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Segunda - 18 de Julho de 2022 às 13:10
Por: Eduardo Gomes/Diário de Cuiabá

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Esnobe, a Rural foi o primeiro SUV brasileiro e oferecia alguns requintes
Esnobe, a Rural foi o primeiro SUV brasileiro e oferecia alguns requintes

Mocinha sonhadora virava os olhos, corava a face e engasgava, sentia vertigem e tremia dos pés à cabeça ao ver aquele que poderia seu Príncipe Encantado, todo posudo, dirigindo uma Rural.

O carro passava e ela o seguia com o olhar lânguido e somente Deus sabia os desejos safadinhos da mesma só em pensar que estivesse no banco dianteiro ao lado dele, e que o carro pararia sob uma árvore frondosa, na curva da estrada sem movimento e que os dois pulariam para o confortável bancão traseiro, sem necessidade de acrescentar algo mais em respeito a ela, tão casta, pura, religiosa e de família.

Soberana, a Rural reinou em Mato Grosso, entre a década de 1960 e os anos 1970.

Subida ensaboada pela chuva torrencial que fazia barranco chorar a Rural tirava de letra ao ronco firme do motorzão de 6 cilindros em V e a sincronia da tração ajudada pela habilidade do motorista, que virava a direção para o lado onde a traseira deslizava.

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De 1975 a 1977, o veículo foi produzido pela Ford, que comprou a Willys Overland e mudou muitas de suas características

Nos areões da MT-130, entre Poxoréu e Paranatinga, nenhum carro a superava; por isso, era o xodó dos garimpeiros que arriscavam a vida mergulhando com escafandro no rio Paranatinga, em busca do diamante.

Nenhum pistão falhava. Os donos ou motoristas mais caprichosos ainda mandavam encastoar o platinado com ouro, para que a corrente elétrica fosse ainda mais intensa e firme nos trechos onde a Rural fosse mais exigida.

Pau para toda obra em 4 x 4, a Rural também apresentava versão urbana em 4 x 2 que era carinhosamente chamada de mocha e que tinha mercado assegurado por sua múltipla destinação.

Nesse modelo os pneus não eram lameiros e tinham faixa branca, acessório que dava um quê de luxo ao veículo.Baixo consumo nunca foi o forte da época, mas a Rural alcançava média maior do que os carrões americanos de 8 cilindros.

Sem tração total percorria cinco quilômetros com um litro de gasolina; tracionada, três.

O velocímetro marcava de O a 14 – que correspondia a 140, mas o aconselhável era não ir além de 100 km/h; até essa velocidade o veículo não tremia, pois, a mesma deslizava solta, sem amarras, graças à roda livre automática AVM – um avanço e tanto.

Em 4 x 4, não era aconselhável ultrapassar 30 km/h.

Seu tanque, de 66 litros, sob o compartimento traseiro, garantia autonomia para 300 quilômetros com margem de segurança e o mesmo era abastecido pela lateral e tinha tampa com chave.

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Pau para toda obra em 4 x 4, a Rural também apresentava versão urbana em 4 x 2 que era carinhosamente chamada de mocha

Esnobe, a Rural foi o primeiro SUV brasileiro e oferecia alguns requintes.

A tampa do radiador era presa ao mesmo por uma corrente fina, porém resistente. Isso, para impedir que caísse na hora da checagem do nível. A bateria não era lacrada e aceitava bem a água de chuva.

A antena do rádio de três faixas era externa, na lataria e ao alcance da mão do motorista, sem necessidade de descer para manuseá-la.

Os retrovisores, um de cada lado, perto da janelinha bandoleira, permitiam boa visão da retaguarda, e eram reforçados por outro, interno, afixado quase ao teto perto do meio do para-brisa.

Os faróis eram bons e de fácil regulagem, que podia ser feita com uma simples cordinha estendida entre eles tendo uma parede na frente para referência dos dois focos, num ambiente escuro ou quase isso.

No painel, um cinzeiro com tampa e um isqueiro que a sabedoria popular chamava de acendedor de cigarro; bastava comprimi-lo que ele voltava à posição inicial tão logo estivesse incandescente – evitava que o motorista acendesse fósforo ou isqueiro convencional ao volante.

Na lataria ao lado do banco traseiro, um cinzeiro na direita e outro na esquerda.

Com os vidros fechados chuva não entrava na Rural, mas no poeirão, o pó fino desafiava sua vedação, mas nem de longe quanto os demais 4x4, o que dispensava o uso então comum do guarda-pó pelo motorista e passageiros.

