Fila para receber doação de "ossinho" dobra esquina em Cuiabá Açougue no Bairro CPA 2 entrega cerca de 500 quilos ao dia, três vezes por semana
Debaixo do sol forte de quase meio-dia, mais de 50 pessoas esperam em uma fila para garantir a doação de "ossinhos" de boi feita por um açougue do Bairro CPA 2, em Cuiabá. Três vezes por semana, o estabelecimento garante a alimentação de moradores da região que estão sem renda.
Os chamados "ossinhos" são pequenos pedaços dos ossos com vestígios de carne resultantes do processo de desossa do boi.
O MidiaNews esteve no local na manhã desta quarta (14). Na fila em uma calçada, dividindo uma sombra estreita na tentativa de fugir do sol, os moradores começam a chegar por volta das 9h.
Apesar da entrega ser marcada sempre para as 11h, toda segunda, quarta e sexta, eles garantem que não podem correr o risco de ficar sem um pouco dos ossinhos doados. A fila à espera da doação chega a dobrar a esquina.
Há tempos, é a única carne que entra em casa, dizem os moradores ouvidos pela reportagem.
"Pessoas de todos os bairros vêm aqui para pegar e todo mundo ganha, ninguém fica sem. Carne é uma coisa que falta na casa de todo mundo aqui. É luxo", afirma Renildes Pereira da Silva, de 53 anos.
Sentada no chão da calçada aguardando sua vez, Renildes lamenta que neste ano a situação está muito difícil para os mais pobres. De acordo com ela, antigamente a carne não costumava ser inacessível.
Tenho muito medo de piorar mais, não gosto nem de pensar nisso. Deus não vai deixar acontecer. Antes as coisas eram melhores
Ela mora com uma neta e dois filhos. Renildes sequer consegue mensurar a renda da família, já que os filhos vivem de diárias como ajudantes de pedreiros.
"Abaixo de R$ 1,5 mil, para pagar água, luz, que também está muito cara, aluguel... Depois ainda vem o gás. Quando não tem dinheiro para comprar, cozinhamos com lenha mesmo", conta.
Ao lado dela, Ana Maria de Jesus Araújo, de 39 anos, também aguarda pela vez ao lado da filha de nove anos.
Ana Maria está desempregada e depende exclusivamento do auxílio emergencial de R$ 385.
Ela mora no Bairro 1º de Março com outros dois filhos. Ana Mara também afirma que antes a situação era melhor.
Ela evita pensar em um cenário ainda pior. Para ela, a fila enorme em busca das doações de ossinhos é um reflexo da situação do Brasil.
"Tenho muito medo de piorar mais, não gosto nem de pensar nisso. Deus não vai deixar acontecer. Antes as coisas eram melhores, depois que tirou o Lula a coisa ficou pior. Conseguiamos comprar comida, tinha emprego", disse, referindo-se ao ex-presidente.
Proteína principal
Antes da pandemia, Ana Maria tinha emprego fixo. Assim como Dulce, que não revelou o sobrenome, de 48 anos, trabalhava na praça de alimentação de um shopping de Rio Grande do Sul.
Morando em Cuiabá há cerca de sete meses, também sobrevive com doações. A adolescente Elen Cristina Souza, de 17 anos, explica que os ossinhos fazem parte da maioria das receitas em sua casa.
"Misturamos com tudo, mandioca, abóbora, puro... Só não comemos cru mesmo", diz a jovem que aguarda na fila com o filho.
Mara Siqueira, de 35 anos, é vizinha de Dulce e Elen. Elas vão juntas para a fila de doação.
Reprodução/Bruna Barbosa
Moradores vão ao local três vezes na semana para garantir alimentação
Mãe de sete filhos, Mara começa cedo uma peregrinação em busca de doações para conseguir dar de comer para os filhos.
"Acordo 5h30 e começo a andar. Muitas vezes ainda somos xingadas, 'lavam' a nossa cara. Mas, fazer o quê? Preciso levar comida para casa. Conseguimos os ossinhos aqui e algumas verduras que iriam para o lixo em outros mercados", explica.
Desempregado, Luciano André Barrros Alves, de 45, também conta que não teria como alimentar os três filhos sem as doações.
Ele mora no Bairro Três Lagoas e há cerca de sete semanas comparece na fila para pegar os ossinhos as três vezes na semana.
"Se não fosse esse açougue, esse pessoal todo aqui na fila não teria o que comer. Tem muitos com cinco, seis filhos, é difícil. Lá em casa até minha mulher está desempregada porque machucou a perna. Faço bicos as vezes, consigo R$ 50. Não dá para nada", lamenta.
Ele conta que as vezes fica triste com a situação e sonha com um emprego de carteira assinada. Além dos ossinhos, ele também consegue doações em uma verduraria na região.
"Dão mandioca, batata... O que for, nós aceitamos. Essa fila ainda vai crescer mais ainda. Com a pandemia ficou tudo mais difícil, nunca tinha faltado comida em casa. Conseguíamos comprar carne. Fico triste, não gosto de ver meus filhos tristes. Saio para conseguir doações para eles ficarem saudáveis", desabafa.
Aumento na procura
Os funcionários do Atacadão da Carne contam que, desde que o açougue abriu, o proprietário faz as doações de ossinhos. No entanto, neste ano, a demanda está ainda maior.
Eles explicaram que mesmo quando a fila fica grande, a equipe divide os ossinhos para que ninguém volte para casa sem a doação.
A estimativa é de 500 kg de ossinho sejam doados por dia. Atualmente, o ossinho é encontrado por até R$ 10 o quilo.
Entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021, o preço médio da carne subiu de R$ 24,51 para R$ 33,98, conforme dados do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea).
O corte que ficou mais caro foi o coxão duro, que chega a ser encontrado por quase R$ 39.
A desvalorização do real é uma das explicações para a alta no preço da carne. Com o dólar alto, frigoríficos prefere exportar a vender no mercado interno.
Veja o vídeo:
Comentários