Maioria dos estados estuda adotar câmeras em uniforme dos policiais Especialistas afirmam que equipamento é positivo, mas só terá resultado se gerar responsabilização
Hoje presentes em três estados, as câmeras nos uniformes policiais estão sendo estudadas para possível aquisição em quase todo o país, segundo levantamento realizado pela Folha. Acoplado à farda, o equipamento é utilizado para registrar intervenções dos agentes em vídeo e áudio.
Especialistas consultados pela reportagem avaliam que, em geral, a ferramenta é positiva, podendo representar ganhos na transparência e conformidade das ações de segurança pública, o que já foi apontado em estudos internacionais.
Eles ponderam, no entanto, que o instrumento precisa ser acompanhado por uma efetiva análise do material e responsabilização de quem for gravado cometendo um crime.
Também há preocupações de organizações de direitos humanos a respeito do armazenamento das imagens coletadas, e da possibilidade de que elas sejam utilizadas contra a população.
Primeiro estado a adotar o equipamento, em 2019, Santa Catarina conta com hoje 2.500 câmeras a serviço da Polícia Militar. Segundo a assessoria da corporação, em todas as guarnições há ao menos um policial utilizando o instrumento. Ao fim do mesmo ano, Rondônia também adquiriu 1.000 bodycams.
No ano passado, São Paulo passou a usar 500 câmeras, no contexto do programa “Olho Vivo”, da gestão João Doria (PSDB). Em junho de 2021, o projeto foi ampliado e mais 2.500 câmeras começaram a ser utilizadas em 18 batalhões, com um custo mensal de R$ 1,2 milhão.
A expectativa é que até o ano que vem mais 7.000 unidades sejam licitadas e acopladas aos uniformes. O coronel Robson Cabanas, gerente do projeto de implantação na PM-SP, afirma que até o fim do primeiro semestre de 2022 todos os policiais da capital e da grande São Paulo devem utilizar o equipamento.
Nos dois primeiros meses de ampliação do uso das câmeras, as mortes por intervenção policial apresentaram forte redução no estado. Em junho, esse índice caiu para 22, o menor registro desde maio de 2013.
Para Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ainda é cedo para relacionar os resultados à utilização da ferramenta. Ele diz que outras iniciativas podem ter colaborado para a redução no índice, como uma pressão do comando da corporação contra a letalidade policial e a adoção de armas de choque. Também afirma que a literatura mundial a respeito do instrumento ainda está em formação e não é conclusiva.
Ainda assim, Alcadipani defende que as câmeras são ferramentas adequadas, utilizadas nas principais polícias do mundo, e que podem dar mais transparência, além de ajudar na produção de provas. Pondera, no entanto, que é preciso cuidado para não cair em um salvacionismo.
“O que as pessoas fazem com as imagens que são produzidas? É preciso que sejam analisadas. As câmeras geram um efeito de preocupação no policial e no cidadão, que porventura poderia estar ofendendo, agredindo. Mas a longo prazo é preciso que os policiais sintam que vai ter alguma consequência se algum ato equivocado for feito”, diz.
Em São Paulo, as câmeras gravam todo o turno de serviço do policial, sem áudio. Quando realiza alguma abordagem, o agente deve iniciar uma gravação intencional, que tem melhor resolução e som. Nesse caso, o comandante consegue acessar a câmera remotamente e transmiti-la ao vivo. Se houver disparo de arma de fogo, a gravação intencional é ativada automaticamente.
Cabanas afirma que, entre os investimentos recentes em tecnologia, esse talvez seja o mais efetivo na melhora da atuação policial. “A câmera não é a bala de prata da segurança, mas é um dos elementos que podem trazer resultado de curto a médio prazo muito forte”, diz.
Na sua avaliação, o equipamento possibilita uma rápida investigação dos fatos e pode reduzir a ocorrência de casos graves que hoje se arrastam por 30 dias à espera de um laudo. “Vamos ao sistema, analisamos as imagens e temos uma resposta rápida para a sociedade”, afirma.
Cabanas diz ainda que a ferramenta reduz as interações com uso da força pela polícia ao desescalar situações de tensão. “A câmera faz com que a pessoa se sinta observada, e tenha uma tendência a se comportar da maneira que a sociedade exige.”
