Cantoras em MT superam preconceito e machismo soltando a voz Vera Capilé, Pacha Ana e Izafeh contam suas experiências em um cenário ainda inóspito
Em cima do palco e diante da plateia, não é raro que cantoras se sintam absolutamente sozinhas, muitas vezes cercadas apenas pela desconfiança, machismo e até assédio sexual. Frágeis - jamais fracas -, elas não se curvam e encaram a difícil e gratificante tarefa de reproduzir sua arte.
Em um bate papo de gerações, o MidiaNews entrevistou três grandes vozes mato-grossenses. Vera Capilé, Pacha Ana e Izafeh compartilharam um pouco de suas trajetórias e desafios enfrentados no cenário musical, machista como de resto quase todos os setores.
Um dos grandes nomes da música regional, Vera Capilé nasceu em Dourados (MS) e é considerada uma embaixadora da cultura cuiabana, tendo representado Mato Grosso em inúmeros eventos nacionais e internacionais.
A mestra da cultura, já com 73 anos de idade e mais de 60 anos de carreira, aprendeu a cantar aos 4, sendo acompanhada pelo pai.
Eu já tive ocasião de estar toda a ‘homarada’ do rasqueado e eu no meio, só eu, só eu de mulher, quantas e quantas vezes
Para Vera, apesar dos desafios que enfrentou sendo mulher, a confiança em seu trabalho a manteve blindada, e nunca se deixou abalar pelas dificuldades.
“Eu sou tão confiante naquilo que eu faço, f***-se quem está do lado. Eu não ‘tô’ nem aí, vou me metendo”, disse.
“Eu já tive ocasião de estar toda a ‘homarada’ do rasqueado e eu no meio, só eu, só eu de mulher, quantas e quantas vezes”, completou.
“Vejo que eles são o ‘clube do Bolinha’, não resta dúvida. Mas eu não ‘tô’ nem aí, eu ‘puff’ apareço lá e ninguém pode dizer não, porque os próprios músicos gostam do que eu faço? Sei que eu sou chamada por último”
Sabe-se que uma mulher precisa trabalhar até duas vezes mais que os colegas homens para obter o mesmo reconhecimento.
Além disso, ainda há os casos de assédio sexual e moral sofridos por muitas mulheres, agravado também pela hipersexualização das mulheres negras do ramo, como é o caso relatado pela musicista, atriz, poetisa e arte-educadora, Ana Gabriela Corrrêa, a Pacha Ana.
Proposta indecente
Pacha é natural de Rondonópolis, e foi a primeira mulher no Estado a gravar um disco de rap, o álbum autoral "Omo Oyá" de 2018.
Maria Reis
Pacha Ana - EP Suor & Melanina
“Quando fui gravar meu primeiro disco, eu devia ter uns 21 anos na época. E aí eu comecei a gravar o disco com um produtor aqui de Cuiabá - eu nem sei se posso chamar aquele cara de produtor. E ele me fez um convite, que era para fazer um ‘ménage’ com ele e a companheira dele. E a gente já tinha gravado umas cinco músicas, eu já havia pago algumas..."
"Falei que não queria. Quando falei que não queria, eu estava dentro de um voo voltando para Cuiabá. Ele já pegou e mandou assim: ‘Então acabou o disco, tá cancelado’. Pronto, tchau, já me bloqueou"
"O dinheiro que eu tinha investido ficou pra trás. Depois ele me ameaçou falando que eu tinha ‘dado corda’ pra ele, porque eu fui ‘na casa dele, gravar com ele’. Como eu não queria fazer um ménage com ele?”, ironiza.
A hipersexualização e objetificação dessas mulheres representa, em grande parte, um apagamento da sua capacidade de atuação no mercado, do serviço prestado e do seu valor na indústria.
Existem inúmeros relatos de mulheres, que além da Pacha, veem o destino de seu trabalho nas mãos de homens, que eventualmente fazem o convite para o famigerado “teste do sofá”.
O prolema parte do ponto em que no monopólio da voz masculina, além dos músicos instrumentistas e cantores, também estão os críticos, curadores, diretores de festivais e produtores.
A ausência de mulheres em muitos desses postos de decisão faz com que elas não tenham o poder de influenciar políticas e comportamentos, e o ciclo nunca se quebra.
E essa disparidade existe não somente em postos de poder, mas também em posições técnicas, como engenharia de som, iluminação, backstages, etc.
Com 20 anos, e cantando profissionalmente desde os 14, a cantora e compositora Izafeh é um prodígio que compõe desde os dez anos.
Aos onze já participava dos seus primeiros concursos musicais, sendo fortemente influenciada pela música popular brasileira.
André Zambonini
Izafeh, cantora e compositora
De acordo com a cantora, para mudar esse cenário, os postos de poder do ramo musical deveriam estar mais abertos para ouvir o que as mulheres têm a dizer, saber quais são suas necessidades.
“Acho que se as pessoas saíssem um pouco dessa posição de defesa quando apontamos algo de errado, imediatamente atacando e difamando a gente, e começassem a querer ouvir, e estarem abertas a entender a problemática no seu geral, já seria um grande começo”, disse.
“Por exemplo: quando a gente aponta para algum estabelecimento a falta de mulheres naquele espaço. Ao invés de adotarem uma postura de defesa, passassem a assumir que sim, existem erros, todo mundo erra”, aponta.
“Algumas coisas podem passar despercebidas, principalmente quando você não está em uma categoria de minoria, você acaba deixando as coisas passarem. Mas se você começa a adotar uma postura de querer refletir, estar aberto pra conversar, isso já muda muita coisa, né? Talvez seja um grande passo para começar”.
Acredita-se que uma das formas de combater o desequilíbrio de gênero na música é expor o problema, a realidade dessas mulheres, e partindo dessa visibilidade seria possível promover mudanças.
Segundo o levantamento da consultoria IDados do IBGE, no Brasil, as mulheres ganham cerca de 20% menos do que os homens; e de acordo com dados do Índice de Gênero dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ) 2022, o país alcançou a 78% posição no ranking que mede a igualdade de gênero em 144 países.
As desigualdades de gênero impõem obstáculos à participação feminina, invisibilizando, objetificando, excluindo e assim desestimulando a mulheres que vivem da música.
Confira a entrevista completa:
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