ela dormiu novamente na casa dos sogros com o filho.

Reprodução

RAQUEL FEMINICIDIO

Raquel foi esfaqueada seis vezes pelo ex-marido

"O pai dele já estava incondormado, perguntava até quando ele me trataria daquele jeito. Eu gostava de me arrumar e me maquiar, tinha maleta de maquiagem. Sempre fui dedicada à casa e à família. Ele dizia que não iria me elogiar para não massagear o meu ego".

Um mês depois, o ex-marido a agrediu novamente depois de beber pinga. Dessa vez, Raquel não pensou duas vezes antes de denunciá-lo.

"Me deu um tapa na cara, corri para o banheiro e chamei a Polícia. Ele ficou três dias preso. Conversei com o pai dele e disse que não dava mais. Reencontrei uma tia do Rio de Janeiro, em quem eu podia confiar. Ela disse que me ajudaria a sair de lá".

No entanto, uma cirurgia de laqueadura atrasou a mudança e ela continuou morando com os ex-sogros enquanto se recuperava.

Raquel desejava fazer o procedimento há muito tempo, porque era vítima de estupros cometidos pelo ex-marido. Ela conta que ele tentava engravidá-la à força.

"Ele me violentou cinco vezes para eu engravidar, mas eu tomava anticoncepcional escondido. Foi horrível. Durante essas relações forçadas, ele me estrangulava também para não me deixar fugir".

O ex-marido ainda usou todo o limite do cartão de crédito de Raquel e gastou todo o dinheiro da conta bancária dela.

Seis facadas no pescoço

Em 19 de maio de 2018 aconteceu o que há tempos vinha se desenhando. Raquel preparava uma sopa para o filho quando o ex-marido chegou bêbado do trabalho.

"Queria me forçar a beber, mas eu estava operada. De repente, ele surtou e começou a me xingar de todos os nomes possíveis. Estava na cozinha fazendo sopa para o nosso filho e com uma faca na mão. Ele pegou a faca e enfiou no meu pescoço".

Raquel só se lembra da dor da primeira facada e de ver o corpo todo ensaguentado. Uma das facadas ficou a 1 cm de atingir a jugular, uma das principais veias do corpo humano.

Ao ouvir os gritos de socorro, os ex-sogros foram à casa e se depararam com a cena. O ex-marido fugiu do local e se escondeu em uma região de mata para não ser preso em flagrante.

Por conta do ocorrido, a mãe dele acabou infartando ao ver Raquel naquela situação.

"Tomei três litros de sangue, tive que ir para Cáceres. A ambulância não veio e levaram eu e minha ex-sogra no carro da vizinha. Imagina o desespero que foi. Eu estava toda ensaguenta. Tinha medo de fechar os olhos e 'ir embora'. Dizia para minha ex-sogra que estava bem, mas não conseguia nem enxergar mais".

Quando chegou na unidade de saúde de Cáceres, Raquel convulsionou e só se lembra de acordar já na enfermaria.

Se estou aqui viva na minha casa, com meu filho, é porque tenho uma missão de impedir que outras mulheres não passem pelo que passei

Bem-humorada, ela brinca que pensou que ela e a mãe do ex-marido tinham morrido.

"Quando acordei só vi uma luz branca, pensei: 'Pronto, morri'. Quando minha ex-sogra falou comigo, achei que ela tinha morrido também, porque ela estava infartando. Hoje em dia eu até consigo achar isso engraçado. Quando senti o cheiro do meu cabelo, peguei no meu corpo, entendi que estava viva".

Raquel só entendeu a gravidade da situação quando a Politec chegou no hospital para o exame de corpo de delito. Quando começaram a contar os pontos feitos onde ela foi esfaqueada, o pânico tomou conta.

"Começou a contar sete pontos, depois mais oito, depois mais três... Tive uma crise de choro, não conseguia parar de chorar. Naquela hora caiu a ficha. Foi uma mistura de sentimentos, gratidão a Deus por estar viva e revolta, porque não merecia aquilo. Nunca traí, sempre fui dedicada à família".

Ponto final definitivo

Quando teve alta hospitar, Raquel ainda precisou ficar alguns dias na casa dos ex-sogros. Mas, mesmo depois da tentativa de feminicídio, o ex-marido não aceitou que ela se separasse.

O pai chegou a pedir que ele fizesse uma viagem a trabalho para outra cidade. Só assim Raquel poderia fazer a mudança com tranquilidade.

"O caminhão quebrou no meio do caminho e ele voltou. Quando chegou em casa e viu que minhas coisas estavam no caminhão, ele se desesperou, socou a parede, agarrou minhas pernas. Pedia que eu não fosse embora, ajoelhou e chorou. Entrei em pânico".

O ex-marido só deixou que Raquel fosse embora após intervenção do pai. Raquel não se esquece das palavras do ex-sogro.

"Agarrou ele pela blusa e tirou de cima de mim. Disse que ele quase havia me matado, perguntou se estava esperando para terminar o serviço e mandou que me deixasse em paz".

No dia seguinte, Raquel finalmente conseguiu se mudar. Apesar de achar que o problema com o ex-marido já estava resolvido, ela ainda foi perseguida praticamente durante todo o ano de 2018, ja que ele não aceitava a separação.

Reprodução

RAQUEL FEMINICIDIO

Raquel foi espancada na frente do filho de um ano

Raquel decidiu ir à Delegacia da Mulher após ser ameaçada pelo ex quando postou fotos com um primo nas redes sociais.

"Quando chegou para ele a intimação da medida protetiva, graças a Deus tive paz na minha vida".

Rede de apoio

Após a tentativa de feminicídio, Raquel precisou passar por tratamento psicológico e psiquiátrico. Depois do crime, ela teve problemas com crise de pânico e pesadelos constantes.

O filho também precisou de acompanhamento por ter presenciado as agressões. Ele acabou desenvolvendo atraso na fala.

Raquel explica que o filho "travou", apesar de já ter falado as primeiras palavras.

Atualmente, ela já conseguiu se restabelecer e tenta ajudar outras mulheres que ainda estão presas em relacionamentos abusivos através de um grupo nas redes sociais.

Para Raquel, o fato de ter sobrevivido à tentativa de feminicídio dá forças para que ela encorage outras mulheres.

Hoje, ela afirma que consegue identificar um comportamento abusivo já em seus primeiros sinais e não admite mais possessividade em um relacionamento.

"O nosso psicológico fica dilacerado, mas é uma situação que falo para todas as mulheres que sofrem: existe vida depois de uma tentativa de feminicídio".





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