A ventilação interna era garantida pelas janelas e reforçada por uma entrada de ar atrás do capô, que podia ser aberta no todo ou em parte, por uma alavanca de fácil manuseio.

Um defeito comum aos carros da época: o cheiro forte de gasolina de alta octanagem, quando não se misturava a ela o etanol anidro, o que hoje acontece com a liberação para adição em 27% desse combustível renovável.

Não havia risco de incêndio, porém, pelo fato de o motor ser alimentado por carburação, o cheiro era inevitável.

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Nas blitze da Polícia e em seus postos na Avenida Fernando Corrêa da Costa, em Cuiabá; em Rondonópolis, Alto Garças e Cáceres, a Rural era onipresente

Democrática, a Rural não tinha trava de direção e podia ser acionada até mesmo com a lixa maior do cortador de unhas, mas suas três portas tinham trancas que exigiam chave para abertura.

Para aumentar a ventilação era possível viajar com o vidro da tampa traseira aberto tirando-o da posição vertical e botando-o na horizontal amparado por duas hastes metálicas, dobráveis, sendo uma em cada ponta.

Os pneus em aro 15, modelo campo-cidade davam estabilidade ao veículo, inclusive em terrenos escorregadios.

O macaco sanfona era ponto falho e se o veículo estivesse carregado ou inclinado para o lado de troca, o mesmo emperrava.

A retirada do estepe era fácil desde que o compartimento de carga estivesse vazio ou parcialmente ocupado, pois o mesmo era preso na lateral traseira interna do veículo.

O câmbio era ponto forte. Nos primeiros anos de fabricação da Rural a alavanca de câmbio era no assoalho, com quatro marchas à frente e a ré; posteriormente foi acoplado à coluna de direção, mantendo quatro marchas e a ré, mas nessa versão havia um ponto negativo: o trambulador emperrava – acavalava, como se dizia – e o motorista ao tentar repará-lo quase sempre sofria pequenos ferimentos nos dedos e na mão.

Na primeira versão 4x4 havia no assoalho ao lado da alavanca de marchas, duas alavancas menores sendo uma – a do médio – para a tração dianteira, e a da direita, para a redução.

Na segunda versão, mas moderna as alavancas de chão foram substituídas por uma encaixada no painel, com dupla função: tracionar e reduzir.

Os procedimentos de tração e redução não podiam ser feitos com o veículo em movimento.

As cores eram diversificadas. Havia Rural de uma cor: azul, verde, cinza, branco, preta, vermelha e laranja. As de duas cores eram as mais procuradas: cinza e branco, azul e branco, verde e branco...

O motor da Rural foi o primeiro a gasolina fabricado no Brasil. Isso, em 1959, com base em outro, americano, de 1946.

A nacionalização do veículo na linha de montagem aconteceu em 1960, quando trocou a carrancuda carroceria americana pela suavidade de um modelo inspirado no modernismo de Brasília.

De 1975 a 1977, o veículo foi produzido pela Ford, que comprou a Willys Overland e mudou muitas de suas características, inclusive a motorização que ganhou novo motor, que passou de seis para quatro cilindros.

Com essa mudança a velha e boa Rural campo-cidade assumiu ares urbanos, perdeu o quê de sua identificação com o Brasil interior e mais tarde foi retirada da linha de montagem.

A Rural conduzia muitos. Levava o padre para celebrar missas nas vilas e no campo, o bispo para crismar, a noiva ao altar, o artista ao palco, o gerente ao banco, o advogado ao escritório, o médico ao hospital.

Em Rondonópolis (212 km ao Sul de Cuiabá), ao volante de uma Rural o padre Miguel Rodas fazia visitas pastorais; um grupo de fiéis católicos pede a canonização de padre Miguel.

Transportava o fazendeiro para cidade, a família aos passeios, os peões ao trabalho, a ordem policial para conter desordem, alunos para escolas, jovens para as noitadas e doentes aos hospitais.

Braço direito de colonizadores mato-grossenses, a Rural era o veículo que aguardava ao lado da pista dos campos de pouso nas áreas de colonização, o desembarque dos compradores de terra que chegavam ao lugar em monomotores e bimotores das grandes colonizadoras.

Cargueira, também carregava os bezerrinhos para acompanharem as boiadas, arame para a cerca, o sal para o gado e o arroz em casca para a máquina de benefício.

O segundo banco era dobrável. Tanto poderia ser uma dobra para determinadas cargas, quanto duas para encostá-lo ao dianteiro, o que abria espaço como se fosse caçamba de picape com teto – nesse compartimento era possível transportar até meia tonelada, mas o veículo perdia três assentos.

