Com menos árvores, 'modernidade trouxe prejuízo para Cuiabá'
Seja pelas árvores frondosas ao longo das avenidas, pelos típicos quintais repletos de plantas ou pela ampla área rural, Cuiabá recebeu há algum tempo o título de “Cidade Verde”. Quem primeiro presenteou a Capital com essa qualificação e quando isso ocorreu ainda são temas abertos à discussão. Hoje, contudo, dados consolidam uma certeza que não está mais disponível para argumentação. A cidade tricentenária segue ostentando a reputação do passado, mas com uma distribuição de cores diferente, menos verde.
A milhares de quilômetros da terra, satélites têm capturado ao longo das últimas décadas as transformações ambientais de Cuiabá. Distantes e atentos, estes instrumentos têm observado a escalada dos prédios, casas e avenidas na conquista do mapa da Capital. Os dados, distribuídos em quase infinitos zeros e uns, produziram uma cronologia que levanta um alerta sobre a preservação: na "fotografia" de 30 anos recentes, o município perdeu 17% de sua área verde original.
Com informações do Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo do Brasil (MapBiomas), o Instituto Centro Vida (ICV) lançou uma cartilha em 2019 contando detalhes dessa perda massiva de área verde. No estudo, com dados da vegetação da Capital de 1988 a 2017, ficou constatado que a redução de cobertura natural foi de 55.763 hectares. O número, na prática, representa um perímetro equivalente a 714 vezes a área do Parque Estadual Mãe Bonifácia, que é a maior reserva verde em espaço urbano na Capital.
Ao passo que o estudo escancarou o "acinzentamento" da Capital também mostrou o exponencial crescimento da população da cidade, que saltou de um município com 103.427 habitantes para 607.153 em 50 anos. Esse "boom" foi convertido em registros físicos, como a criação de novos bairros, mas também deixou marcas menos visíveis, a exemplo da popularização da ideia de um suposto progresso proveniente de uma Capital mais verticalizada para comportar seu povo.
Esse avanço acelerado da ocupação territorial alinhado à diminuição das áreas verdes pode ser visto de forma gradual na plataforma do MapBiomas. Disponível desde 2015, o projeto evoluiu e passou por atualizações. Na versão mais atual, que considera dados do Intituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021, Cuiabá tem uma área de 5.077,17 km2. O tamanho total do perímetro atribuído à Capital pela autarquia, conforme explicado pelo Instituto de Terras de Mato Grosso (Intermat), considera a área real de Cuiabá mais a soma de uma porção de terra que não é atribuída a nenhum município e que ficou, temporariamente, alocada à Capital.
Veja abaixo o avanço da urbanização em Cuiabá. Em amarelo, os pontos representam as áreas de ocupação humana. Em verde, mostram a porção de vegetação natural do município.
Modernização na Cidade Verde
Para entender as transformações que levaram as "Lavras do Sutil" à cidade de Cuiabá do século 21, o professor de história Pedro Félix, que reside na Capital há mais de 5 décadas, destacou alguns dos momentos de maior transformação da história cuiabana. Antes disso, contudo, o educador falou sobre a popularização do título de Cidade Verde que, para o docente, é um processo diretamente ligado ao ex-governador de Mato Grosso Francisco de Aquino Correia, conhecido como Dom Aquino.
Poeta, arcebispo de Cuiabá, governador do Estado entre 1918 e 1922, Dom Aquino foi o primeiro mato-grossense a fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Sua obra, distribuída em diversos livros, levou para fora dos limites de Mato Grosso as belezas naturais de sua cidade natal e popularizou aos demais brasileiros a ideia de uma Cuiabá Cidade Verde.
Khayo Ribeiro
Historiador Pedro Félix folheando livro sobre a história de Cuiabá
Ao relembrar a obra de Dom Aquino, do décimo andar de seu prédio, o historiador apontou como a modernização da Capital no século passado, sobretudo a partir da década de 1980, esteve ligada a uma ideia de verticalização da cidade encabeçada pela elite e seus filhos. As paisagens da época eram a de uma Cuiabá verde com seus casarões coloniais, que, anualmente, foram sendo subvertidas à lógica de que o progresso vinha dos prédios, em uma tentativa de simular uma geografia urbana como a do Rio de Janeiro.
"Os filhos da elite trazem a ideia de progresso literalmente com o tombamento, a destruição desses casarões que eram referências para nós. Que estavam localizados principalmente na rua de cima, a Pedro Celestino, a rua do meio, a Ricardo Franco, e a rua de baixo. Então, o centro histórico foi quase bombardeado e é possível ver a verticalização", disse. "Progresso significava o que? diminuição do cerrado, menos árvores, menos quintais, verticalização", acrescentou.