Ele afirma que o instrumento também pressiona o policial a cumprir as normas da instituição, mas diz que a câmera não é “uma coleira num animal”. “A imprensa dá a entender que a câmera não vai deixar que o policial cometa uma ilegalidade. Não é isso. O fenômeno acontece pela observação, pelo reforço no compliance.”
A Folha questionou a assessoria de imprensa da secretaria de Segurança de Santa Catarina sobre a existência de dados a respeito do impacto do uso do equipamento na letalidade policial. A pasta respondeu que não havia esse estudo “porque não seria nem possível ligar o uso de câmeras a mortes por intervenção policial”. Em seguida, uma assessora da secretaria enviou mensagem à reportagem para insistir na defesa de que não existe essa relação direta.
Já a secretaria de Segurança de Rondônia, outro estado que faz uso da ferramenta, afirmou que o objetivo da medida é evitar “que se diga que houve abuso nas abordagens”.
O reforço no argumento de que as câmeras não são utilizadas para controlar os policiais vai ao encontro de uma crescente preocupação com a politização da tropa. A adoção do instrumento em São Paulo foi utilizada pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente Jair Bolsonaro, para incitar policiais militares contra o Doria, desafeto de seu pai.
Nos últimos meses, o parlamentar compartilhou duas publicações dizendo que a ferramenta iria desestimular os policiais, e que os agentes seriam punidos “por especialistas de ar condicionado”.
Na segunda-feira (23), após Doria afastar o coronel Aleksander Lacerda, que fez uma convocação para os atos bolsonaristas do 7 de Setembro, Eduardo escreveu no Twitter que o governador não cumpriu promessa de melhoria salarial para os policiais e que colocou câmeras nos uniformes para constrangê-los a não trabalhar. “Já não tem moral com a tropa e ainda faz ameaça. Isso só faz crescer os atos para 7 de setembro.”
Entre os estados que ainda estudam adquirir as câmeras, o Rio de Janeiro tem os trâmites mais avançados. Em maio, o ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), defendeu no contexto da “ADPF das Favelas” que o estado tivesse 180 dias para instalar as câmeras nas fardas.
O governo estadual anunciou para setembro a licitação para contratar o serviço de 22 mil câmeras, que serão obtidas por meio de comodato com a empresa vencedora do certame.
Coordenadora do NEB (Núcleo de Estudos da Burocracia) da FGV, responsável por estudar os profissionais da linha de frente dos serviços públicos, a professora Gabriela Lotta afirma que, mais do que instalar câmeras, é necessário um conjunto de soluções para diminuir os problemas relacionados à atuação desses trabalhadores.
“Algumas são muito mais sustentáveis a longo prazo do que só o sistema de controle que a câmera provoca. Por exemplo, melhores sistemas de seleção dessas pessoas, de capacitação, formação. O policial tem uma formação profissional muito violenta. Quando ele é violento na rua, na verdade está reproduzindo coisas que aprendeu nas academias de polícia”, diz.
Outra ponderação sobre o uso das câmeras diz respeito à utilização das imagens pelo Estado, preocupação citada por instituições de defesa dos direitos humanos sempre que se discute a implantação de novas tecnologias na segurança pública, como, por exemplo, dispositivos de reconhecimento facial.
“Há uma preocupação enorme com o aumento desenfreado de instalação de câmeras, vigias, e com a capacidade de que essas imagens sejam utilizadas contra as pessoas em algum momento. Se não como evidência de crime, como mecanismo de monitoramento. As tecnologias não são neutras, são dominadas por quem as fabricam”, afirma a advogada Denise Dora, diretora executiva da Artigo 19, ONG voltada para a promoção do direito à liberdade de expressão.
Dora alerta para a possibilidade de que as câmeras sejam eventualmente utilizadas para perseguir manifestantes após um protesto, por exemplo. “Quantas pessoas foram presas porque estavam protestando, porque estavam com uma camiseta dizendo ‘Fora Bolsonaro’?”.
Segundo ela, o armazenamento das imagens exclusivamente pela polícia é “totalmente temerário”. Em resposta à reportagem, a secretaria de Segurança de Rondônia disse que o material fica disponível apenas no sistema da Polícia Militar "para que não caia nas mãos erradas".
“Há muitas evidências de que a gestão dos dados pelas secretarias de segurança não é profissional. Ter mais um elemento de produção de dados, que ninguém sabe efetivamente como vai ser administrado, quem vai ter acesso, eu acho uma temeridade”, afirma Dora.
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