Vendedores de ferramentas, medicamentos e de secos e molhados de grandes empresas de São Paulo e Uberlândia visitavam a clientela utilizando a Rural como meio de transporte.

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A nacionalização do veículo na linha de montagem aconteceu em 1960, quando trocou a carrancuda carroceria americana

Além do mostruário, sempre tinham no compartimento traseiro limas KF e outros produtos para pronta entrega.

Carro adotado por órgãos públicos, a Rural levava funcionários do Incra para a Reserva Nacional da Caiçara, em Cáceres; para Jacaré Valente, em Confresa; para onde mais se possa imaginar.

Nas blitze da Polícia Rodoviária Federal e em seus postos na Avenida Fernando Corrêa da Costa, em Cuiabá; em Rondonópolis, Alto Garças e Cáceres, a Rural era onipresente.

As andanças das equipes do Guia Quatro Rodas pelos rincões mato-grossenses eram facilitadas pela Rural.

Agentes da Sucam em empoeiradas Rural percorriam cidades, vilas, sítios e fazendas combatendo endemias.

Pau para toda obra, a Rural abria as portas aos amantes em busca do prazer e para os caronas aos seus destinos.

Pelos caminhos de Mato Grosso, quando sequer havia sonho com asfalto, a Rural levava mensagens publicitárias das Pernambucanas, Riachuelo, Copagaz e da Buri, aos moradores das cidades onde suas bandeiras tremulavam.

Os alto-falantes sobre o teto - um em cada direção - intercalavam música gravada com voz do locutor; o gás tinha um jingle que marcou época: "Em qualquer lugar do espaço ou por esse mundaréu, quando a Copagaz chega é aquele fogaréu".

Lendária, os políticos atrás dos votos precisavam da mesma para suas andanças por caminhos carroçáveis; e o maior deles, à época, Nhonhô Tamarineiro, não abria mão da sua Rural, que era conhecida por todos.

Quando bamburravam os garimpeiros delirando pelo diamante em Poxoréu, separavam parte da bolada para comprarem uma na Rivauto, concessionária da Willys e mais tarde da Ford, do empresário Elson Moreira dos Santos, em Rondonópolis; Jubal Martins da Siqueira, folclórico garimpeiro e vereador poxoreano, dizia que, É deus no Céu e Rural na terra.Nos bancos da Rural e em seu compartimento traseiro para carga, seguia a vida pela vida e até caixões rumo aos cemitérios. Mas, como tudo na Terra, ela também passou.

Passou. A Rural passou.

Deixou marcas pelas estradinhas, que o tempo se encarregou de apagar, mas permanece viva na memória de quem viveu seu ciclo de veículo soberano com a imponência de sua presença, conferindo status ao seu motorista, provocando sonho acordado de ser seu dono, despertando o prazer em ocupar seus bancos e forçando o batido descompassado do coração do Príncipe Encantado quando seu olhar e o da Mocinha sonhadora, tão casta, pura, religiosa e de família se cruzavam.

UMA RURAL NO NASCIMENTO DE PEDRO TAQUES - José Pedro Gonçalves Taques nasceu em 15 de março de 1968. Promotor de Justiça, procurador da República, senador, governador e professor universitário.

A carreira de Pedro Taques é de domínio público.

Porém, poucos conhecem as circunstâncias de seu nascimento e sua tripla naturalidade.Não fui o criador da tríplice naturalidade de Pedro Taques.

Essa versão, ouvi dele, quando governador, ao dirigir-se ao vereador por Várzea Grande, Claido Celestino Batista, o Ferrinho, numa solenidade de inauguração de uma obra da prefeita Lucimar Campos.

Taques fugiu do tema que abordava, e com naturalidade revelou a Ferrinho – e aos demais presentes – que seus pais, a professora Eda e Alinor (seo Nego) moravam na vila de Currupira, município de Rosário Oeste.

Ela, com as primeiras contrações para o parto, foi trazida numa Rural para Cuiabá percorrendo a estrada de chão entre as duas localidades.

Quando o veículo entrou em Várzea Grande, a bolsa estourou.

Seu nascimento foi concluído no Hospital Santa Helena, nesta capital.

Daí a pluralidade do berço, que oficialmente, na papelada, confere a naturalidade cuiabana a ele. Portanto, mais mato-grossense do que Pedro Taques, impossível.

Somem-se a isso o fato que o sobrenome Taques está presente no Vale do Rio Cuiabá desde os tempos das Lavras do Sutil, o que, convenhamos, não é recente: é uma presença tão tricentenária quanto a capital mato-grossense.





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