Com livros nas mãos e uma narrativa complexa na memória, o historiador elencou alguns dos momentos da história cuiabana que foram propulsores para o desenvolvimento urbano do município. E que, como consequência, influenciaram diretamente no uso do solo, sobretudo quanto à diminuição das áreas verdes.
"Vai transformando e diminuindo isso em 3 momentos. No primeiro momento, há os indígenas, que supostamente se integram à mata, mas aí chegam os bandeirantes. Daí, o que era parte da mata já se transforma no que seria a área urbana. No segundo momento, no século 19, se tem a vinda de migrantes sulistas que chegam até sua grande parte a Campo Grande. Com isso, se traz pessoas que vão diminuindo a mata. Na década de 1970, se tem passando por aqui a terceira leva de migrantes sulistas: paranaenses, gaúchos e um pouco menor catarinenses. Isso também contribui [para o desmatamento]", disse.
"Essa modernidade trouxe prejuízo para Cuiabá no sentido do verde"
Com menos palmeiras que as descritas na literatura regionalista de Dom Aquino, Cuiabá - na perspectiva de alguns dos filhos da terra - precisa reconduzir seu avanço olhando para o verde do passado. Morador do Bairro Baú, o servidor público aposentado Carlos Alberto Alves Corrêa, 65, abriu as portas de sua casa para a reportagem do Gazeta Digital e relembrou como foi a escalada acelerada da Capital rumo ao progresso. Ao falar sobre a efervecência das décadas de 1970 e 1980, o aposentado apontou que a modernização do município custou algumas tradições e mudou, inclusive, o clima da cidade.
Khayo Ribeiro
Carlos Alberto Alves Corrêa, 65
"O que eu vejo da minha Cuiabá do passado é muito triste, porque antes os quintais cuiabanos tinham árvores frutíferas: caju, manga, jaca. Isso era o sustento de parte das famílias. Sustentar com sucos, frutas e os doces cuiabanos feitos. Veio o progresso, os arranha-céus, e muitas famílias saíram do centro. Venderam suas casas e lá se tornaram grandes arranha-céus", relembra o aposentado ao falar sobre sua juventude. Para o servidor, o verde do título de Cidade Verde se foi e levou parte da história da Capital.
"Nas famílias de bairro se faziam as brincadeiras dançantes, os chamados quitutes. Nos quitutes se vendiam os ingressos para você almoçar e jantar. E, até às 18 horas, tocava música para você dançar nas residências", lembra ao citar os quintais cuiabanos, que eram refúgios verdes dentro das casas onde os festejos eram realizados aos domingos. Hoje, na visão do aposentado, algumas tradições já não são mais realizadas por conta do clima da Capital, que subiu de temperatura ao longo do últimos anos.
Seo Carlos relembra que, durante sua juventude, os "homens de posse" andavam de terno e chapéu no centro da cidade. Atualmente, a prática seria impensável para o aposentado por conta do clima. Essa perspectiva também é compartilhada por Flores Teresinha de Jesus, 73, que é vizinha do servidor. Para a idosa, o avanço do asfalto, dos prédios e a diminuição do verde foram determinantes para a elevação da temperatura na Capital, que tem batido recordes anuais de calor e foi considerada a cidade mais quente do mundo em 2021 segundo o site internacional Hot Cities.
Montagem / Gazeta Digital
Imagem mostra mudanças na paisagem urbana da Capital ao longo dos ano. Em cima, foto disponibilizada pelo IBGE Cidades do século 20. Na debaixo, foto tirada em oututro de 2022.
"Voluntários da Pátria, eu subia para ir ao cemitério com minha avó brincando de pular nas pedras que tinham na rua. Eu não sei falar o nome, mas lembram as pedras de rio. Depois, veio o paralelepípedo e algumas árvores da rua foram cortadas. E quando veio o asfalto daí realmente acabou. Tanto é que aqui no Centro hoje é um calor insuportável", disse Flores. "Essa modernidade trouxe um prejuízo para Cuiabá no sentido do verde", acrescentou.
"O nosso clima sempre foi quente, mas com essas mudanças ficou muito mais, com a ausência dos quintais, a ausência das nossas palmeiras. Se você olha as fotos antigas, eram lindas nossas praças, mas elas perderam as palmeiras. E elas foram cortadas devido à modernidade, porque colocaram fontes luminosas. Daí, veio o moderno", finalizou a aposentada.
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